Descrição
Esse Protocolo foi revisado pelo Comitê Técnico de Saúde da População LGBTIA+ e por profissionais de saúde de diversas instituições públicas.
Em Julho de 2020, o Comitê publicou seu primeiro documento norteador, o “Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo” e, atualmente, publica sua nova versão, revisada e ampliada.
A implementação deste protocolo é norteada pela Política Municipal de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+, acompanhada pelo Comitê Técnico de Saúde Integral de LGBTIA+ da SMS e avaliada por processos nas instâncias. As unidades de saúde que se preparam para atender as pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero, através de formações ou de organizações internas, passam a integrar a Rede Sampa Trans.
Acesse o documento completo: https://drive.google.com/file/d/1gwpmFudfWEMxb2_PdExidF-hGu63GAeV/view?usp=sharing
Informações adicionais
A consulta pública se destina a todos os trabalhadores e gestores da rede, bem como para a sociedade civil, para que possam ler e contribuir com o documento no seu lançamento. Mesmo se tratando de um documento técnico, será disponibilizado publicamente e a população poderá se beneficiar das informações contidas, no sentido de conhecer a rede de serviços e protocolos.
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Índice por Áreas Técnicas
O cuidado em saúde oferecido às pessoas LGBTIA+ deve ser transversal e integral, pois não abrange somente um segmento da saúde dessas pessoas. Portanto, todos os diferentes grupos de trabalho responsáveis pelas diferentes Áreas Técnicas existentes na administração da saúde do município de São Paulo têm responsabilidades sobre a organização dessas diferentes linhas de cuidado. Este índice tem a pretensão de facilitar e orientar esse trabalho, ao apontar os textos deste protocolo que dizem respeito a áreas técnicas atualmente existentes na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), nas Coordenadorias de Saúde Regionais (CSR), nas Supervisões Técnicas de Saúde locais e nas instituições parceiras da gestão no município de São Paulo. (Este índice não está disponível na versão preliminar, submetida à consulta pública) Coordenadorias e Áreas Técnicas da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo Gabinete da SMS • Saúde Integral da População LGBTIA+ Áreas Técnicas da Coordenadoria de Atenção Básica • Saúde da Pessoa em Situação de Rua na Atenção Básica • Enfermagem • Estratégia Saúde da Família • Área Técnica Práticas Integrativas e Complementares em Saúde • Área Técnica de Saúde Nutricional • Saúde Bucal • Saúde da Criança e Adolescente . Saúde da Mulher • Saúde da População Indígena • Saúde da População Negra • Saúde Integral da Pessoa em Situação de Violência • Doenças Crônicas Não Transmissíveis da Atenção Básica • Doenças Raras na Atenção Básica
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Lista de siglas e abreviaturas
AMPI-AB Avaliação Multidimensional da Pessoa Idosa na Atenção Básica CIT Comissão Intergestora Tripartite CONARE Comitê Nacional para Refugiados CTA Centro de Testagem e Aconselhamento em IST/Aids ECA Estatuto da Criança e do Adolescente ILPI Instituição de Longa Permanência para pessoas Idosas IST Infecções Sexualmente Transmissíveis LGBTIA+fobia Preconceito e/ou violência específicos a pessoas LGBTIA+ NPV Núcleo de Prevenção à Violência OMS Organização Mundial de Saúde ONU Organização das Nações Unidas PNSILGBT Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais
PNSPI Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa PNSIPN Política Nacional de Saúde Integral da População Negra PEP Profilaxia Pós Exposição ao HIV PrEP Profilaxia Pré Exposição ao HIV PSE Programa Saúde na Escola PTS Projeto Terapêutico Singular PVHA Pessoas Vivendo com HIV/Aids RAS Rede de Atenção à Saúde RASP Rede de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa RD Redução de Danos SAE Serviço de Atenção Especializada em IST/Aids SINAN Sistema Nacional de Agravos de Notificação SINASC Sistema de Informação de Nascidos Vivos
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Lista de figuras
Figura 1 – Gênero como espectros Figura 2 – Representação gráfica de aspectos atribuídos à sexualidade. Figura 3 – Representação gráfica de algumas possíveis identidades de pessoas que não se
identificam ou não vivenciam o gênero designado ao nascimento Figura 4 – Formas que podem ser ofertadas para representação não excludente de
pessoas LGBTIA+ em familiogramas.
Figura 5 – Exemplo de um círculo familiar a ser construído pela pessoa atendida Figura 6 – Mandala da prevenção combinada Figura 7 – Técnica para confecção de placa de látex a partir de cortes em luva ou
camisinha
Figura 8 – Ficha de notificação de violência, com destaque para campos 33, 36, 37 e 55. Figura 9 – Destaque do campo “Nome Social” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS
Atenção Básica
Figura 10 – Destaque do campo “Deseja informar orientação sexual / identidade de gênero?” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS Atenção Básica Figura 11 – Representação da avaliação socioeconômica na Anamnese Nutricional Figura 12 – Transformações corporais resultantes do uso de estrógeno e anti-andrógeno
por pessoas transfemininas
Figura 13 – Transformações corporais resultantes do uso de testosterona por pessoas
transmasculinas Figura 14 – Aferição de peso e altura Figura 15 – Registro de pilificação com desenho Figura 16 – Aferição de medidas corporais circunferenciais Figura 17 – Aferição de medidas de clitóris Figura 18 – Aferição de medidas de glândulas mamárias Figura 19 – Aferição de medidas de testículos
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Lista de quadros
Quadro 1 – Sistematização utilizada para as recomendações sobre a abordagem dos
aspectos da sexualidade por profissionais de saúde Quadro 2 – Recomendações para a abordagem da sexualidade em geral Quadro 3 – Recomendações para a abordagem de construções sociais sobre gênero Quadro 4 – Recomendações para a abordagem do corpo e de suas características
tradicionalmente relacionadas à percepção de gênero Quadro 5 – Recomendações para a abordagem do sexo de registro civil Quadro 6 – Recomendações para a abordagem de papéis sociais de gênero Quadro 7 – Recomendações para a abordagem de gênero designado ao nascimento Quadro 8 – Recomendações para a abordagem de identidade de gênero Quadro 9 – Recomendações para a abordagem de expressão de gênero Quadro 10 – Recomendações para a abordagem de orientação sexual, orientação afetiva e
orientação romântica
Quadro 11 – Recomendações para a abordagem de práticas sexuais Quadro 12 – Recomendações para a abordagem de estrutura de relacionamento(s) Quadro 13 – Recomendações para a abordagem de desejo reprodutivo e de reprodução Quadro 14 – Recomendações para a abordagem de parentalidade e família(s) Quadro 15 – Sugestões para familiares ou responsáveis sobre formas de conversar com
adolescentes sobre sexo
Quadro 16 – Exemplos de situações e dúvidas comuns na adolescência que podem ser
disparadores para abordagem em grupos
Quadro 17– Direitos em temas de interesse da população LGBTIA+ Quadro 18 – Exemplos de erros comuns de abordagem individual e abordagens
preferenciais
Quadro 19 – Componentes do apgar familiar e sentenças que receberão conceitos Quadro 20 – Dimensões, composições e possibilidades de intervenção da ferramenta de abordagem familiar PRACTICE Quadro 21 – Lista de fatores que impactam negativamente e fatores que protegem a saúde
mental
Quadro 22 – Ações necessárias para oferecer cuidados em relação à sexualidade Quadro 23 – Medicamentos de dispensação exclusiva para receitas de pessoas prescritoras autorizadas da rede pública municipal de saúde
Quadro 24 – Efeitos sistêmicos de interesse da nutrição ao uso hormonização com
estrógenos e/ou antiandrógenos e com testosterona
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11 Quadro 25 – Aspectos da avaliação clínica nutricional e possíveis condições associadas Quadro 26 – Informações mínimas a serem descritas nos relatórios para encaminhamento
aos serviços de cirurgia
Quadro 27 – Orientações gerais para a redação de relatórios por equipes multiprofissionais para encaminhamento a cirurgias Quadro 28 – Estrutura sugerida de relatório para encaminhamento a cirurgias Quadro 29 – Recomendação de informações a serem descritas na ficha de referência e contrarreferência, utilizada para qualquer tipo de encaminhamento Quadro 30 – Estrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres trans e
pessoas transfemininas
Quadro 31 – Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos
e antiandrógenos
Quadro 32 – Antiandrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres transe
pessoas transfemininas
Quadro 33 – Exames complementares para travestis, mulheres trans e pessoas
transfemininas em hormonização
Quadro 34 – Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos Quadro 35 – Andrógenos utilizados na hormonização para homens trans e pessoas
transmasculinas
Quadro 36 – Exames complementares para homens trans e pessoas transmasculinas em
hormonização
Quadro 37 – Acompanhamento laboratorial de testosterona em homens trans e pessoas transmasculinas em hormonização, se o nível sérico máximo for desejado
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Glossário
Clique sobre o termo, para direcionamento à parte do texto que o explica. (hiperlink não disponível na versão preliminar) afirmação de gênero alossexual aquendar binder cisgênero cisnormatividade crossdresser / CD Deficiência auditiva Deficiência física Deficiência intelectual Deficiência sensorial Deficiência visual Disforia Relacionada a Gênero drag queen drag king Estresse de Minoria feminino gênero designado ao nascimento heterossexualidade compulsória HSH identidade de gênero Imigrante Incongruência de Gênero
LGBTIA+fobia linguagem de gênero neutro masculino marcadores de gênero MSM Packer Pessoa imigrante Pessoas não binárias Pessoa refugiada Pessoa solicitante de refúgio pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero pessoas transfemininas pessoas transmasculinas Prolongador de clitóris Pump sexualidade Trans transexualidade transformista transgeneridade transição social de gênero travesti
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Contextualização
Protocolo para o cuidado integral à saúde de pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero no município de São Paulo Abril/2023, versão preliminar submetida à consulta pública
14 Este documento, redigido por membros do Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+ e por muitas pessoas colaboradoras, é publicado pela SMS de São Paulo com a finalidade de oferecer apoio didático e técnico a profissionais de saúde que oferecem cuidados às pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero nos serviços municipais de São Paulo. Além do foco neste recorte populacional, este protocolo também aborda conceitualmente, em seus primeiros capítulos, questões gerais de toda a população LGBTIA+: pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais, homens trans e pessoas transmasculinas, demais pessoas “trans” e/ou com variabilidade de gênero, pessoas intersexo, pessoas assexuais e outras pessoas que não se encaixam no padrão endossexo-cis-heteronormativo.1 O Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+ foi instituído no município de São Paulo e atualmente está vinculado à SMS, com objetivo de promover políticas públicas e estabelecer cuidados em saúde à população LGBTIA+ com base nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Iniciou suas atividades em 2017, sob demanda da sociedade civil, e foi oficializado, com publicação em Diário Oficial, em 20192 e posteriormente reorganizado em 2021.3 Constituído por representantes da gestão, das áreas técnicas da SMS, da sociedade civil e por parcerias institucionais, nasceu como consolidação da Portaria No 2.836, de 1o de dezembro de 2011, que institui, no âmbito Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT), regida para “Promover a saúde integral da população LGBT, através da eliminação da discriminação e do preconceito institucional, da redução das desigualdades e para consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo”. Além de dar suporte às Coordenadorias Regionais de Saúde do município que possuem linha de trabalho específica com a população LGBTIA+, as ações do comitê incluem a publicação de protocolos técnico e educativos, a realização de capacitações às equipes de gestão e de profissionais da Atenção Básica, avaliação contínua da assistência oferecida a essa população, organização de rede para cuidados específicos, oferta de espaço para discussão técnica entre profissionais e para criação de redes locais, além de suporte a dificuldades vivenciadas pelos serviços e pela população.
1 Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Direitos da população LGBT. Relatório Final - 3a Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília; 2016: 126p 2 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Composição do Comitê LGBTI da Secretaria Municipal de Saúde. Diário Oficial da Cidade de São Paulo; 2019 Junho(27); 64(119): 28. 3 Secretaria Municipal de Saúde (São Paulo). Portaria no347/2021/SMS - Institui o Comitê Técnico de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo e demais pessoas contidas na sigla LGBTIA+. Diário Oficial da Cidade de São Paulo; 2021 Julho(31); 66(149): 25.
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15 Em Julho de 2020, o Comitê publicou seu primeiro documento norteador, o “Protocolo para o atendimento de pessoas transexuais e travestis no município de São Paulo” e, atualmente, publica esta sua nova versão, revisada e ampliada. A implementação deste protocolo é norteada pela Política Municipal de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+, acompanhada pelo Comitê Técnico de Saúde Integral de LGBTIA+ da SMS e avaliada por processos nas instâncias. As unidades de saúde que se preparam para atender as pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero, através de formações ou de organizações internas, passam a integrar a Rede Sampa Trans.
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Elucidação sobre a escolha dos termos utilizados neste protocolo
Pessoas Trans, Travestis ou com Vivências de Variabilidade de Gênero Muitos termos são utilizados para referir-se às pessoas cujo gênero diverge daquele que foi designado ao nascer. Existem disputas políticas e acadêmicas que defendem e justificam o uso de nomenclaturas diversas e o grupo de pessoas autoras deste protocolo tem ciência de que a escolha por qualquer termo consagrado tem a potência de, inadvertidamente, impactar na compreensão sobre direitos e cuidados a serem oferecidos a essa população. Neste documento, o termo “pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero” será utilizado com a intenção de abranger todas as pessoas que não se reconhecem com o gênero atribuído ao nascimento, como esforço de manter o texto compreensível e evitar exclusões. Portanto, aquelas pessoas que não se identificam com esses termos também devem ser contempladas com as propostas de cuidado presentes neste texto. (ver Gênero e identidade de gênero) Esse termo foi definido em reunião aberta realizada em 28/01/2022, por membros do Comitê Técnico de Saúde Integral de LGBTIA+ da SMS e por munícipes de São Paulo, após discussões sobre nomenclaturas não excludentes e que melhor representariam as identidades de pessoas que não se reconhecem com o gênero designado ao nascimento.
Afirmação de Gênero A fim de auxiliar e respaldar o processo de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero em busca de se afirmar à sociedade, este protocolo alinha-se sob a perspectiva afirmativa de gênero. Por isso, sob recomendação do movimento social organizado, neste documento se utiliza o termo afirmação de gênero, ao invés de outros termos comumente utilizados (como transição de gênero, adequação de gênero ou “processo transexualizador”), para referir-se a todas as medidas e transformações adotadas ou desejadas pelas pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero ao longo de sua trajetória na busca de bem-estar associado ao seu gênero. Entende-se que a compreensão da identidade não deve ser pautada em práticas patologizantes e endossexo-cis-heteronormativas, visto que é um processo plural, que demanda um olhar integral e abrangente à pessoa. Portanto, cabe a profissionais de saúde apoiar cada pessoa na sua busca por bem-estar, inclusive quando isso inclui estratégias específicas de afirmação de gênero.
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17 Elucidação sobre o uso do gênero linguístico feminino na redação deste documento
Utilizar a linguagem como um elemento inclusivo e de promoção da igualdade de gênero é um desafio social e, portanto, um desafio que atinge também serviços de saúde. Como é responsabilidade de todos os serviços de saúde enfrentar todas as formas de discriminação e segregação, pensar sobre o uso da linguagem torna-se uma importante ferramenta inclusiva. Uma das formas mais sutis de ação da discriminação de gênero é a língua, pois essa nada mais é que o reflexo de valores e ideais da sociedade que a cria e utiliza. Nada do que é dito é neutro: todas as palavras têm uma leitura e muitas delas se relacionam a gênero. Assim, a língua não só reflete, mas também transmite e reforça os estereótipos e papéis considerados adequados para mulheres e homens em uma sociedade.4 Entendemos que a linguagem é arbitrária, que é também uma fonte de representação e de poder. É importante compreender, portanto, que as palavras utilizadas no dia a dia
representam ideologias e compõem a forma como construímos o imaginário. Convencionou- se na gramática do português brasileiro utilizar generalizações no masculino normativo ao se
referir a um grupo de pessoas, desde que nele haja pelo menos um homem. Tal uso tem como consequência a invisibilidade do feminino nos discursos e, consequentemente, nos espaços. Para além disso, a língua portuguesa é fortemente marcada por gênero, pois há flexões de gênero masculino ou feminino em diversos grupos de palavras (substantivo, adjetivo, pronome, artigo). Na busca pela inclusão e pelo reconhecimento de gêneros não binários na linguagem, é crescente o uso da linguagem de gênero neutro – aquela que não indica nem masculino nem feminino - ao utilizar-se flexões neutras como terminações em “e” ou “u”: como menine ao invés de menina ou menino, ou elu ao invés de ela ou ele. 5 Existem também outras maneiras de se utilizar linguagem não excludente, como evitar palavras marcadas por gênero, optar por palavras unissex e utilizar essas palavras para neutralizar aquelas marcadas por gênero, como por exemplo utilizar pessoas usuárias de
4 De Toledo LC, Da Rocha MAK, Dermmam MR, Damin MRA, Pacheco M, editors. Manual para o uso não sexista da linguagem - o que bem se diz, bem se entende. [Internet]. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul; 2014: 114 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20para%20uso%20n%C3%A 3o%20sexista%20da%20linguagem.pdf 5 Dos Santos ALP. Língua para todes: um olhar formal sobre a expressão do gênero gramatical no Português e a demanda pela língua(gem) inclusiva. Revista Ártemis. 2019; 28(1): 160–178, 2019. DOI: 10.22478/ufpb.1807- 8214.2019v28n1.41827. [acesso em 17 mar 2023] Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/view/41827
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18 saúde ao invés de usuária ou usuário.6,7 Entretanto, para certos tipos e gêneros textuais, essa técnica pode dificultar a leitura, pois torna o texto prolixo e repetitivo. A partir dessas considerações, o Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+ escolheu adotar o feminino para generalizações, na elaboração deste documento. Ele terá como referencial linguístico a palavra "pessoas" (ex. pessoas usuárias) que será ocultada para que haja mais fluidez na leitura, sendo utilizado, portanto, apenas "usuárias". Dessa forma, o feminino será utilizado também para se referir a pessoas de diferentes categorias profissionais (por exemplo: médica, enfermeira, psicóloga) no decorrer do texto, para dar visibilidade às profissionais atuantes dessas áreas, que são frequentemente invisibilizadas pela língua. Algumas instituições, como o Conselho Regional de Psicologia,8 adotam as mesmas medidas de padronização linguística. É importante ressaltar que apesar de o texto estar escrito no feminino ele não exclui homens trans e outras pessoas masculinas, pois essa é apenas uma convenção linguística adotada para padronização. O gênero linguístico escolhido para este documento também não impossibilita o uso de linguagem neutra no tratamento de pessoas que prefiram ser tratadas com pronomes neutros (ver Recepção).
6 De Toledo LC, Da Rocha MAK, Dermmam MR, Damin MRA, Pacheco M (edit.). Manual para o uso não sexista da linguagem - o que bem se diz, bem se entende. [Internet]. Porto Alegre: Governo do Estado do Rio Grande do Sul; 2014: 114 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3034366/mod_resource/content/1/Manual%20para%20uso%20n%C3%A 3o%20sexista%20da%20linguagem.pdf 7 Nogueira SNB, Marquez ME, Cruz D, Araújo TA. Manual da Linguagem Inclusiva e Não Sexista para Organizações e Administração Pública. RedeTrans (Rede Nacional de Pessoas Trans - Brasil) e Travessia (Observatório Nacional de Violações de Direitos e Mortes de Pessoas Trans). 2022 [acesso em 11 abr 2023].
Disponível em: https://storage.googleapis.com/wzukusers/user- 31335485/documents/d7735426ad0c48b79ce1705366021c58/manual%20da%20linguagem%20inclusiva%20e%
20n%C3%A3o%20sexista%20para%20organiza%C3%A7%C3%B5es%2C%20escolas%20e%20administra%C3 %A7%C3%A3o%20p%C3%BAblica.pdf 8 Conselho Federal de Psicologia. Caderno de Deliberações do 10o Congresso Nacional da Psicologia. Jun 2019
[acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- content/uploads/2019/09/Caderno_delibera%C3%A7%C3%B5es_10_CNP_web_8_outubro_FINAL.pdf
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Conceitos e abordagem em sexualidade
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Abordagem Muitas formas de comunicação realizadas em serviços de saúde podem ser violentas e inadequadas, por isso é fundamental atentar para a forma de comunicação e para a abordagem realizada a todas as pessoas. É necessária atenção especialmente à abordagem de pessoas LGBTIA+, que costumam ser estigmatizadas e negligenciadas dentro dos serviços de saúde. De maneira prática, este capítulo traz quadros com erros comumente cometidos por profissionais de saúde na abordagem de pessoas LGBTIA+ (na coluna vermelha), assim como exemplos de abordagens não excludentes (na coluna verde) e explicações (na coluna amarela).
Quadro 1 – Sistematização utilizada para as recomendações sobre a abordagem dos aspectos da sexualidade por profissionais de saúde
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Nesta coluna será apresentado: -O que não fazer durante a abordagem -Comportamentos que devem ser evitados ou substituídos -Exemplos de ações inadequadas
Nesta coluna será apresentado: -Problemas gerados por abordagens inadequadas -Justificativas para substituir a forma de abordagem
Nesta coluna será apresentado: -O que fazer durante abordagem -Dicas e sugestões de como abordar -Exemplos de frases que podem ser utilizadas na abordagem, entre aspas.
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Sexualidade
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define sexualidade como “um aspecto central do bem-estar humano, que envolve sexo, identidade de gênero, papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é expressa e experienciada em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e/ou relacionamentos”.9 Portanto, ela é inerente à vida de todos os seres humanos, se inicia no nascimento e se encerra na morte, é ampla, dinâmica e mutável. A sexualidade pode englobar diferentes ângulos da ciência e recebe influência sociocultural, abrangendo emoções, sentimentos, crenças e concepções de todos os processos de socialização. Influencia a maneira de indivíduos serem, se inserirem na sociedade e se posicionarem no mundo. Portanto, uma abordagem integral em saúde inclui conhecer o gênero de uma pessoa e os demais aspectos que ela relaciona à sua sexualidade.
9 Organização Mundial de Saúde. Defining Sexual Health - Report of a technical consultation on sexual health. jan 2002, Geneva. Disponível em: https://www.who.int/reproductivehealth/publications/sexual_health/defining_sexual_health.pdf?ua=1
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Quadro 2 – Recomendações para a abordagem da sexualidade em geral ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Acreditar que todas as pessoas sabem que é possível conversar sobre sexualidade com profissionais de saúde
Serviços e profissionais de saúde tendem a reduzir a abordagem da sexualidade e de suas vivências às demandas reprodutivas e relacionadas às IST. Esse comportamento voltado às ações programáticas educam a população atendida para acreditar que essas são as únicas necessidades de saúde voltadas à sexualidade que podem ser legitimamente tratadas em um serviço de saúde.
“Como anda a vivência da sua sexualidade?” “Você gostaria de conversar sobre algo relacionado à sexualidade?” “Se em algum momento quiser conversar sobre alguma questão
relacionada à sexualidade, sinta- se à vontade”
Não agir ativamente para garantir o sigilo de informações compartilhadas durante as consultas
Pessoas que não confiam no cuidado com a sua privacidade evitam falar de assuntos complexos. A população atendida pelo serviço de saúde observa quando são realizados atendimentos com portas abertas ou perante outras pessoas, o vazamento de informações para demais membros da família e da comunidade, a facilidade com que um prontuário pode ser indevidamente consultado e mesmo as trocas de informações entre a equipe que acontecem sem seu consentimento explícito.
Oferecer um espaço durante a consulta sem a presença da pessoa acompanhante, mesmo para crianças, adolescentes e pessoas dependentes de cuidados. Informar o direito ao sigilo das informações tratadas na consulta e garanti-lo sempre, mesmo em relação a demais membros da equipe de saúde que não realizam atendimento clínico (como recepcionistas e agentes comunitárias de saúde). Solicitar consentimento para compartilhar informações com demais profissionais.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Construções sociais sobre gênero
O conceito de gênero foi criado pelas ciências sociais como produto do movimento feminista, que expôs incongruências do sistema sexo-gênero, suas hierarquias e suas classificações sociais.10 Gênero é um aspecto existente em contexto comunitário, construído socialmente a partir da percepção inicial da diferença corporal, suas simbologias e significados. Ser mulher ou homem é diferente em cada sociedade e varia ao longo da história. Essas diferenças hierarquizam as relações e, portanto, resultam em estruturas de poder e desigualdade em uma lógica dual.11 Portanto, individualmente, a compreensão e a percepção de gênero podem variar de acordo com as vivências e contextos sociais. Cabe a profissionais de saúde acolher essas percepções e respeitá-las em ambiente seguro, sem demandar por justificativas e livre de julgamentos. Os comportamentos e demais características sociais relacionadas a cada gênero binário (mulher e homem) não são inerentes às características cerebrais de corpos tipicamente fêmeas e machos.12 Apesar disso, ainda há muitas crenças de que mulheres e homens seriam diferentes por seus cérebros serem diferentes, desconsiderando a variação do desenvolvimento de habilidades gerada por diferentes estímulos durante a socialização e naturalizando esse determinismo biológico. Profissionais de saúde podem atuar pela desmistificação desse determinismo e pela promoção de um olhar abrangente sobre gênero. É importante incluir gênero e os demais aspectos atribuídos à sexualidade entre as perguntas utilizadas para conhecer a pessoa em uma anamnese, oferecendo um espaço seguro para isso. O nome e os pronomes femininos (correlacionados ao gênero mulher), masculinos (correlacionados ao gênero homem) ou neutros com os quais a pessoa prefere ser tratada também devem fazer parte das perguntas habituais durante um atendimento de saúde. (ver nome social) Profissionais nunca devem deduzir informações a partir de seus próprios valores e percepções.
10 Garcia CC. Breve história do feminismo. São Paulo: Editora Claridade; 2011. 11 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Vol. 20, Porto Alegre: Educação & Realidade. 1995; 20(2): 71–99. 12 Eliot L, Ahmed A, Khan H, Patel J. Dump the “dimorphism”: Comprehensive synthesis of human brain studies reveals few male-female differences beyond size. Neurosc Biobeha Rev 2021; 125: 667-697.
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24 Quadro 3 – Recomendações para a abordagem de construções sociais sobre gênero ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que todas as pessoas possuem a mesma compreensão sobre diferentes gêneros
Uma parcela da população brasileira não se identifica com o gênero designado ao nascimento (ver Identidade de Gênero), mesmo que não sejam lidas como pessoas trans ou travestis pela maior parte das pessoas
Em uma primeira consulta, pergunte “Qual o seu gênero?”
Assumir que é possível deduzir o gênero de uma pessoa a partir de alguma característica sua, utilizando nossa própria construção sobre diferentes gêneros
Muitas pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero não apresentam expressão de gênero reconhecidamente diferente do gênero designado ao nascimento (ver identidade de gênero). Se não oferecermos espaço para que nos comuniquem seu gênero, possivelmente essas pessoas jamais falarão sobre isso com profissionais de saúde que a atendem.
“Com qual gênero você se identifica?” “Você se identifica como mulher, homem, pessoa não binária ou com outro gênero?” “Quais pronomes devemos usar para você? Femininos, masculinos, neutros? (ex: ela/ele/elu, dela/dele/delu, senhora/senhor/senhore?)”
Achar que a pessoa se sentirá ofendida ao perguntar sobre gênero, por considerar uma única forma de ver o gênero a todas as pessoas
Não é ofensivo oferecer espaço para que a pessoa comunique a profissionais de saúde sobre suas vivências, mas é ofensivo e excludente ignorar as diversidades relacionadas a gênero.
Caso a pessoa se ofenda com a pergunta, aborde possíveis LGBTIA+fobias / comportamentos violentos dessa pessoa e realize educação em saúde voltada para a diversidade
Acreditar e propagar a falsa informação de que seres humanos fêmeas e machos agem de uma determinada forma estereotipada de gênero por questões biológicas e de constituição cerebral
O que entendemos por ser mulher e por ser homem na sociedade são construções sociais que são diferentes em diferentes culturas, em diferentes grupos sociais e em diferentes momentos históricos. Cada pessoa também tem sua própria percepção sobre gênero.
“O que significa ser mulher, para você?” “Como é, para você, ser um homem?” “Você quer conversar sobre isso? Hoje ou em outro momento?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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O corpo e suas características
O corpo é instrumento de existência e de relacionamento entre as pessoas. Muito precocemente atribui-se a uma pessoa identidades relacionadas ao seu corpo, as quais com base em estigmas e construções culturais históricas, instrumentalizam a percepção de outras pessoas em relação a ela (por exemplo: cor da pele e etnia). Algumas diferenças entre os corpos são habitualmente relacionadas às percepções sociais de gênero: ● Genótipo (genes e cromossomos X/Y): combinações XX, XY, XXY, XYY, XXX e outras variações genéticas existentes, conhecidas ou não; ● Genitália (parte dos caracteres sexuais primários): vulva, vagina, pênis, testículos típicos e variações; ● Gônadas e útero: ovários, útero, testículos, ovotestis; ● Caracteres de origem hormonal (ou secundários): mamas, aumento das genitálias, pilificação corporal, aumento da secreção sebácea, distribuição de gordura corporal, desenvolvimento muscular, menstruação e ciclos ovulatórios, ejaculação e produção de espermatozoides, crescimento de cartilagem tireoide, alterações na voz etc.
As características do corpo podem ser utilizadas para que o gênero com o qual a pessoa vai ser inicialmente socializada seja estabelecido, mas não define nenhuma característica própria da pessoa (como a identidade de gênero, a expressão de gênero e a orientação sexual). Estima-se que 1,7% da população mundial tenha algum grau de variabilidade entre essas características genéticas, genitais, de gônadas, de órgãos com potencial função reprodutiva ou de respostas hormonais, de forma que não haja uma linearidade típica entre elas (ex. nem todas as pessoas com cromossomos XX têm vulva e vagina típicas, útero e ovários, assim como podem ter todas essas características, mas não responder aos hormônios endógenos de forma típica durante a puberdade). (Ver Intersexo) As características do corpo, isoladamente, não determinam quem nós somos, mas elas subsidiam as comunidades quanto à forma como as pessoas são apresentadas ao mundo e como são tratadas ao nascer. As pessoas são designadas como mulher ou homem (de forma binária) com base na sua genitália (vulva ou pênis, tipicamente), o que é acompanhado por expectativas para esse corpo em relação à expressão de gênero, à identidade de gênero e aos papéis sociais de gênero.
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26 Quadro 4 – Recomendações para a abordagem do corpo e de suas características tradicionalmente relacionadas à percepção de gênero ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Perguntar sobre a genitália de uma pessoa, se essa informação não colabora para a elaboração de um plano de cuidado relacionado à necessidade da pessoa atendida
A curiosidade sobre as genitálias de uma pessoa “trans” é uma das formas mais frequentes de violência e de deturpação do atendimento, pois a não ser que a pessoa tenha necessidade ou vontade de falar sobre essa parte específica do seu corpo, essa abordagem invasiva e desnecessária representa a transfobia de quem pergunta - pela reprodução da crença de que há naturalidade entre genitália e gênero, como se uma pessoa que não se sente confortável com o gênero designado ao nascimento devesse também estar desconfortável com seu corpo.
Perguntar se a pessoa deseja conversar sobre o seu corpo, caso não seja o tema da consulta. Ex: “Você gostaria de conversar sobre alguma questão relacionada ao seu corpo? Por exemplo, sua genitália? O que você quer falar sobre isso?” “Há algo sobre sua genitália que lhe incomoda, ou sobre a qual você gostaria de falar?”
Assumir que não existem outras nomenclaturas para referir-se a partes do corpo que relacionamos à categorização de sexo no momento do nascimento.
A disforia corporal relacionada à gênero pode ser agravada com termos que são habitualmente associados a um certo sexo ou gênero diferente daquele com o qual a pessoa se sente mais confortável. Por isso, algumas pessoas preferem evitar sofrimentos e referir-se a essas partes do corpo com palavras diferentes das utilizadas pela descrição anatômica. Ex: ao invés de genitália, pode ser preferido “partes baixas”, “pintinho”, “cuceta”, etc.
“Você se incomoda com as palavras que usamos para descrever alguma parte do corpo?” “Podemos falar “clitóris” / “mama” / “pênis” ou prefere que utilizemos outra palavra?” “Como prefere que a gente se refira à sua genitália?”
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Usar o termo “sexo biológico” Ex: “Mulheres transexuais com sexo biológico masculino.” “Colher papanicolau para pessoas do sexo biológico feminino” “Ele está passando pela puberdade do sexo biológico feminino”
Por mais que esse termo tenha sido disseminado na prática médica, ele induz à percepção de que algumas características de corpo são exclusivas de seres fêmea ou macho. Além disso, o adjetivo “feminino” ou “masculino” que se associam a esse termo associam as características do corpo a feminilidade ou a masculinidade. Isso não pode ser entendido como verdade, pois o pênis de uma mulher transexual é feminino se ele faz parte de uma pessoa feminina, assim como a vulva de um homem trans é masculina se ela faz parte de uma pessoa masculina.
Refira-se exatamente à característica do corpo da qual é necessário tratar na comunicação. Além de não ser excludente, não serão necessárias explicações ou reconsiderações caso uma pessoa tenha realizado transformações corporais ou tenha nascido com um corpo com características que não são todas típicas de fêmea ou de macho ex: “Mulheres transexuais que têm pênis.” “Colher papanicolaou de pessoas com colo do útero.” “Ele está passando pela puberdade e desenvolvendo mamas.”
Utilizar o termo “órgãos reprodutores”
Ovários, testículos, útero, canal vaginal, pênis e outras estruturas associadas à função reprodutiva têm também outros papéis na fisiologia, na existência e na vivência das pessoas. Além disso, muitas pessoas não desejam ou não irão se reproduzir ao longo da vida, o que não torna essas estruturas indesejáveis ou inutilizáveis. Descrever esses órgãos como meramente reprodutivos pode gerar sofrimento e exclusão a muitas pessoas.
Refira-se simplesmente ao órgão sobre o qual pretende conversar: útero, ovários, testículo, pênis, etc.
Utilizar o termo “Cromossomos sexuais” Ex: Cromossomos sexuais masculinos, XY
Os cromossomos X e Y estão ligados ao desenvolvimento de muitas características corporais que são analisadas pela sociedade e pela medicina para categorizar as pessoas, nos seus registros civis (sexo feminino ou sexo masculino). No entanto, essa associação entre cromossomos e características corporais, ou entre cromossomos e sexo de registro não pode ser generalizada. Por esse motivo, esse termo pode trazer sofrimento e exclusão, principalmente para pessoas intersexo
Refira-se simplesmente a cromossomos X e Y Ex: “Ela tem cromossomos XXY” “Ele tem cromossomos XX”
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que a pessoa tem ou não disforia corporal relacionada a gênero
Nem todas as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero têm sofrimentos em relação a partes de seus corpos, mesmo que escolham transformá-las. Esse sofrimento, quando existente, deve ser conhecido por profissionais de saúde, para que seja oferecido diálogo e cuidados específicos.
“Como você se sente em relação ao seu corpo? Você tem desconforto ou não se sente bem com alguma parte do corpo?” “Você gostaria de conversar sobre algum desconforto com essa região do seu corpo?” “Você conseguiria me explicar seu desconforto com essa parte do corpo?” “O que não faz bem para você, nessa parte do corpo?”
Ignorar que a voz é uma representação do corpo
É comum pessoas trans travestis e com vivências de variabilidade de gênero terem disforia da voz relacionada a gênero
“Como se sente em relação à sua voz?”
Acreditar que a disforia relacionado ao gênero é o único sofrimento corporal possível em pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero
A representação corporal extrapola a percepção de gênero e, por motivos diversos e complexos, são diferentes para cada pessoa. Isso pode envolver a apresentação através de fotos ou vídeos, contato físico, exame físico ou outros.
“Você tem alguma outra dificuldade em expor sua imagem?” “Como se sente quando tocam no seu corpo?” “Tem alguma outra questão relacionada ao seu corpo que gostaria de me contar?”
Oferecer somente abordagens verbais a crianças
Estratégias lúdicas, como
brincadeiras, desenhos e até faz- de-conta podem ser mais
compreensíveis e interessantes para crianças.
“Quer fazer um desenho sobre o seu corpo?” “O que você pensa desse brinquedo? Quem brinca com ele? Como?” “Isso é um boneco ou uma boneca? Como é o corpo delu?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Sexo registrado em documentos
O campo “sexo” é preenchido em documentos de registro civil ao nascimento de uma pessoa de acordo com os dados constantes na Declaração de Nascido Vivo (DNV), que por sua vez é preenchida por profissionais da saúde após constatações das características corporais da criança, sendo a principal delas a genitália. Assim, o termo “sexo biológico” acaba não sendo adequado por misturar 2 conceitos distintos: o de características corporais tradicionalmente atreladas ao gênero (que são diversas) e o de registro civil (que ainda é utilizado de forma binária); portanto não se recomenda o uso do termo “sexo biológico” na abordagem e na atenção em saúde da população.13 Pessoas intersexo nunca devem sofrer intervenções em saúde precoces e desnecessárias à sua condição de saúde para que a geração de documentos de registro seja possibilitada. Pois, além das classificações hegemônicas de “sexo” (feminino ou masculino), a Declaração de Nascido Vivo indica que profissionais de saúde assinalem a opção “sexo ignorado” no caso de nascimento de pessoas intersexo com genitália atípica. (ver Intersexo) (ver Direitos) Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem alterar o sexo registrado em seus documentos civis, independentemente às suas características corporais. (ver Direitos)
13 Karkazis K. The misuses of “biological sex”. The Lancet 2019 Nov 23; 394:1898-1899.
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Quadro 5 – Recomendações para a abordagem do sexo de registro civil
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que a informação de sexo descrita no registro civil é suficiente para que conheçamos as características do corpo ou o gênero identitário de uma pessoa.
Pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero têm direito a retificar o campo de sexo em seus documentos de registro, independentemente de suas características corporais. Pessoas intersexo podem não possuir uma certa característica corporal que é tradicionalmente relacionada com o sexo de registro.
Refira-se à categoria “sexo” somente se for necessário tratar dos documentos de registro da pessoa. Ex: “qual sexo está descrito na sua certidão de nascimento? Feminino, masculino ou ignorado?”
Negar-se a preencher a Declaração de Nascido Vivo (DNV) a crianças Intersexo ou com Diversidade do Desenvolvimento Sexual.
Crianças intersexo têm direito a documentos de registro assim como todas as outras. A DNV e a Certidão de Nascimento não podem ser condicionadas à “escolha” de uma categoria de sexo (entre feminino e masculino) e muito menos a intervenções cirúrgicas.
Preencha o campo “sexo ignorado”, no preenchimento da DNV de crianças com genitálias atípicas e instrua a família para realizar o registro civil da criança (certidão de nascimento) o quanto antes.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Papéis sociais de gênero
Nas famílias, na comunidade e na sociedade como um todo, esperam-se comportamentos, cobram-se funções, possibilitam-se ocupação de espaços e oferecem-se poderes diferentes para homens e mulheres.14 Pode-se entender essa segmentação de expectativas e estigmas dentro de espectros abrangentes e que não se limitam aos extremos dos modelos binários (homem-mulher, feminino-masculino, homossexual-heterossexual etc.), considerando construções sociais diversas, complexas e com muitas nuances. Quadro 6 – Recomendações para a abordagem de papéis sociais de gênero ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que uma pessoa tem ou pretende ter determinada ocupação ou profissão de acordo com seu gênero.
O machismo, a misoginia e o patriarcalismo aos quais toda a sociedade está acostumada podem ser reproduzidos e alimentados por profissionais de saúde, e ampliar as repercussões pessoais e coletivas negativas das violências já vividas por essas pessoas no ambiente de trabalho.15
“Qual a sua ocupação?” “O que você faz ao longo dos seus dias?” “Você trabalha? Com o que você trabalha?” “Você estuda? Em que curso e ano da formação está?” “Você participa dos trabalhos domésticos? Quais são as suas responsabilidades?”
Agir como se fosse inesperado ou inadequado que uma pessoa ocupe um papel social tradicionalmente associado a um gênero diferente do seu.
Sabidamente mulheres tendem a receber menor salário do que homens ao executar uma mesma função e/ou ocupar um mesmo cargo.16 Esse fato escancara a normatização dos papéis de gênero em toda a sociedade, que maltrata e causa adoecimentos e não pode ser reproduzida por profissionais de saúde.
Não emita sua opinião pessoal, através de comunicação verbal ou não verbal, sobre a ocupação da pessoa.
14 World Health Organization. Report of a technical consultation on sexual health. Defining Sexual Health. 2002 January 28-31. Geneva; 2006: 5. 15 Amorim APA. Violência no mercado de trabalho e na academia In: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade [homepage na internet]. 03 dez 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em:
https://www.sbmfc.org.br/noticias/violencia-no-mercado-de-trabalho-e-na- academia/?fbclid=IwAR3DjlP4yNSwRoOezDVq0p7qnKJO_ZP0pXEUNQzg4bhCrayLHYBuYeQtJWE
16 Daroncho L, Assis VS. O lugar da mulher trabalhadora. Correio Braziliense 2018 jun 09 [acesso em 11 abr
2023]. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/publicacoes/artigos/o-lugar-da-mulher-trabalhadora-1/@@display- file/arquivo_pdf
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que os cuidados a crianças ou a pessoas dependentes são ou devam ser realizados por mulheres
Equipes de saúde devem atentar para o estresse de pessoas cuidadoras e oferecer cuidado a elas, com consciência de que mulheres são mais sobrecarregadas nessas funções.
“Quem faz os cuidados a essa criança?” “Como é dividido o cuidado oferecido a essa pessoa?” “Qual a responsabilidade de cada pessoa no cuidado dela?” “Quem ajuda nos cuidados, mas não se responsabiliza por eles?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Gênero Designado ao Nascimento
Tradicionalmente as pessoas são inseridas na sociedade a partir de uma classificação generificada binária, ou seja, como menina/mulher ou como menino/homem. A socialização como mulher ou homem influencia o desenvolvimento de habilidades das pessoas, o que gera popularmente a percepção de algumas características sociais serem inerentes a mulheres endossexo e de outras serem naturais de homens endossexo através de uma equivocada biologização do gênero. Quadro 7 – Recomendações para a abordagem de gênero designado ao nascimento ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Incentivar diferença no comportamento com meninas e meninos.
A reprodução de papéis de gênero dentro de serviços de saúde pode ser interpretada por familiares e pessoas tutoras de crianças como algo que deva ocorrer para que as crianças sejam saudáveis.
Não haja como se meninas e meninos devessem se comportar de maneira diferente ou se interessar por coisas diferentes.
Não oferecer espaço para que famílias e pessoas tutoras de crianças reflitam sobre o seu papel na vivência do gênero designado.
A reprodução de papéis de gênero na formação de crianças tende a ocorrer de forma automática e, na maioria das vezes, imperceptível. Colocar atenção nessa proliferação de percepções sobre gênero possibilita que famílias e pessoas tutoras de crianças decidam conscientemente como criá-las.
“Como foi para você, crescer sendo homem?” “Quais percepções sobre ser mulher você gostaria que sua filha tivesse?" “Quais percepções sobre ser homem você não gostaria que seu filho tivesse?"
Naturalizar a compreensão equivocada de que as características corporais determinam o gênero de uma pessoa.
O determinismo biológico de gênero não é comprovado cientificamente, portanto reproduzi-lo em consultas significa deixar de oferecer à população atendida as melhores práticas clínicas baseadas em evidências. Há evidências científicas de que os cérebros de pessoas que nascem com corpos tipicamente fêmea e tipicamente macho têm as mesmas funcionalidades.17
Não correlacione diretamente as características corporais de uma pessoa com seu gênero. Ofereça espaço de diálogo para as pessoas que demonstram concepções equivocadas sobre gênero.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim 17 Eliot L, Ahmed A, Khan H, Patel J. Dump the “dimorphism”: Comprehensive synthesis of human brain studies reveals few male-female diferences beyond size. Neuroscience and Biobehavioral Reviews 2021; 125: 667-697.
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Identidade de gênero
A identidade de gênero de uma pessoa é autodeterminada a partir de suas próprias referências, independentemente do gênero designado ao nascimento – atribuído a partir de uma correlação naturalizada entre a genitália e o que se espera socialmente de uma pessoa. Essa naturalização gera expectativas que podem significar um “peso” sobre as pessoas durante toda a sua vida, mas que não necessariamente correspondem às suas vivências. Pela atual literatura e compreensão da sociedade civil organizada, são consideradas pessoas cisgênero aquelas que se reconhecem com o gênero designado ao nascimento, por exemplo: uma vulva foi identificada, o gênero "mulher" foi designado, a pessoa foi registrada como "sexo feminino" e a pessoa é "mulher". A maioria das pessoas cisgênero não passa pelo processo de questionar seu gênero designado ao nascimento, mesmo que questionem as imposições sociais de gênero. Já uma pessoa trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero passa por esse processo de questionar o gênero atribuído ao nascimento e de não se reconhecer nele, por exemplo: uma vulva foi identificada, o gênero “mulher” foi designado, a pessoa foi registrada como “sexo feminino” e não é “mulher”. A literatura científica utiliza os termos “transgeneridade” / “transgênero” (ou a abreviação Trans) para fazer referência à identidade e vivência de gênero de pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer ou não o experienciam, utilizando o termo como "conceito guarda-chuva" – dentro do qual cabem diferentes identidades. No entanto, haver conceitos bem estabelecidos e aceitos pela maioria da população científica e da sociedade civil não garante que todas as pessoas se identifiquem desta maneira. Termos e conceitos relacionados à identidade de gênero estão em disputa dentro de diferentes contextos e, por questões históricas e políticas diversas, o movimento social utiliza no Brasil também os termos transexualidade / transexual ao invés de “transgeneridade” / ”transgênero”.18 O termo “transexualismo” é obsoleto e não é utilizado neste documento pela carga patologizante que o sufixo “ismo” carrega – um dos motivos pelos quais a CID-11 não o utiliza. O movimento LGBTIA+ brasileiro definiu, como estratégia política de reconhecimento de identidades definidas pela letra "T", os termos “travestis”, “mulheres transexuais” e “homens trans” para referir-se a essa população em documentos oficiais,10 embora outros termos e nomenclaturas também sejam utilizados rotineiramente pelo movimento social (por exemplo: mulheres trans, pessoas transmasculinas, pessoas transfemininas, pessoas não
18 Bento BAM. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense; 2008: 328. (Primeiros Passos)
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35 binárias (NB), transvestigênere etc. No município de São Paulo, em reunião aberta do Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+ com pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascimento, definiu-se que o melhor termo para ser utilizado no contexto deste protocolo é “pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero”. Além do caráter identitário, alguns conceitos podem ser usados como forma de descrever vivências biossociais comuns, enquanto não forem estabelecidas outras formas não patologizadoras de se denominar alguns públicos nos serviços de saúde. Clinicamente, como forma de categorizar as demandas e ofertas de cuidados em saúde de uma pessoa ou de uma população, utiliza-se o termo pessoas transmasculinas para referir-se àquelas pessoas que foram designadas mulheres ao nascimento e não se reconhecem ou não se reivindicam enquanto mulheres, não necessariamente se entendendo enquanto homens trans, mas também podendo incluí-los. O termo pessoas transfemininas também pode ser usado clinicamente e fora de um contexto identitário, para referir-se àquelas pessoas que foram designadas homens ao nascimento e não se reconhecem ou não se reivindicam enquanto homens, sem necessariamente serem mulheres trans e travestis, mas também as incluindo. Além de serem termos categorizadores de demandas para o serviço de saúde, os termos “pessoa transmasculina” e “pessoa transfeminina” também podem representar a própria identidade de gênero, por exemplo: uma pessoa transmasculina pode possuir a identidade de gênero transmasculina, enquanto outra pode identificar-se como homem trans. Ambos termos (pessoas transfemininas e pessoas transmasculinas) são “termos guarda-chuva” para essas e outras identidades, binárias (homem e mulher) ou não. Expressões e termos derivados ou semelhantes incluem “transmasculinidade”, “transfeminilidade”, assim como o uso de adjetivos como em “identidades e expressões transmasculinas e transfemininas”. Apesar de ainda recente, a proposta do uso destes termos se justifica tendo em vista a recorrente necessidade de designarmos as maneiras específicas e compartilhadas pelas quais as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero vivenciam as suas expressões de gênero em nossa sociedade. (ver Transversalidades - Identidades Trans). A não-binaridade pode ser entendida também como um “termo guarda-chuva” que engloba diversas identidades de gênero diferentes. Pessoas não binárias são aquelas que não se identificam completamente com o padrão binário de gênero, que reconhece apenas os gêneros Mulher e Homem. Existem inúmeras identidades sob o guarda-chuva da não binaridade. (ver Transversalidades - Identidades Não Binárias) Ao longo deste documento, todas as pessoas de gênero diferente daquele atribuído ao seu nascimento são referidas pelo termo “pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidades de gênero”, com a finalidade de homogeinização do texto. Porém cada
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36 pessoa pode identificar-se com um termo diferente e cabe a profissionais da saúde oferecer espaço para que a pessoa exponha a palavra que melhor a define e/ou como prefere que se refiram a ela, assim como os pronomes. (ver Cadastro e Identificação) O motivo de especificar o termo travesti é o fato de representar uma construção identitária brasileira, especialmente marginalizada pela nossa história. Esse termo foi disseminado em nossa cultura no final da década de 1930, associado à prostituição, exibicionismo, baixa escolaridade, furtos e comportamentos “imorais”, devido à marginalização social que atravessava as vivências dessas pessoas.11 Trata-se de uma construção que se aproxima do gênero mulher, diferente do gênero designado ao nascimento, que se reverbera na vida social, familiar, cultural e interpessoal através dessa identidade.12 Portanto, utilizam-se pronomes femininos: "a"/"ela"/”dela”, a não ser que a pessoa reivindique outro tratamento. (ver identidades relacionadas a gênero) Embora historicamente o termo "travesti" tenha sido utilizado na medicina como uma categoria diagnóstica, deve-se entendê-lo como uma identidade. O termo transvestite foi criado pelo médico alemão Magnus Hirschfeld, durante estudos de identidade de gênero, e corresponde, no português do Brasil, a crossdresser, não a "travesti” – palavra que não tem correspondência de seu significado brasileiro em língua estrangeira. O termo “travesti” foi utilizado para diferenciar as pessoas que não desejavam cirurgias de redesignação genital daquelas que desejavam - essas equivocadamente chamadas de "transexuais verdadeiras" como se somente quem desejasse mudar completamente seu corpo fosse transexual. É preciso ter clareza de que o desejo de transformação corporal não indica a identidade de gênero ou a forma com a qual uma pessoa pretende ser reconhecida socialmente. Por motivo de resistência e de ressignificação histórica da palavra, algumas pessoas transfemininas se posicionam politicamente como “travesti”, utilizando o termo como sinônimo de “mulher transexual”, sem a intenção de que seja indicada diferença da identidade de gênero entre as pessoas que gostariam e as que não gostariam de realizar transformações em seu corpo.19 É importante compreender que os sentidos a respeito dos termos utilizados pelo movimento social organizado, pela academia, por pessoas pesquisadores e pelas próprias pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero para designar as suas identidades de gênero é algo complexo. Trata-se de uma construção ao mesmo tempo subjetiva, coletiva e histórica – que está, por isso, em constante adaptação e evolução, em conformidade com as múltiplas necessidades individuais e coletivas e os diálogos internos entre a própria comunidade. A escolha e uso de determinado termo deve levar em consideração as necessidades de designação de experiências e questões
19 Lanz L. Dicionário Transgênero. Rio de Janeiro: Ed Transgente. 2016: 26.
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37 compartilhadas e/ou específicas entre os indivíduos de determinada categoria, tendo em vista a reivindicação de direitos coletivos, o combate à discriminação e a abordagem das diversas vulnerabilidades sociais. Existem representações relacionadas ao gênero que não devem ser atribuídas ao gênero de uma pessoa e, portanto, não devem ser compreendidas como transgeneridade/transexualidade/travestilidade por si só. Uma pessoa crossdresser (ou CD) sente-se bem ao utilizar vestimentas e comportar-se de acordo com o esperado para um gênero diferente daquele com o qual se identifica, por motivos diversos e na maioria das vezes somente em situações específicas. Uma pessoa que atua como transformista, drag queen ou drag king realiza performances artísticas representando de maneira exagerada estereótipos de gênero atribuídos a mulheres (drag queen) ou homens (drag king), sem que essa performance denote seu gênero. Entretanto, pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem ter práticas de cross-dressing, performar como transformista ou como drag. Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem ou não realizar transição social de gênero, mudando a maneira que se apresentam socialmente em relação ao gênero. É comum que seja adotado outro nome, usando o nome social ou alterando os documentos quando possível e desejado, e realizem alterações corporais, mas isso não é um pré-requisito e nem deve ser usado para validar a autodeclaração das pessoas. Pesquisas realizadas em diversas populações mundiais concluíram que pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero correspondem a 0,5% a 1,3% da população geral.20 No Brasil, quase 2% da população não se identifica com o gênero designado ao nascimento.21 O modelo binário de gênero (que considera apenas homem ou mulher) é limitado para descrever todas as variabilidades de identidades e de experiência de gênero. Portanto, os gêneros precisam ser compreendidos como espectros, em que as pessoas podem reconhecer-se mais ou menos próximas de cada um deles.22 A Figura 1 explica os espectros de gênero.
Figura 1 – Gênero como espectros 20 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016; 388(10042): 390–400. 21 Spizzirri G et al. Proportion of people identified as transgender and non-binary gender in Brazil. Scientific Reports. 2021; 11: 2240. 22 Mardell A. The ABCs of LGBT. Florida: Mango Media; 2016: 190.
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Fonte: Nimbus Aragón, disponível em: Instagram.com/nimbusdesenios.
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39 Profissionais de saúde precisam acolher a percepção individual da pessoa em relação ao termo utilizado para referir-se ao seu gênero. Importante reforçar que profissionais de saúde não devem, sob quaisquer circunstâncias, determinar o gênero de uma pessoa ou a nomenclatura que a define, da mesma forma como as necessidades e demandas dessa pessoa devem ser respeitadas e legitimadas.
Quadro 8 – Recomendações para a abordagem de identidade de gênero ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Não oferecer nome social
Embora seja um direito reconhecido, muitas vezes profissionais acreditam que é sua a responsabilidade de ofertar o uso de nome social. No entanto, o uso do nome social deve ser oferecido e ofertado por todas as pessoas profissionais. O desrespeito ao nome social é uma violência institucional e pessoal.
Pergunte: “Como você gostaria que eu te chamasse?” “Você tem outro nome que prefere que a gente use?” “Chamamos você assim ou de outra forma?” Se a pessoa desejar, imprima o CNS com o nome social e o utilize em todos os formulários, sistemas de informação e impressos do serviço de saúde.
Supor que é possível saber com qual gênero a pessoa se identifica sem que ela nos tenha dito
O corpo, o sexo de registro, a expressão de gênero, o papel de gênero ou qualquer característica que possamos obervar em uma pessoa não se relaciona, necessariamente, com sua identidade ou com suas vivências de gênero.
Pergunte: “Com qual gênero você se identifica?” “Você se identifica como mulher, como homem ou com outro gênero?” Registre essa informação na ficha de identificação e no prontuário da pessoa.
Tratar a pessoa com pronomes marcadores de um gênero diferente do qual ela prefere.
Tratar uma pessoa transmasculina como “ela”, “moça”, “senhora” ou de qualquer outra forma feminina não desejada, por qualquer que seja o motivo, simboliza o desrespeito do serviço de saúde com a identidade da pessoa. Uma pessoa transfeminina também não deve ser tratada como “ele”, “rapaz”, “senhor” ou de qualquer forma que não seja desejada.
Pergunte: “Quais pronomes você prefere que sejam utilizados por mim e por todas as outras profissionais, quando nos referirmos a você? Femininos, masculinos ou neutros?” “Quais pronomes você utiliza?” “Você prefere que a gente se refira a você? Como ela ou ele? Senhora ou senhor? Prefere que a gente use outra forma?” Registre essa informação na ficha de identificação e no prontuário, para que profissionais utilizem sempre os pronomes indicados pela pessoa.
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Usar pronomes inadequados por dificuldade de abordar o assunto
Muitos atendimentos em serviços de saúde são atravessados por dificuldades de abordar questões identitárias, como ausência de privacidade, medo de constrangimento ou até mesmo urgência em resolver a demanda em saúde apresentada.
Caso a pessoa que esteja realizando o atendimento ainda não se sinta confortável em
perguntar sobre pronomes, pode- se evitar o uso de palavras
generificadas e referir-se à pessoa somente pelo nome ou por “você”.
Utilizar o termo “gênero oposto”.
Mulheres não são o extremo oposto aos homens, dentro de qualquer referencial de gênero. Além disso, esse termo induz à ideia de que só existem dois gêneros binários: mulher e homem.
Sempre considere que mulher e homem não são gêneros antagônicos, e que existem outras identidades de gênero
Justificar uma transfobia cometida, com base na sua percepção individual de gênero ou em qualquer outro motivo. Ex.: “É que eu olho pra você e vejo uma mulher, porque você tem peito grande! Como eu iria saber que você é homem?”
A percepção de profissionais sobre o gênero de pessoa não é um critério para a identidade e para as vivências de gênero daquela pessoa. Independentemente do motivo que nos levou a errar o gênero da pessoa, ele não deve ser utilizado como desculpa para a violência cometida.
Desculpe-se por não ter tratado a pessoa de acordo com o seu gênero. Responsabilize-se em atentar para que situações como essa não voltem a ocorrer.
Fazer elogios, ou comentários sobre o corpo da pessoa, com intenção de reforçar o gênero identitário dela. Ex.: Dizer para uma mulher transexual “seu peito é mais bonito do que o de uma mulher cis”.
A cisnormatividade impõe a percepção de que todas as pessoas que se identificam com um determinado gênero devem cumprir alguns requisitos físicos. Esses padrões oprimem e geram sofrimento a pessoas “trans” e também a pessoas “cis”, que não precisam estar dentro desses referenciais para sentirem-se bem com seus corpos e podem inclusive não desejar reproduzir esses padrões. Além disso, não importa o que uma profissional de saúde acha bonito ou feio no corpo das pessoas. Expor esse julgamento pessoal pode configurar assédio moral ou até sexual.
Não atribua valores e nem reproduza suas percepções em relação a corpo e gênero para a pessoa que você atende. Ao invés disso, pergunte o que é importante para ela e porquê.
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Associar uma pessoa LGBTIA+ às vulnerabilidades mais prevalentes em uma população da qual ela faz parte, antes de investigar sua vulnerabilidade individual.
As vulnerabilidades podem ser classificadas entre sociais, programáticas e individuais.23 Para considerarmos essas três esferas, é necessário compreender que um dado epidemiológico não necessariamente se reproduz na vida de uma pessoa e que diversos determinantes sociais podem estar envolvidos em uma determinada vulnerabilidade.
Ofereça espaço para diálogo sobre as vulnerabilidades específicas. “Sabemos que muitas pessoas LGBTIA+ sofrem violências psicológicas e físicas. Isso já aconteceu com você? Gostaria de falar sobre isso?” “Gostaria de conversar sobre práticas sexuais e prevenção a infecções sexualmente transmissíveis? Quer saber quais recursos que oferecemos neste serviço de saúde?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
23 Ayres J, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos G, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Fiocruz; 2006: 375-417.
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Expressão de gênero
Alguns estudos discutem que a performatividade de gênero constitui o gênero, de maneira consciente ou não, através de atos, gestos e representações.24 A expressão de gênero é a forma de cada pessoa se apresentar às demais e de ser percebida dentro dos referenciais sociais conhecidos como feminino (características socialmente atribuídas às mulheres) e masculino (características socialmente atribuídas aos homens) e abrangem a imagem do corpo, posturas corporais, vestimentas, maneirismos, modos de fala e forma de estabelecer relações. “O sexo e o gênero são materializados nos corpos por normas regulatórias que são constantemente reiteradas, repetidas e ratificadas e que assume o caráter de substância e de normalidade”. (Judith Butler, 1990) A expressão de gênero pode ou não estar de acordo com os estereótipos de gênero e com os papéis sociais esperados por uma determinada cultura (como as feminilidades ou masculinidades hegemônicas) ou pode ser fluida - percepção que proporcionou a elaboração mais recente do movimento queer. Muitas pessoas adotam intencionalmente expressões de gênero que revelem sua identidade para que, assim, sejam reconhecidas socialmente dentro de um determinado espectro de gênero, mas nem todas sentem essa necessidade e algumas preferem não adotar determinada performatividade por temerem discriminações. Por isso, profissionais de saúde devem perguntar sobre a identidade de gênero da pessoa e evitar suposições baseadas em sua imagem ou seu comportamento. Como descrita anteriormente, expressões de gênero são as formas como a pessoa se apresenta e como é reconhecida socialmente. Exemplos de expressão de gênero: feminina, masculina, feminina masculinizada, “afeminada”, neutra, andrógina etc.
Quadro 9 – Recomendações para a abordagem de expressão de gênero
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Acreditar que é possível saber algo sobre a pessoa apenas pela sua expressão de gênero.
Aspectos relacionados à masculinidade não são exclusivos de homens, assim como aspectos considerados femininos não são exclusivos de mulheres. As vestimentas de uma
Se for relevante para o cuidado, pergunte sobre a identidade e a vivência de gênero, sobre a orientação sexual e/ou sobre as práticas sexuais de uma pessoa.
24 Butler J. Gender Trouble [internet]. 1st ed. Londres: Routledge; 1990: 92 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://lauragonzalez.com/TC/BUTLER_gender_trouble.pdf
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pessoa, a forma de andar e de falar, o cabelo, etc. não comunicam o gênero, a orientação sexual ou as práticas sexuais de uma pessoa.
Comentar sobre a aparência da pessoa atendida Ex.: “você está parecendo homem”, ou “eu acho que você está bonita”, ou “nem percebi que você era trans”.
Mesmo que a intenção seja de realizar reforço positivo, denotar julgamento e categorização de corpos a partir de referenciais de gênero (classificatórios e hierárquicos) tendem a gerar mais sofrimento do que conforto às pessoas.
Não elogie nem emita avaliações sobre a aparência de uma pessoa, principalmente se o conteúdo do comentário tiver relação com o gênero.
Incentivar que a pessoa mude a maneira de se apresentar para que se aproxime de um determinado padrão esperado.
Atender a certos estereótipos de gênero pode ser um desejo para que a pessoa sinta-se menos exposta (a fim de alcançar
uma “passabilidade cis- hetero”). Porém, não cabe a
profissionais de saúde intervir com suas próprias referências individuais nos processos de interpretação das expressões de gênero de uma pessoa.
Não faça sugestões sobre aparência, postura ou comportamento. Caso a pessoa solicite, devolva a pergunta para que a pessoa possa refletir sobre seu próprio desejo.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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44 Orientação sexual, orientação afetiva e orientação romântica
É a maneira como uma pessoa se identifica em relação às suas tendências em interessar-se e/ou relacionar-se afetivamente, sexualmente ou romanticamente com pessoas de diferentes gêneros. Uma pessoa que se observa e percebe um determinado padrão no direcionamento de seus desejos, afetos, romances e relacionamentos pode identificar-se, a partir de seus próprios critérios, como homossexual / homoafetiva / homorromântica, se o direcionamento é para pessoas do mesmo gênero que o seu; heterossexual / heteroafetiva / heterorromântica, se o direcionamento é para pessoas de outro gênero; bissexual / biafetiva / birromântica se o direcionamento é para pessoas de mais de um gênero (e dentro dessa concepção estariam representadas as pessoas pansexuais / panafetivas / panromânticas, que se atraem e/ou relacionam-se independentemente ao gênero da outra pessoa); assexual / arromântica se não se atrai sexualmente ou não se interessa romanticamente por gênero algum. A identidade de orientação sexual também é citada como “identidade sexual”, termo evitado neste documento por misturar conceitos e por isso levar a compreensões equivocadas sobre orientação sexual. Pessoas que não se identificam como heterossexuais, como as lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, polissexuais e assexuais, podem representar de 3%25 a 20%26 de determinadas populações, embora levantamentos comerciais27 e em outros países apontem que as porcentagens podem ser maiores dentro da população de jovens e estudantes. A orientação sexual diz respeito à forma como a pessoa se reconhece e/ou se posiciona perante às demais pessoas, mas não traduz necessariamente suas experiências emocionais, sexuais ou relacionais. Não é uma opção, pois não é possível escolher a quem amar ou desejar. Por não ser doença ou um distúrbio a ser corrigido, não devem ser realizadas quaisquer intervenções com objetivo de entender suas causas ou de que a orientação sexual seja alterada, pois qualquer ação nesse sentido gera sofrimento psíquico e não gera bem-estar.28
25 Patterson CJ, Iveda Mn-JS, White J. Demography and Public Attitudes of Sexual and Gender Diverse Populations, in Understanding the Well-Being of LGBTQI+ Populations. National Academies of Sciences, Engineering and Medicine; 2020. Washington, DC. 26 Abdo CHN. Mosaico Brasil - Coletiva RJ e MG [internet]. Pfizer; 2009 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://sites2.uai.com.br/tva/ja2/projeto_mosaico_brasil_coletiva_rj_mg.pdf 27 Datafolha, AllOut, Havaianas. Pesquisa do Orgulho [homepage na internet]. 2022 [acesso em 11 abr 2023]. https://d9kmngv9gxhb0.cloudfront.net/static/pesquisadoorgulho.pdf 28 Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP no 001/99, de 22 de março de 1999. Normas de atuação para psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Brasília; 1999. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf
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45 Além do campo identitário, o conceito também costuma ser utilizado para descrever os componentes psicológicos (que incluem desejos, fantasias e afetos) e comportamentais (como relacionamentos atuais ou prévios). Porém, não cabe a profissionais de saúde classificarem a orientação sexual de uma pessoa, pois ela pode não se sentir representada pelo termo utilizado ou pelo critério adotado para essa classificação. Alguns termos foram criados para incluir nas ações e políticas de saúde as pessoas que relacionam-se como o mesmo gênero que o seu, mas que não se identificam como homossexuais ou bissexuais: MSM (mulheres cisgênero que fazem sexo com mulheres cisgênero) e HSH (homens cisgênero que fazem sexo com homens cisgênero). Os campos da atração são inúmeros. Além da atração relacionada ao gênero (utilizada para considerar a “orientação afetivo-sexual-romântica”), existem outras, como a atração estética (interesse despertado pela aparência), atração intelectual (interesse despertado pela inteligência) e atração sensual (interesse em contato físico, mas não sexual), que não necessariamente representam interesse sexual, afetivo ou romântico e que podem não ser considerados na identidade de orientação sexual. A atração por outra(s) pessoa(s), ou seja, o interesse, o desejo ou a admiração, pode surgir logo após um primeiro contato ou depois de uma relação já ter sido estabelecida.
Quadro 10 – Recomendações para a abordagem de orientação sexual, orientação afetiva e orientação romântica ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Agir como se todas as pessoas fossem heterossexuais, ou como se a única orientação sexual natural fosse a heterossexualidade.
A heteronomatividade violenta e gera adoecimentos em pessoas que não são heterossexuais. Por esse motivo, essas pessoas tendem a não revelar sua orientação sexual ou a evitar contato com profissionais de saúde, se não há segurança de que não sofrerão exclusões. Essa estratégia de autocuidado pode vulnerabilizar essas pessoas em relação a outros adoecimentos físicos, como problemas crônicos de saúde que tendem a ser mais descompensados na população LGBTIA+ devido ao afastamento dos serviços de saúde.29
“Qual a sua orientação sexual?” “Você se identifica como homossexual, bissexual, heterossexual, assexual ou de outra forma?”
29 Pharr JR. Health Disparities Among Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, and Nonbinary Adults 50 Years Old and Older in the United States. LGBT Health 2021 Sep 28; 8(7). https://doi.org/10.1089/lgbt.2021.0009
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Atribuir à pessoa uma certa orientação sexual pelo comportamento que ela demonstra.
Orientação afetivo-sexua-romântica e expressão de gênero são características independentes que não podem ser associadas, sob risco de estigmatização e/ou de invisibilização.
Se fizer sentido para o cuidado a ser oferecido para a pessoa, pergunte qual a orientação sexual dela.
Ignorar a assexualidade como uma orientação sexual legítima.
A assexualidade não é uma orientação sexual estanque. Muitas pessoas podem identificar-se dentro das “faixas cinza” da assexualidade. (ver Assexualidade)
“Você sente atração sexual?” “Em alguma situação específica?”
Achar que a
orientação afetivo- sexual-romântica da
pessoa sempre vai nos comunicar suas atrações sexuais.
A concepção sobre orientação sexual de uma pessoa pode partir de critérios únicos (como tempo de relacionamento, relacionamento significativo, quantidade de relacionamentos com pessoas de um determinado gênero, etc.).
Se você sente atração sexual, é por homens, mulheres, outro gênero, todos os gêneros?
Deslegitimar a bissexualidade como uma orientação sexual válida.
Pessoas bissexuais são mais sujeitas a violências do que pessoas homossexuais, inclusive dentro dos serviços de saúde. A patologização da bissexualidade é uma forma de violência institucional, e pode ser representada por julgar pessoas bissexuais como “confusas”, “bipolares”, “borderline” ou outros estigmas patologizantes.
Caso a pessoa se identifique como bissexual, não tente correlacionar essa identidade com um problema.
Acreditar que pessoas que não são heterossexuais sofreram traumas ou são infantilizadas.
Patologizações da homossexualidade, da bissexualidade e da assexualidade são violências.
Não busque justificativas e nem peça que a pessoa explique o porquê ela se atrai por determinado(s) gênero(s).
Usar o termo “relacionamento lésbico/gay/homoafeti vo”
Pessoas têm orientação sexual, mas relacionamentos não têm. Por exemplo: pessoas bissexuais.
Refira-se à orientação afetivo-sexual-romântica da pessoa, mas não de seu relacionamento.
Tentar mudar a orientação afetiva, sexual ou romântica de alguém.
Terapias de reversão geram mais sofrimento do que conforto. São consideradas ações LGBTIAfóbicas, e por isso profissionais e serviços que realizem qualquer tipo de prática de “conversão” estão sujeitos a penalizações administrativas e criminais.
Nunca sugira que a pessoa tente não ter sua orientação afetiva, sexual ou romântica, de qualquer forma. Nunca aja para que a pessoa mude sua
orientação afetivo- sexual-romântica.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Práticas sexuais
As práticas sexuais podem ser entendidas como todas aquelas que envolvem algum tipo de prazer sexual, sejam elas realizadas com ou sem contato com genitálias, sejam individuais ou envolvendo duas ou mais pessoas. Apesar disso, cada pessoa pode ter sua própria compreensão sobre o que é a prática de sexo, por isso é importante que profissionais de saúde ofereçam espaço para cada pessoa poder comunicar sobre a sua percepção e a sua vivência. Uma pessoa pode não realizar qualquer prática sexual, assim como pode realizar sempre a mesma prática, ou até variar constantemente suas práticas sexuais. As maneiras de sentir prazer sexual ou de realizar atividade sexual são diversas e podem ser completamente diferentes entre as pessoas, mesmo entre as que têm uma mesma característica corporal, um mesmo gênero e uma mesma orientação sexual. Como exemplos de práticas sexuais, podemos citar: penetração anal por pênis, dedos ou objetos; penetração vaginal por pênis, dedos ou objetos; tribadismo (“tesourinha”); masturbação (automanipulação com intenção erótica); práticas orais (como oral vulvar, oral peniana ou oral anal); gouinage (sem penetração); estímulos em regiões específicas (estímulos mamários, glúteos, abdominais); variações do BDSM (erotismo e prazer através de estratégias de dominação consensuais), etc. É importante não confundir orientação sexual com práticas sexuais e, portanto, não estigmatizar a prática sexual a partir da orientação sexual. Por exemplo: casais de mulher e homem cisgênero heterossexuais não têm práticas penetrativas peniano-vaginais invariavelmente, assim como uma fração significativa dos homens cisgênero gays não têm penetração anal receptiva, assim como a maioria das mulheres cisgênero lésbicas têm relações sexuais com penetração.30 A penetração anal é um tabu mesmo dentro dos serviços de saúde; portanto, oferecer possibilidade de diálogo para as pessoas que realizam essa prática é uma estratégia importante de cuidado em saúde. Uma estratégia possível de educação em saúde é explicar a anatomia do ânus e dos seus esfíncteres externo (voluntário) e interno (involuntário), assim como a necessidade de adaptação gradual caso seja desejada progressão da largura de objetos penetrados. É comum que pessoas acreditem ser necessário realizar enema anal (conhecido como “fazer a chuca”) antes de praticar penetração anal para tentarem se proteger de doenças e problemas de saúde em geral. Ao contrário, realizar essa lavagem introduzindo
30 Traeen B, Fischer N, Kvalen IL. Sexual intercourse activity and activities associated with sexual interactions in Norwegians of different sexual orientations and ages. Sexual and relationship therapy. 2021 May 19:1-17. https://doi.org/10.1080/14681994.2021.1912316
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48 materiais inadequados (como mangueira de chuveiro) pode gerar lesões anais com sangramento, infecção, dor, disfuncionalidade ou aumentar a vulnerabilidade para IST. O orgasmo pode fazer parte do objetivo de prazer sexual de uma pessoa. Pessoas que nasceram com vulva podem ter orgasmo por estimulação ou penetração vaginal, anal ou exclusivamente por estímulo da glande do clitóris. A ejaculação vaginal (secreção das glândulas uretrais, parauretrais e vestibulares, somada ou não à urina) pode estar associada a um orgasmo ou não. Pessoas que nasceram com pênis também podem ter ejaculação sem orgasmo, assim como é possível ocorrer orgasmos sem ejaculação. O prazer sexual pode estar associado ao orgasmo, mas não necessariamente se restringe a ele. O orgasmo também pode não ser desejado durante a prática sexual, ou pode deliberadamente ser retardardo. As motivações para a prática sexual podem não ser o orgasmo, ao invés disso podem ter a intenção de proximidade afetiva, intimidade corporal, compartilhamento ou oferta de prazer à(s) pessoa(s) parceira(s), autoconhecimento, sensação de vulnerabilidade ou controle, descarga emocional ou outro tipo de satisfação erótica. O prazer sexual depende do reconhecimento e da representação de diversos estímulos percebidos, assim como de percepções subjetivas (ex: fantasias ou imaginação). A sigla BDSM (da língua inglesa, que significa bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo) envolve diversas práticas eróticas que possuem em comum estratégias ou fantasias de dominação e/ou submissão. Diferem-se de violência por serem práticas consensuais e pactuadas conscientemente entre as pessoas que as praticam, sob acordo de um protocolo de segurança e de cuidado mútuo, com respeito aos desejos e aos limites de cada pessoa envolvida - habitualmente resume-se isso à tríade “são, seguro e consensual”. Uma pessoa pode ter prazer como dominadora (“top”), como submissa (“bottom”) ou em ambas as situações (“switch”). São exemplos: humilhações (verbais, muitas vezes com cunho moral, em ambientes privados ou públicos), imobilizações (parciais ou completas), espancamento (com mãos, pés ou objetos), pisoteamento (com ou sem sapatos), escatologia (envolvendo urina, fezes, secreções corporais ou sangue), perfurações e cortes (com agulhas ou outros objetos perfurocortantes), castidade controlada (com limitação do acesso à genitália, como uso de cintos de castidade), controle financeiro, confinamento em pequenos ambientes, sufocamento, mordidas, encenação ou vivência como animal de estimação/tutor, modificações corporais, entre outras. A maioria das pessoas que praticam variações do BDSM não se sente confortável para tratar do assunto com profissionais de saúde por serem frequentemente julgadas e reprimidas, por isso tendem a deixar de buscar informações ou encontram informações inadequadas sobre cuidados com sua saúde e com a saúde de suas parcerias de prática. Pode ser oferecida conversa com espaço para abordar pactos de consensualidade e de segurança, cuidados relacionados à circulação sanguínea,
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49 hidratação, risco de infecção, de lesão de órgãos e artérias, de fraturas e de consequências permanentes indesejadas, assim como reconhecimento de seus limites e dos limites da(s) parceria(s) de prática. Quadro 11 – Recomendações para a abordagem de práticas sexuais
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que é possível presumir sobre a experiência sexual de uma pessoa.
Se for relevante para o cuidado, perguntar se já teve e se tem práticas sexuais.
Pergunte “Você já transou?” “Você faz sexo?”
Assumir que uma pessoa só transa dentro de um relacionamento estabelecido.
Atos sexuais consensuais. “Você tem parceria sexual fixa? Quantas?”
Assumir que uma pessoa em um relacionamento estável tenha práticas sexuais, e somente com uma pessoa.
Se for relevante para o cuidado, perguntar se tem práticas sexuais e com quantas pessoas.
“Você tem relações sexuais com essa pessoa que você namora?” “Além dessa pessoa, você transa com mais alguém?”
Pressupor que relações sexuais acontecem sempre entre pessoas que tenham genitália diferente.
Grande parte da população não se identifica como heterossexual. Além desse fato, uma pessoa heterossexual cis pode se relacionar com uma pessoa trans ou travesti.
“Com mulher, com homem, com pessoa de outro gênero, com pessoas de mais de um gênero? Cis ou trans?” “Pessoa com vulva, com pênis ou com outra genitália?”
Usar os termos “ativo” e passivo” para perguntar sobre o sexo praticado por alguém ou atribuir esses termos como qualificação a uma pessoa
Pessoas que se relacionam sexualmente, de forma consciente e consensual, o fazem sempre de maneira ativa. A posição adotada de uma pessoa em relação a outra durante atos sexuais não a torna passiva ou ativa. Esses termos carregam estereótipos machistas e excludentes, o que aumenta o afastamento das pessoas dos serviços de saúde.
“Você transa sempre de uma mesma forma?” “Como você costuma transar?”
Assumir que sabemos as práticas sexuais de uma pessoa a partir do gênero de sua parceria, do seu comportamento ou por outro motivo.
Homens gays não tem necessariamente prática com penetração anal, mulheres lésbicas cis também transam com penetração.
“Como é que você transa?” “Você transa com penetração?”
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Assumir que a prática sexual de uma pessoa seja a penetração peniano-vaginal.
Se for relevante para o cuidado, perguntar como a pessoa transa e se existe alguma prática sexual que é importante que a profissional de saúde saiba para poder cuidar melhor de sua saúde.
“Quando você transa com penetração, ela acontece na vagina, no ânus, na boca, em outro lugar?”
Desconsiderar relações sexuais que não envolvam
penetração, ou considerá- las como “preliminares” se
a pessoa considera sua prática como ato sexual.
Considerar que todas as práticas sexuais são legítimas e que uma pessoa que nunca teve penetração vaginal não é necessariamente virgem.
“E você transa sem penetração? Como?” “Sexo oral na vagina, no ânus, em outro lugar?” “Tem alguma outra forma de transar ou de atingir um clímax?”
Achar que algumas práticas sexuais não merecem prevenção a IST.
Abordar métodos e estratégias de prevenção além de camisinha externa.
“Você usa algum método para evitar infecções transmissíveis pelo sexo?”
Achar que prevenção às IST só deve ser realizada com preservativos externos.
A mandala de prevenção (ver Saúde sexual) abrange métodos que podem ser utilizados em práticas sexuais diversas.
“O que você faz para evitar infecções que se transmite pelo sexo?”
Ignorar possibilidades de estupros vividos.
Uma situação de violência pode ser considerada como um episódio de prática sexual ou não. Violências sexuais também acontecem dentro de relacionamentos.
“Você transa contra a sua vontade?” “Se sente obrigada a transar? Sofre chantagem ou humilhação para isso?” “Alguma vez sofreu violência sexual?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Estrutura de relacionamento(s)
Além de manter relacionamentos com acordos de exclusividade (monogâmicos), as pessoas também podem relacionar-se sexualmente/afetivamente/romanticamente com outras a partir de acordos não monogâmicos (por exemplo: poliamor, amor livre, anarquia relacional, relacionamento aberto etc.) ou podem viver dentro de estruturas sociais que imprimem outros formatos nos relacionamentos (como a poligamia ou a poliandria) ou que requisitem ausência de relacionamentos (por exemplo, o celibato). Quadro 12 – Recomendações para a abordagem de estrutura de relacionamento(s)
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Não oferecer espaço para a pessoa falar sobre relacionamentos afetivos, sexuais e/ou românticos. Inferir que a pessoa atendida se relacione afetiva, sexual e/ou romanticamente com alguém.
Relacionamentos afetivo- sexuais-românticos são parte
importante da vivência social e da saúde emocional da maioria das pessoas
“Você se relaciona com alguém?”
Inferir que uma pessoa se
relaciona afetivo-sexual- romanticamente apenas com
uma pessoa.
Mesmo dentro de um relacionamento com compromisso monogâmico, é comum ocorrer desrespeito ao pacto de monogamia.
“Com uma pessoa ou com mais pessoas?” “Com quantas pessoas você se relaciona atualmente?”
Classificar o(s) relacionamento(s) afetivos, sexuais- e/ou românticos sem considerar a percepção da pessoa.
Os títulos atribuídos aos relacionamentos podem ter sentidos e significados diversos. Os títulos dos relacionamentos não são unicamente responsáveis pela validação dos acordos formados entre as pessoas que se relacionam.
“Que nome você dá para esse(s) relacionamento(s)?” “Namoro, ficada, casamento, relacionamento ou outro nome?”
Inferir que um relacionamento é sempre monogâmico.
Relacionamentos com acordos não-monogâmicos são comuns, mesmo que sejam invisíveis dentro da sociedade.
“É um relacionamento monogâmico? Vocês têm um acordo de exclusividade nesse(s) relacionamento(s)?” “Como você chama esse acordo de não
exclusividade?” “Não- monogamia, relacionamento
aberto, amor livre, poliamor, outro nome?”
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ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES
EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Pedir para que a pessoa prove seus laços relacionais a partir de referenciais individuais que são da profissional de saúde, e não próprios a ela. Ex.: “Mas você sente ciúmes? Então não pode dizer que é uma pessoa não monogâmica”.
Uma mesma pessoa pode ter relacionamentos com diferentes significados para sua vida emocional. Pessoas diferentes também podem atribuir valores e simbolizações diferentes a relacionamentos que podem parecer iguais, à distância. Não cabe a alguém usar critérios próprios para validar ou invalidar um relacionamento do qual não participa.
Legitime os relacionamentos da pessoa. Não solicite que a pessoa prove ou que ela explique a estrutura de seu relacionamento.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Desejo reprodutivo e Reprodução
A possibilidade e o desejo de reprodução não são restritos somente às pessoas cisgênero que têm vivência relacional ou sexual. Tampouco é restrito às pessoas heterossexuais ou àquelas que pretendem constituir família. A compreensão do desejo de reprodução e de parentalidade, seja ele individual ou coletivo (como o projeto da família ou da comunidade em que a pessoa está inserida), possibilita que profissionais de saúde realizem ofertas adequadas para atender à necessidade específica e para oferecer cuidados em saúde sexual e reprodutiva necessários à sua execução. (ver Saúde reprodutiva) O histórico reprodutivo é um item importante da anamnese e pode ser importante para oferecer cuidados clínicos ou de saúde mental em situações específicas. Quadro 13 – Recomendações para a abordagem de desejo reprodutivo e de reprodução
ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Associar reprodução com parentalidade.
Mesmo sem exercer o papel de pai ou de mãe, uma pessoa pode ter se reproduzido.
“Você já engravidou/pariu, ou já gerou uma criança?”
Deixar de investigar o desejo reprodutivo.
Muitas pessoas LGBTIA+ possuem desejo reprodutivo. Ser LGBTIA+ não gera esterilidade, mesmo que possam ser necessários métodos de reprodução assistida para conceber uma criança.
“Você pensa em engravidar, ou em gerar uma criança?”
Não oferecer métodos contraceptivos para pessoas LGBTIA+.
Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero não são necessariamente inférteis, mesmo que utilizem hormonização. (ver Saúde reprodutiva)
“Você realiza prática sexual que possa gerar uma gestação indesejada?” “Você gostaria de conversar sobre métodos contraceptivos para não gerar uma gestação?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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Parentalidade e Família(s)
O exercício da maternidade ou da paternidade pode estar presente na relação com crianças, mas também com outras pessoas e, muitas vezes, dentro de um contexto familiar específico. Uma família pode ser constituída a partir de um núcleo familiar tradicional, formado por um casal com crianças geradas biologicamente, ou a partir de um núcleo de convivência íntima (as famílias escolhidas). Pessoas com o título e a função de mãe ou de pai são comuns dentro de “famílias LGBTIA+”, as quais na maioria das vezes são pessoas que se tornam referência para uma ou mais pessoas da comunidade LGBTIA+. Essa adoção simbólica pode também se tornar adoção efetiva ou legal. Essa constituição familiar pode estar atrelada ou não a apoio financeiro, emocional, político, de informações, de cuidados ou outras formas de apoio. Quadro 14 – Recomendações para a abordagem de parentalidade e família(s) ERROS FREQUENTEMENTE COMETIDOS
EXPLICAÇÕES EXEMPLOS DE ABORDAGEM NÃO EXCLUDENTE
Ignorar a vivência parental de uma pessoa LGBTIA+.
Pessoas LGBTIA+ podem ter uma prole constituída ou em formação.
“Você tem filha ou filho?”
Ignorar o desejo de parentalidade de uma pessoa LGBTIA+.
Pessoas LGBTIA+ não se diferem de pessoas cisgênero e heterossexuais no desejo de parentalidade.
“Pretende ter filhes?” “Pretende ser mãe, ou pai?”
Presumir que todas as pessoas desejam exercer a parentalidade dentro de famílias nucleares e através de gestações espontâneas.
É possível exercer parentalidade de maneira solo, em dupla, junto a uma família ampliada, de maneira coletiva e ainda de outras formas. A chegada de uma pessoa na família pode acontecer através de uma gestação (espontânea ou assistida) ou de outras maneiras.
“Como pretende concretizar esse projeto de parentalidade?” “Você tem um plano de conceber, de adotar ou outro tipo de plano, para concretizar esse seu objetivo?”
Ignorar que as famílias ampliadas extrapolam as famílias nucleares, tanto em suporte emocional, físico ou financeiro, quanto em titulação.
Os laços familiares não são menos legítimos quando alcançam pessoas de fora do núcleo familiar. Existem famílias nucleares e famílias ampliadas, assim como existem famílias de origem e famílias escolhidas.
Como sua família é constituída?” “Além da sua família de origem, você tem alguma família escolhida?” “Como vocês se chamam? Mãe, filha, prima, sobrinha, vó, etc.?” “Quantas famílias você considera que tem?”
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim
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55 A Figura 2 reúne em uma imagem didática a representação de todos os aspectos detalhados até o momento.
Figura 2 – Representação gráfica de aspectos atribuídos à sexualidade.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim Arte: Paulo Eduardo A. Amorim
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56 Transversalidades nos cuidados à população LGBTIA+
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57 A transversalidade como referencial nos cuidados à população LGBTIA+ é a aposta deste documento em assumir as subjetividades que as vivências evocam, podendo ser potencializadas e reafirmadas de acordo com suas diversas identidades segundo gênero, raça, faixa etária, deficiência, grau de institucionalização e marginalidade, por exemplo. Nos compromete então, a pensar um cuidado atento às implicações estruturais e sociais que possam afetar essa subjetividade e a não categorizar esta oferta e atenção de acordo somente com suas representações, às vezes interpretadas como caricaturais. Na produção da saúde e do cuidado, essas representações não podem ser reforçadas enquanto marcadores de iniquidades, mas sim como mais um estímulo fundamental para uma prática em saúde acolhedora, integral, participativa e que reconheça a usuária e o que ela traz de trajetória.
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Vulnerabilidades e Interseccionalidade
Demarcam-se, nesse protocolo, as vulnerabilidades e suas possíveis relações interseccionais enquanto as implicações estruturais e sociais com potencial afetamento nas subjetividades. O controle social do SUS tem apontado a necessidade do olhar às necessidades e vulnerabilidades de pessoas LGBTIA+, como percebe-se no relatório final da 13a Conferência Nacional de Saúde31, ocorrida em 2008, ao incluir as variabilidades de orientação sexual e de identidade de gênero na análise da determinação social da saúde. Em 2011 esse diálogo resultou na Política Nacional de Saúde Integral LGBT 32
, que reafirma, em seu inciso I do art. 2o, o compromisso do SUS com um de seus objetivos específicos: a instituição de mecanismos de gestão para atingir maior equidade no Sistema Único, com especial atenção às demandas e necessidades em saúde da população LGBTIA+, incluídas as especificidades de raça, cor, etnia, territorial e outras congêneres. É exatamente nesse sentido que se demarcam as vulnerabilidades e suas possíveis relações interseccionais. Por exemplo, a vivência de uma mulher carrega historicamente apagamentos e violência determinados pelo seu gênero. A correlação entre seu gênero a outras especificidades que sua identidade expressa, como a orientação sexual ou raça/cor, denominados em determinantes sociais de saúde, intensificam a perversidade sócioestrutural sentida. É preciso dialogar sobre os diferentes lugares sociais ocupados simultaneamente por um mesmo corpo. Por exemplo: o lugar de ser mulher, trans, lésbica, preta e moradora de favela sujeita estruturalmente uma pessoa ao racismo, elitismo, sexismo, machismo, transfobia e lesbofobia que hoje comumente configura em marginalização, violência, pobreza, falta de acesso à educação, saúde e moradia e outras opressões e exclusões. O diálogo se dá, portanto, nesse exemplo, sobre pessoas que ao mesmo tempo são mulheres, pessoas trans, lésbicas, pretas, pobres, periféricas, imigrantes e com outros marcadores de iniquidades sociais. Portanto, o olhar isolado para o gênero não é suficiente na compreensão das vivências e vulnerabilidades dessa pessoa. Caminhando com esse horizonte, vale incrementar na prática do cuidado uma extensa articulação com o território e sua intersetorialidade.
31 Ministério da Saúde (Brasil). Relatório Final da 13a Conferência Nacional de Saúde: Saúde e Qualidade de vida: políticas de estado e desenvolvimento/Ministério da Saúde (Série C. Projetos, Programas e Relatórios). Brasília: Conselho Nacional de Saúde: Editora do Ministério da Saúde; 2008: 246p [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/13cns_M.pdf 32 Ministério da Saúde (Brasil). Portaria no2.836, de 1 de dezembro de 2011. Institui no âmbito do SUS a Política Nacional de Saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais Política Nacional de Saúde Integral LGBT) [portaria na internet]. Brasília: MS; 2011 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2836_01_12_2011.html
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59 É importante reconhecer que as contribuições teórico-conceituais sobre estigma, preconceito e discriminação são valiosas para se compreender as dificuldades e impasses acerca do cuidado oferecido às pessoas LGBTIA+.33 Neste sentido, os corpos com outros marcadores sociais desafiam a mesma lógica e chamam para uma atenção mais específica em relação às suas necessidades e demandas biopsicossociais específicas. As situações de violências valem atenção, como a negligência biomédica por condutas embasadas em percepções falsas e sem base científica a respeito do corpo preto, como a violência obstétrica que marca as disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto, evidenciando um gradiente de pior para melhor cuidado entre mulheres cis pretas, pardas e brancas.34 A violência física atravessada pela transfobia, bifobia, lesbofobia e homofobia também merece atenção, não somente para uma atenção à saúde voltada à assistência à violência, mas sim entendendo a exposição dessas pessoas a tais situações de vulnerabilidade, incluindo tal entendimento nos atendimentos e potencializando um projeto terapêutico singular. Segundo dados de 2015 a 2017 registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN-SUS), 75% dos casos de violência praticados contra pessoas LGBTIA+ foram praticados contra mulheres trans, travestis e lésbicas. Em um universo de 24.564 notificações de LGBTIA+fobia no sistema, mais da metade delas tiveram pessoas negras como vítimas.35 No estado de São Paulo, o Decreto no 65.127 (artigo 1o) regulamentou as atribuições e competências no âmbito das Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher e incluiu mulheres trans e travestis em seus acolhimentos, defesas e investigações das infrações penais relativas à violência doméstica ou familiar e infrações contra a dignidade sexual:
“Artigo 1o - As Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, criadas pela Lei no 5.467, de 24 de dezembro de 1986, têm, em suas respectivas áreas de atuação, a atribuição para investigar infrações penais relativas à violência doméstica ou familiar e infrações contra a dignidade sexual praticadas contra pessoas com identidade de gênero feminino e contra
crianças e adolescentes."
(Decreto no 65.127) Alguns dados epidemiológicos mais específicos do município de São Paulo em 2017, segundo o SINAN, destacam que 345 mulheres cisgênero lésbicas e bissexuais notificaram situações de violência, sendo 45,8% pretas e pardas. Desse perfil, sem recorte de raça/cor, 33 Rodrigues JL. Lésbicas e mulheres bissexuais: uma leitura interseccional do cuidado à saúde. São Paulo: Tese (doutorado) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2018. 34 Leal MC, Gama SGN, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública [internet]. 2017; 33(1) [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2017001305004&lng=en) 35 Nunes P, Iara Caroline. Mulheres negras LBTI+ também querem respirar. São Paulo (SP): Jornal GGN; 2020.
Disponível em: https://jornalggn.com.br/cidadania/mulheres-negras-lbti-tambem-querem-respirar-por-paula- nunes-e-carolina-iara/
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60 59,4% foram encaminhadas para rede intra e intersetorial - evidenciando a necessidade do trabalho em rede. Para mulheres trans e travestis lésbicas e bissexuais, o número foi de 80 notificações, sendo 46,3% pretas e pardas e com 51,2% dessas mulheres encaminhadas para rede intra e intersetorial. Além disso, a pauta transversal sobre migração também se faz importante ao falar sobre pessoas LGBTIA+, direitos humanos e acesso aos serviços de saúde. O Decreto no 57.533 regula a Política Municipal para a População Imigrante (Lei no 16.478) e assegura os direitos de imigrantes, principalmente através da atuação da Secretaria Municipal de Saúde.
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Identidades e suas necessidades em saúde
Identidades são autorreferidas e não são diagnosticáveis. Portanto, cabe a profissionais de saúde compreender a autorreferência identitária de pessoas LGBTIA+ e validá-las sem desvalorizar suas construções. Uma das razões para que pessoas se entendam como parte do mesmo grupo social identitário é o compartilhamento de vivências, ao que se inclui as necessidades de saúde e os riscos de adoecimentos. A seguir, serão brevemente apresentados compreensões e estudos a respeito da saúde de diversos grupos identitários componentes da população LGBTIA+.
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Identidades relacionadas a gênero
As identidades relacionadas a gênero são autorreferidas, portanto não devem ser diagnosticadas sob qualquer circunstância. Diferentes condições e vivências consolidam a percepção de uma pessoa a respeito de seu gênero e, mesmo sendo possível dialogar sobre isso, profissionais de saúde não devem invalidar de qualquer forma a construção de alguém sobre si. (ver Gênero identitário) A seguir, estão apresentadas algumas identidades relacionadas a gênero que representam grande parte das possibilidades identitárias.
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Mulheres trans / Travestis
São pessoas que tiveram o gênero “homem” atribuído ao nascimento, mas se reconhecem e reivindicam enquanto mulheres e/ou travestis. Para serem reconhecidas socialmente em sua identidade de gênero, podem adotar expressões de gênero e papéis sociais associados culturalmente às mulheres. Podem também recorrer a hormonização e cirurgias de transformação corporal, em seu processo de afirmação de gênero. No entanto, nenhum destes itens é condição para que suas identidades enquanto mulheres e/ou travestis sejam validadas e respeitadas. Assim como em mulheres cisgênero, seu gênero não está relacionado com orientação sexual/afetiva/romântica. Há mulheres trans e travestis que são lésbicas, bissexuais e assexuais, assim como há aquelas que são heterossexuais. Travesti é um termo muito utilizado na América Latina, especialmente no Brasil, para descrever a mulher trans. Apesar de algumas travestis se reconhecerem enquanto um terceiro gênero, ainda se reconhecem dentro do espectro da transfeminilidade, de modo que seus pronomes são sempre femininos. Suas demandas específicas são: reconhecimento e respeito à sua identidade; utilização de pronomes femininos; uso e respeito do nome social (para aquelas que por algum motivo não retificaram seus documentos); reconhecimento e respeito à sua orientação afetiva/sexual/romântica, tanto enquanto lésbicas, heterossexuais, bissexuais ou assexuais; e acesso a tecnologias de saúde, em especial a hormonização, o uso de próteses e, por vezes, as cirurgias para afirmação de gênero. (ver Transformações corporais) Devido à transfobia estrutural da sociedade, mulheres trans e travestis estão sujeitas a diversas formas de exclusão e violência e podem apresentar: menor escolaridade; pior histórico alimentar; depressão e transtornos ansiosos; risco aumentado de abuso de álcool, tabaco e outras drogas; histórico de violência (incluindo física e sexual); maior risco de IST; menor chance de frequentar serviços de saúde, devido à transfobia institucional; e menor acesso a serviços públicos em geral. A violência institucional pode se dar no desrespeito à sua identidade de gênero, na deslegitimação de sua orientação sexual - com a negativa de sua lesbianidade, bissexualidade ou assexualidade ao presumir que toda mulher trans ou travesti se relaciona exclusivamente com homens - ou mesmo na exclusão ou evitação de sua inclusão em serviços de saúde ou em estratégias de promoção à saúde.
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Homens trans
São homens que tiveram seu sexo declarado como feminino ao nascer, portanto, foram ou ainda são erroneamente interpretados como mulheres pela sociedade. A definição de gênero é mais ampla do que a aparência ou do que a genitália de uma pessoa, portanto estes indivíduos se reconheceram como homens ao longo de suas vidas, muitas vezes ainda na infância - adotando ou não o uso de hormônios como estratégia de transformação corporal para realizar transição social de gênero, ao longo da vida. Homens trans não precisam reproduzir o conceito de masculinidade através de suas roupas, estilos ou ações para se declararem desta forma. Também é possível encontrar uma diversidade de orientações afetivo-sexuais-românticas entre grupos de homens trans, como homossexuais, bissexuais, heterossexuais, pansexuais, assexuais e outras definições de identidade de orientação sexual, reforçando que o conceito de identidade de gênero não está ligado à orientação sexual. Os indivíduos que optam pela hormonização têm a intenção de aumentar a presença de testosterona em seus corpos. O uso de testosterona tem como resultado a mudança de algumas características corporais, como crescimento de barba, mudanças de voz, interrupção do ciclo menstrual, aumento da hipertrofia da massa muscular e outras alterações provindas desse uso. (ver Transformações corporais) Homens trans e pessoas transmasculinas que não possuem acesso à hormonização no SUS e têm difícil acesso à compra legal de testosterona são impulsionados para o uso de hormônios inadequados, ilegais, com preços elevados e sem garantia de sua procedência. Quando realizada adequadamente, a hormonização é um procedimento seguro, portanto é importante que unidades de saúde se responsabilizem em acolher e acompanhar essa população, de modo a evitar que a pessoa use medicamentos de forma insegura ou prejudicial. Cuidados em saúde relacionados à vagina, vulva e mamas precisam ser oferecidos, sem negligência de rastreamento de câncer de colo uterino (para pessoas que já tiveram penetração vaginal), de tratamento a infecções sexualmente transmissíveis ou de qualquer queixa que esses homens possam apresentar. É importante que profissionais não excluam homens trans e pessoas transmasculinas dos serviços que oferecem cuidados ginecológicos, o que inclui atenção à ambiência e abertura para o diálogo sobre possíveis desconfortos vividos. (ver Considerações sobre exame ginecológico) Mesmo após realizar o uso de hormônios, é possível que homens trans engravidem, já que seus órgãos com função reprodutiva tendem a seguir sendo funcionais. Pré-natal, parto
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65 e puerpério devem ser realizados para homens trans que gestam e que têm filhos, sem prejuízos de cuidados e com respeito à sua identidade de gênero em todos os momentos. É importante que profissionais de saúde considerem a integralidade da saúde de homens trans e demais pessoas transmasculinas, garantindo acesso ao serviço de saúde e apoiando para que obtenham recursos e atinjam bem estar físico, emocional e social.
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Pessoas não binárias, agênero e de gênero fluído
Pessoas não-binárias são aquelas que não se percebem completamente como pertencendo a um dos gêneros binários mulher e homem, hegemonicamente reconhecidos na sociedade ocidental/ocidentalizada. Pessoas não-binárias podem ser compreendidas como pessoas trans justamente por não se resignarem ao gênero designado a elas ao nascer – conceito utilizado atualmente para compreender demandas em saúde de pessoas trans (ver identidade de gênero). Existem também pessoas não-binárias que não se identificam com o termo trans e não o usam para descrever suas vivências, mesmo não se identificando com o gênero designado ao nascimento. Algumas pessoas não binárias que não se identificam com o termo trans podem apresentar demandas de saúde similares àquelas de pessoas que usam o termo trans, binárias ou não, e devem ter suas demandas de transformações corporais acolhidas. É importante também compreender que pessoas não-binárias podem ter sido registradas ao seu nascimento tanto com o sexo feminino quanto com o sexo masculino, ou ainda podem ter sido classificadas como sexo “ignorado” ao nascer. Mesmo que conceitualmente uma pessoa que não se identifica ou não vive com o gênero designado ao seu nascimento seja compreendida como pessoa trans (e assim o serviço de saúde pode enxergar possíveis ofertas aos seus cuidados em saúde), dentro de uma percepção identitária uma pessoa não binária de qualquer gênero pode se identificar como trans ou como cis, independentemente à sua vivência. A seguir demonstramos de maneira ilustrativa algumas possibilidades identitárias de gênero, correlacionadas ou não com a identidade trans. (ver identidade de gênero)
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67 Figura 3 – Representação gráfica de algumas possíveis identidades de pessoas que não se identificam ou não vivenciam o gênero designado ao nascimento
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim, Lorenzo Lang Gonzalez, Denise Leite Vieira A auto identificação de uma pessoa vai ser construída ao longo de sua vida, com base em seus referenciais e contextos, podendo mudar com o passar do tempo. Ela é, portanto, muito subjetiva. É importante respeitar os termos que a pessoa escolhe usar e entender que diferentes pessoas com uma mesma vivência de gênero podem utilizar termos diferentes para definir sua identidade. Algumas pessoas fazem também escolhas políticas de como se colocar em diferentes espaços. A Figura 3 demonstra também algumas possíveis intersecções identitárias em que as pessoas podem se localizar, ao definir sua identidade. É possível, por exemplo, que uma pessoa designada mulher ao nascimento se entenda enquanto homem somente. Mas outra pessoa com as mesmas demandas se
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68 coloque enquanto transmasculina, mas não como homem nem como não binária. Outra, ainda, pode se identificar enquanto pessoa transmasculina e também como não binária. Há travestis que em diversas situações se afirmam enquanto mulheres, enquanto outras negam a identidade mulher. Tem também aquelas que entendem sua travestilidade enquanto uma identidade não binária e outras que não se identificam dentro da não binaridade. Quanto às suas identidades, pessoas não binárias podem se reconhecer parcial ou totalmente com um ou mais gêneros (ex.: demiboy, demigirl, bigênero), fluir entre alguns (ex.: gênero-fluído, panflux), se compreender dentro do espectro considerado feminino ou masculino de gênero (ex. transmasculino/e, boyceta, transfeminina/e, travesti não-binária), rejeitar qualquer gênero (ex. agênero) ou ainda, se reconhecer como dentro do espectro neutro de gênero, (ex.: não binárie, gênero neutro, andrógine, gênero queer). Ainda há identidades xenogênero, que são identidades onde o gênero é metafórico ou simbolicamente comparado à natureza. Essa é uma categoria utilizada algumas vezes por pessoas neurodiversas, pela facilidade de materialização do conceito de gênero quando comparado à materialidade da natureza. Mesmo que "não binária" seja uma identidade de gênero, o termo é utilizado também
como termo guarda-chuva, sendo um ato político para gerar visibilidade às pautas da não- binariedade. Pessoas não-binárias podem ter qualquer orientação sexual-afetiva-romântica,
assim como não ter qualquer uma, ter qualquer expressão de gênero (não sendo necessariamente “andróginas”) e utilizar qualquer pronome (ele, ela, elu, ile, ila, entre outros). É muito importante não assumir a identidade de gênero ou a forma como a pessoa quer ser tratada baseada na leitura social, por isso evite se dirigir às pessoas usando palavras como “moça / moço”, “menino / menina”, procure eliminar substantivos generificados e tente utilizar expressões como “boa tarde, como posso ajudar?” “com licença, o que você precisa?”, evitando assim mal denominar (atribuir um gênero errôneo) a pessoa que está sendo atendida. (ver Abordagem) Perguntar como uma pessoa gostaria de ser chamada é uma forma de garantir respeito a todas as pessoas, inclusive às pessoas não binárias. Esse simples ato gera fortalecimento do vínculo terapêutico, podendo melhorar a adesão do cuidado em saúde. O uso de pronomes corretos é relevante não só para o conforto, mas também para a segurança e para prevenção de suicídios. É importante considerar que pessoas trans e/ou intersexo possuem altas taxas de ideação e tentativas de suicídio. O estudo estadunidense36 produzido por Jack Harrison, Jaime Grant e Jody Herman em 2012, reanalisando uma
36 Harrison-Quintana J, Grant J, Herman JL. A Gender Not Listed Here: Genderqueers, Gender Rebels, and OtherWise in the National Transgender Discrimination Survey. Massachusetts/EUA: Harvard Kennedy School Journal of LGBTQ Policy; 2012.
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69 pesquisa nacional de 2008, aponta que 40% das pessoas trans não-binárias já tentou suicídio em algum momento, taxas que são ainda maiores do que para homens e mulheres trans. Trevor Project é outra referência que traz importantes dados, com uma pesquisa nacional (estadunidense) em 202037 que demonstrou mais de 60% das pessoas trans já terem apresentado algum tipo de comportamento autolesivo. Em contrapartida, pessoas que tiveram seus pronomes e identidades respeitados apresentaram apenas metade de tentativas e ideações suicidas, o que aponta o respeito a nomes e pronomes como um importante instrumento de cuidado à vida de pessoas trans e não binárias. (ver Abordagem de gênero identitário) Já o uso de linguagem neutra, ou não-binária, não é pautado somente em um pronome neutro e sim no respeito a todas as identidades. Uma boa forma de começar a utilizar uma linguagem não excludente é inserindo a palavra “pessoa” em seu vocabulário, assim todas as outras palavras concordarão gramaticalmente com “pessoa”, substantivo feminino, e não com o gênero referente à pessoa atendida. Caso alguma pessoa usuária de saúde utilize conjuntos de linguagem não-binária, os seguintes materiais podem ser consultados:
Guia para Linguagem Neutra
Manual para o uso da linguagem neutra em Língua Portuguesa
37 The Trevor Project. 2020 National Survey on LGBTQ Youth Mental Health. New York: The Trevor Project
[homepage na internet]; 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.thetrevorproject.org/survey- 2020/?section=Introduction
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Pessoas cisgênero
Cisgênero e cisgeneridade referem-se à condição de congruência entre a identidade de gênero de uma pessoa e o gênero atribuído a ela ao seu nascimento. O uso de “homem cisgênero” e “mulher cisgênero” é comum como forma de designar as pessoas que não são pessoas trans. Estas designações são preferíveis a formas equivocadas como “homens e mulheres biológicos”, já que o gênero identitário não se relaciona necessariamente com aspectos físicos ou biológicos. Assumir ou reconhecer a existência da congruência entre a identidade de gênero e o gênero atribuído ao nascimento de uma pessoa não significa dizer que ela se reconheça plenamente ou acriticamente com estereótipos normativos e papéis sociais do gênero com o qual ela se identifica. Pessoas cisgênero, assim como pessoas transgênero, expressam o seu gênero de diversas formas e não estão sempre ou necessariamente condizentes com estereótipos, papéis e normas de gênero.
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Identidades relacionadas à orientação sexual As identidades relacionadas às orientações sexuais são autorreferidas. Não cabe a profissionais de saúde categorizar ou definir a identidade de qualquer pessoa, mesmo no que se refere à sua orientação afetivo-sexual-romântica. Uma pessoa pode autodeterminar sua orientação sexual considerando diferentes critérios para isso, por exemplo, frequência de relacionamentos ao longo da vida, relacionamento significativo, desejo sexual, atração por corpos, validação social, matrimônio adquirido entre diversos outros. (ver Orientação sexual). Portanto, essas identidades não estanques e estão sujeitas a diferentes percepções sem que, no entanto, o autorreconhecimento esteja comprometido. A seguir, estão apresentadas algumas identidades relacionadas à orientação sexual que devem ser entendidas dentro desse contexto.
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Lésbicas
A identidade lésbica, assim como outras identidades, é autorreferida. Tipicamente entende-se por lésbicas mulheres que se relacionam afetiva, romântica e/ou sexualmente com outras mulheres. No entanto, pessoas de outros gêneros, como não binárias, podem autodeclarar-se lésbicas a partir de suas práticas e vivências. Por lésbicas serem uma categoria relacionada à orientação sexual, afetiva e/ou romântica, existe dentro do grupo de lésbicas uma diversidade de gêneros. Lésbicas podem ser mulheres cisgênero, mulheres trans, travestis, ou pessoas com variabilidade de gênero e vivência sexual, afetiva e/ou romântica lésbica. Existem mulheres lésbicas que performam a feminilidade hegemônica (cabelos longos, roupas e adereços considerados femininos, uso de maquiagem etc.) e outras que não performam a feminilidade hegemônica. No entanto, a expressão de gênero não define a orientação romântica, afetiva ou sexual dessas mulheres. Dentro da comunidade lésbica são utilizados alguns termos para referência das diferentes expressões de gênero (ver expressão de gênero), como bofe, lady, caminhão, caminhoneira, dike, entre outras. O termo sapatão surgiu, em princípio, como uma das expressões de gênero e com o tempo torna-se uma identidade, de pessoas que não necessariamente se identificam como mulheres, mas que se relacionam com mulheres, mesmo que não exclusivamente. O termo lésbica é referente à orientação sexual, romântica e/ou afetiva. Portanto, é possível que a pessoa se identifique de diferentes formas com relação a cada uma das orientações. Como exemplos, é possível uma mesma pessoa ter orientação sexual assexual, orientação romântica e afetiva lésbica. Ou ainda que uma pessoa tenha orientação sexual lésbica e orientação romântica e afetiva bissexual. São possíveis muitas variações além das citadas. O movimento de lésbicas no Brasil surgiu juntamente com o movimento gay, como parte do movimento homossexual. Durante a ditadura civil militar brasileira (1964-1985), as lésbicas foram perseguidas e se organizaram politicamente em resistência. Data deste período a criação do jornal Chana com Chana, cuja circulação acontecia principalmente no Ferro’s Bar, em São Paulo - SP. A perseguição política e social contra as lésbicas é marcada pela expulsão do grupo que vendia a publicação e frequentava esse bar no dia 28 de agosto de 1983. Na data de 28 de agosto é comemorado o dia da Visibilidade lésbica no Brasil. Apesar da organização e da resistência das lésbicas, nota-se que lésbicas têm pouco espaço na vida pública. Isso deve-se principalmente à exclusão política desse grupo tanto pelos movimentos feministas quanto pelos movimentos LGBTIA+. O preconceito contra
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73 pessoas LGBTIA+ exclui lésbicas de movimentos sociais feministas, de saúde, habitação, educação, entre outros. O machismo exclui lésbicas do próprio movimento LGBTIA+. Deve-se levar em consideração a vulnerabilidade de núcleos familiares chefiados por lésbicas, visto que mulheres recebem em média somente 76% do salário de homens para exercer o mesmo trabalho ou função e mulheres negras, 43% do salário de homens brancos.38 Soma-se a isso a dificuldade de pessoas LGBTIA+ de se colocarem no mercado formal de trabalho. Além de ser bastante recorrente que lésbicas sofram de diferentes abusos por parte da família e da sociedade, tal como os estupros corretivos, expulsão de casa, privação de liberdade, “tentativas de cura”, questionamento ou invalidação da maternidade de mães lésbicas, entre outras violências. Com relação aos cuidados em saúde individuais de mulheres lésbicas, profissionais devem atentar para não reproduzir os estigmas sociais supondo que essas mulheres não precisam realizar exames preventivos, ou que estão imunes às IST. Cabe dialogar com a pessoa atendida para que haja decisão em conjunto em relação à realização de exames, considerando benefícios e possíveis riscos. Também cabe investigar outras questões que atingem comumente a população lésbica, como abuso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, problemas cardiovasculares, obesidade, e relações abusivas entre mulheres, com incidência de violências psicológica, moral, patrimonial, física e sexual.39
38 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Brasil). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Brasília: IPEA e IBGE; 2019. 39 Vieira RC, Teixeira DS. Lésbicas. In: Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos. Cartilha Mitos e Verdades sobre Saúde da População LGBTIA+ [internet]. SBMFC; 2020
[acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wp- content/uploads/2020/07/Cartilha-LGBTIA.pdf
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Gays
Historicamente, gay é um termo que se refere a homens com orientação sexual, romântica e/ou afetiva direcionadas a outros homens, sejam eles cis ou trans, ou pessoas com variabilidade de gênero e vivência sexual, afetiva e/ou romântica gay. É importante destacar que gay está relacionado a uma identidade assumida pelos sujeitos, ou seja, não se deve acoplar tal identidade a homens que tenham práticas sexuais homossexuais e não se reconheçam nela. Assim, podemos ter homens que têm relações sexuais com outros homens e se entendem como bissexuais, heterossexuais ou outras formas de identificação. Gay, portanto, é uma identidade autorreferida. É também possível que a orientação sexual seja diversa da orientação romântica e/ou afetiva, como uma pessoa que tem orientação sexual assexual e orientação romântico/afetiva gay, entre tantas outras possibilidades. O termo gay ganhou mais expressão social no contexto de reivindicações por direitos, a partir da década de 1960, com o então conhecido Movimento Homossexual. O levante de Stonewall, ocorrido em junho de 1969 em Nova York, é um marco importante na definição da palavra como um aglutinador das identidades homossexuais de homens. Stonewall foi um divisor histórico internacional na constituição de paradas do orgulho e na manifestação pública por direitos e respeito ao redor do mundo, e o termo gay se estabeleceu em muitos países. No Brasil, isso se deu principalmente ao longo dos anos 1980 e 1990, não sem resistência dos movimentos sociais locais que destacavam uma importação da forma de identificação das homossexualidades estadunidenses em detrimento das formas locais. Assim, aqui se reivindicava também o uso aportuguesado da palavra, grafada como guei, ou de termos que costumam ser utilizados de forma pejorativa, como forma de ressignificá-los, como bicha ou viado. Nos anos 1980, o termo também se difundiu por conta das matérias sobre HIV/aids que atribuíam a epidemia aos homens homossexuais, tratando o vírus e a doença como “peste gay” e “câncer gay”. Ao longo dos anos 1990, com a reorganização dos movimentos sociais em defesa dos direitos da diversidade de orientações sexuais e de identidades de gênero, definiu-se o uso de siglas que sedimentaram o termo gay como alusivo às homossexualidades masculinas como em GLT (gays, lésbicas e travestis), GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e travestis) e o atual LGBTIA+. Dentre os homens gays são utilizados alguns termos para referência das diferentes expressões de gênero (ver Expressão de gênero), como urso, barbie, poc, bofe etc. As expressões são como as pessoas se apresentam socialmente, destacando-se que as práticas sexuais nada tem a ver com a expressão de gênero. Padrões de comportamento relacionados à masculinidade podem ser desejados ou indesejados, reproduzindo machismo e
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75 estigmatizações que são responsáveis por exclusões mesmo dentro de grupos sociais de homens gays. É comum, nos serviços de saúde, que profissionais deem maior atenção às possíveis IST em homens gays. No entanto existem muitas questões relativas à saúde deste grupo populacional a serem observadas, como transtornos alimentares, abuso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, incidência de violência doméstica seja por parte da família de origem seja por parte da parceria afetiva/sexual, depressão e/ou ansiedade decorrentes da homofobia entre outras. É importante que a abordagem profissional leve em conta a especificidade de cada pessoa, procurando oferecer um ambiente seguro e confortável para o acompanhamento em saúde.40
40 Lopes Jr A, Stelet B, Antoniacomi G. Gays. In: Grupo de Trabalho de Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos. Cartilha Mitos e Verdades sobre Saúde da População LGBTIA+ [internet].
SBMFC; 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wp- content/uploads/2020/07/Cartilha-LGBTIA.pdf
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76 Bissexuais, Pansexuais, Polissexuais e outras orientações não monossexuais
A existência de pessoas que sentem atração por mais de um gênero, é algo que se registra na história, em diferentes culturas e épocas; na Ásia, África, América e Europa, em diferentes momentos históricos se registrou a presença dessas pessoas, que foram mais ou menos aceitas em seus diferentes contextos sociais e históricos. Especialmente na história da sexualidade, pensando em uma perspectiva eurocêntrica, colonialista e cristã, pessoas não monossexuais foram hostilizadas e fetichizadas, com reflexos que persistem ainda nos dias atuais, como a ideia de que pessoas não monossexuais seriam promíscuas ou traidoras da hetero e homossexualidade. É importante pontuar que o termo não monossexual, refere-se a um conjunto de orientações sexuais, como: a bissexualidade, a pansexualidade, a polissexualidade, a multissexualidade, dentre outras. Importante ressaltar que esse termo se difere do termo não monogamia, que diz respeito ao modelo de estrutura e constituição de relacionamentos. Bissexuais, pansexuais, polissexuais e pessoas com outras orientações não monossexuais são indivíduos que sentem atração romântica/sexual/afetiva por mais de um gênero. Essas orientações costumam ser não compreendidas devidamente, sendo frequentemente associadas a clichês binaristas, ou discriminatórios. A bissexualidade, com frequência é entendida também como um termo guarda-chuva, que reúne outras identidades de pessoas que se atraem por mais de um gênero, como
pessoas pansexuais, multissexuais, polissexuais (não confundir com pessoas não- monogâmicas, ou seja, que podem não adotar contratos de monogamia).
Existe muita disputa ainda sobre todas as definições dessas identidades, mas todas possuem em comum a ideia de sentirem atração por mais de um gênero. É importante lembrar que essas identidades não devem ser usadas como armas contra outras identidades parecidas, devendo-se respeitar a autoidentificação de cada pessoa. Ou seja, essas identidades devem ser entendidas como aliadas em pontos que as aproximam. É importante que as equipes reconheçam essas questões, para que possam devidamente acolher o sentimento de invalidação que pessoas que se atraem por mais de um gênero com frequência sentem. Não se deve, portanto, estimular ideias como “uma pessoa bissexual não se atrai por pessoas trans, você deve ser uma pessoa pansexual”. Esse é um exemplo de um pensamento transfóbico e discriminatório que não apenas reproduz a falsa ideia de que pessoas trans precisam alcançar um corpo “adequado”, como réplica uma falsa ideia sobre o que é bissexualidade e pansexualidade.
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77 Apenas para caráter informativo das equipes, trazemos algumas das definições e características mais comumente aceitas para as orientações não monossexuais: • Bissexual: Sente atração romântica/sexual/afetiva por mais de um gênero, mas não necessariamente todos. Algumas pessoas podem possuir preferência por certos gêneros sobre outros. • Pansexual: Sente atração romântica/sexual/afetiva independente de gênero. Muitas pessoas se descrevem “não se importar com gênero”, e em regra não possuem preferências de gênero. • Multissexual: Sente atração romântica/sexual/afetiva por todos os gêneros, com frequência possuem preferências para certos gêneros sobre outros. • Polissexual: Sente atração romântica/sexual/afetiva por vários, mas não necessariamente de todos os gêneros. Algumas pessoas podem possuir preferência por certos gêneros. É importante não confundir essa identidade com a ideia de poligamia.
Muitos estudos apontam que pessoas bissexuais, pansexuais, multissexuais, polissexuais e outras orientações não monossexuais sofrem de severo adoecimento mental com base na negação da ideia de que pessoas poderiam se atrair por mais de um gênero. Com frequência todas essas pessoas são repetidas vezes questionadas sobre seus relacionamentos e suas afetividades, especialmente quando não dirigidas equitativamente para vários gêneros, ou quando essas pessoas são percebidas em relações longas e duradouras com uma mesma pessoa. Da mesma forma, mesmo dentro da saúde, todas essas identidades com frequência são entendidas como sinônimo para comportamentos sexuais com maiores vulnerabilidades, e que exporiam “a risco” pessoas que se atraem por apenas um gênero, especialmente pessoas heterossexuais. A invisibilidade das experiências de pessoas não monossexuais ocasiona um aumento significativo no adoecimento mental dessa população, que com frequência deixa de contar com políticas e planos específicos de saúde que se atentem às suas especificidades. Homens e mulheres não monossexuais são considerados incluídos nas políticas de saúde formuladas para gays e lésbicas. Essa ausência de atenção específica implica no aumento potencial de risco à saúde dessa população, uma vez que se ignora não apenas especificidades, mas violências específicas às quais esse grupo populacional está sujeito. Uma sugestão direta ao tratar e pensar necessidades de saúde dessa população é afastar-se de preconceitos comuns, como considerar pessoas não monossexuais como promiscuas, jogar orientações não monossexuais umas contra as outras, ou questionar
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78 determinada orientação que uma pessoa não monossexual apresenta, ou mesmo entender que a atração dessas pessoas deve ser condicionada a determinado genital das pessoas com quem se relacionam.
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79 Pessoas Assexuais Estritas, Demissexuais, Graysexuais e de demais orientações do “Espectro Assexual” - Assexualidade
Pessoas assexuais não são pessoas que não possuem interesse ou não praticam sexo, ao contrário do que é comumente acreditado. Assexuais são pessoas que não sentem atração sexual, que sentem pouca ou que apenas sentem atração sexual em situações específicas. Sendo uma identidade de orientação sexual pouco discutida, a compreensão sobre o que seria a assexualidade ainda está cercada de estigmas e preconceitos. A assexualidade é considerada um conjunto de orientações sexuais, que reúne, em um espectro, pessoas assexuais estritas, demissexuais, grayssexuais e outras identidades assexuais. Essas orientações sexuais são diferenciadas pela presença em diferentes graus (desde sua ausência, até a presença quase constante) de atração sexual por outras pessoas. Uma pessoa que sente atração sexual de forma constante é chamada de alossexual, e está fora do espectro assexual. Embora não sintam, ou sintam pouca atração sexual, pessoas assexuais ainda podem sentir outros tipos de atração, como atração romântica, sensorial ou sensual, estética, platônica, dentre outras, e com base nessas atrações, pessoas assexuais podem constituir relações afetivas íntimas de diferentes níveis e finalidades, o que derruba a ideia de que pessoas assexuais seriam incapazes de formar relações íntimas, profundas e satisfatórias com outras pessoas. Pessoas assexuais que buscam relacionamentos afetivos ou românticos podem estabelecer relacionamentos de diferentes combinações e organizações, participando de relacionamentos monogâmicos ou não-monogâmicos, por exemplo. Pessoas assexuais com frequência utilizam-se também de termos como hétero, homo (gay ou lésbica), bi, pan ou poli para definir suas identidades com base não em sua atração sexual (que pode ser pouca ou inexistente), mas em outras atrações que sentem por outras pessoas. Pessoas se identificando como hétero e assexual, lésbica e assexual, bi e assexual podem aparecer. Muitas dessas pessoas podem somente identificar-se abertamente como assexuais ao sentirem-se seguras com as equipes. A ideia da identidade assexual baseia-se completamente na percepção que a própria pessoa possui sobre a ausência de atração sexual, o que não é igual prática sexual. Pessoas assexuais, por inúmeros motivos, como busca de prazer, constituição de família, autossatisfação, práticas negociais, ou mesmo a crença de uma obrigação, podem praticar atividades sexuais. Existem pessoas assexuais que estão mais disponíveis ou confortáveis com a prática de atividades sexuais, e é importante que se entenda e questione a pessoa sobre o seu conforto individual acerca de práticas sexuais.
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80 Justamente pela ausência de informações de qualidade e incompreensão mais profunda sobre a diversidade da sexualidade humana, pessoas assexuais, em especial, sofrem com a patologização de sua identidade sexual, com frequência tendo suas vivências e experiências infantilizadas e desacreditadas. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5a Edição (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria, publicado em 2013, explicitamente reconhece a assexualidade e diz que, se uma pessoa é assexual, não deve ser diagnosticada com Transtorno do Interesse/Excitação Sexual Feminina ou Transtorno do Desejo Sexual Masculino Hipoativo. Todavia, apresenta como ponto negativo o fato de que pessoas assexuais precisem abertamente se afirmarem como assexuais. Apesar disso, com muita frequência, pessoas assexuais são patologizadas por profissionais da saúde, que insistem na recomendação de uso de hormônios, terapia ou abertamente consideram a assexualidade de uma pessoa como sinal de um transtorno. Familiares e outras pessoas com quem assexuais possuem relacionamentos podem pressionar para que seja encontrada “uma cura” para a assexualidade. Essa ideia nasceu da falsa crença de que todas as pessoas, de forma natural e compulsória, sentem atração sexual por outras pessoas, bem como de que o interesse pela prática sexual é algo inato a todas as pessoas. Embora a ausência ou desinteresse pela prática sexual não seja característica da assexualidade, é comum que pessoas assexuais tenham menos interesse em atividades sexuais, e isso em geral pode resultar em conflitos íntimos em relacionamentos ou em um sentimento de alienamento social. É preciso sensibilidade de profissionais da saúde ao entenderem que muitas pessoas assexuais, devido a limitação de informações, podem desconhecer a possibilidade de serem assexuais, tendo passado boa parte de suas vidas acreditando estarem doentes, ou buscando uma explicação clínica para algo que constitui a sua identidade sexual. Profissionais de saúde precisam ser especialmente sensíveis e entender que passar uma vida acreditando “ser doente/quebrada” pode levar uma pessoa assexual a buscar um diagnóstico motivada por pressão de familiares ou parcerias, ou mesmo como resposta a um diagnóstico que possa indicar um conforto acerca do sofrimento mental sentido por muitas pessoas assexuais. Pessoas assexuais, em especial, apresentam elevado nível de adoecimento mental em consequência das violências que enfrentam – que se destacam, por serem silenciosas. Pessoas assexuais com frequência escutam que estão doentes, ou são quebradas, ou inumanas, e mesmo a invalidação e descrença de seus relacionamentos, com base em uma regra social silenciosa que considera a prática sexual como “uma necessidade humana
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81 básica”, ou um marco de maturidade. Quando pessoas assexuais relatam práticas sexuais, sua identidade é questionada com base na crença de que pessoas assexuais não praticam sexo. Como a assexualidade não é uma doença ou transtorno, os corpos de pessoas assexuais funcionam devidamente. A assexualidade não causa necessariamente o impedimento de processos de excitação sexual, ou para a prática de atividades sexuais, mas a ausência de atração sexual, mesmo com a presença de desejo sexual, pode dificultar ou desestimular a pessoa assexual a se envolver em tais práticas. Pessoas assexuais, embora não sintam atração sexual, possuem desejo, todavia, é comum que o desejo em pessoas assexuais se volte para outros objetos em vez do sexo. Importante pontuar que pessoas assexuais podem possuir maior ou menor interesse em práticas ou experiências sexuais por inúmeros motivos, como por exemplo, a busca de prazer, o interesse em constituir família ou ter filhos(as), a prática negocial ou a satisfação de suas parcerias. Algumas pessoas assexuais consideram que práticas de BDSM ou outros modelos não normativos de práticas sexuais lhes permitem explorar com mais facilidade e segurança sua sexualidade. As expectativas de gênero influenciam também pessoas assexuais a se assumir publicamente como tais. Pouquíssimos homens hétero falam abertamente sobre suas experiências, temendo questionamentos sobre sua masculinidade. Muitas mulheres assexuais acreditam que práticas sexuais são uma obrigação a suas parcerias, por exemplo. Discutir consentimento, limites e conforto com práticas sexuais pode ser algo extremamente importante para a população assexual. A saúde de mulheres assexuais é especialmente vulnerabilizada. São muitos os relatos de mulheres assexuais que tiveram negado acesso a procedimentos ou exames, com base na presunção de que essas mulheres não possuem vida sexual, ou poucos relatos de contato sexual. É importante que se pense o cuidado da saúde integral da pessoa, independente da constância ou não de prática sexual, que não deve nunca servir como parâmetro para que se deixe de realizar exames ou procedimentos comuns. Outra questão importante ao considerarmos a população assexual, é que esse grupo populacional está muito mais sujeito ao chamado “estupro corretivo”, prática criminosa que acredita que é possível se alcançar uma ‘cura’ por meio de experiências sexuais forçadas. Pessoas assexuais são com frequência vítimas de violência sexual, com relatos colhidos especialmente dentre a comunidade de que grande porcentagem da população assexual já foi vítima de alguma forma de violência sexual. Pensando no melhor acolhimento da população assexual, é extremamente importante que se acredite em um acolhimento inclusivo, busque ouvir a pessoa, entender sua vivência,
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82 experiências e motivações, especialmente que as práticas sexuais não sejam entendidas como uma experiência universal para todas as pessoas, e que se evite estranheza acerca de experiências que podem ser diversas da vividas por profissionais de saúde.
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Heterossexuais
Dado que o recorte populacional deste protocolo é a comunidade LGBTIA+, faz-se necessário compreender o que se entende por pessoas não heterossexuais: lésbicas, gays, bissexuais e assexuais, concepções identitárias do que chamamos de orientação sexual. (ver Orientação sexual) A orientação sexual diz respeito à forma como a pessoa se reconhece e/ou se posiciona perante as demais pessoas, mas não traduz necessariamente suas experiências emocionais, sexuais ou relacionais. Pessoas heterossexuais/ heteroafetivas/ heterorromânticas atraem-se sexualmente / afetivamente / romanticamente por pessoas de um gênero diferente do seu. Importante destacar que, por gênero não ser uma concepção binária e por não haver necessariamente antagonismo entre os gêneros, não se deve concluir que pessoas heterossexuais se atraem por um gênero “oposto” ao seu – dado que não há oposição ou polarização de gêneros. Pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero, assim como pessoas cisgênero, podem identificar-se como heterossexuais. A sua própria percepção de gênero pode ser considerada como fator determinante para sua autodeterminação de orientação sexual, e não cabe a profissionais de saúde questionar sua identidade relacionada à orientação sexual. Pessoas cisgênero heterossexuais também podem relacionar-se com pessoas trans e, da mesma forma, isso não implica em uma alteração de sua identidade relacionada à orientação sexual.
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Identidades relacionadas a características corporais Algumas características corporais são tradicionalmente relacionadas à designação de sexo de registro. A seguir são apresentadas duas formas com as quais essas características podem resultar em percepções identitárias e/ou em posicionamentos de identidade política.
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Pessoas Intersexo
Pessoas intersexo não são raras, mesmo que o seu reconhecimento seja pouco comum dentro dos serviços de saúde. Estima-se que 1,7% da população mundial seja intersexo, ou seja, tenha algum grau de variabilidade entre as características genéticas, genitais, gonadais ou de respostas hormonais típicas. Nessas pessoas, as características corporais relacionadas a gênero (a genitália, os órgãos reprodutivos, os “cromossomos sexuais” e as transformações puberais) não seguem necessariamente a linearidade típica que é observada nas pessoas endossexo (aquelas que não são intersexo) e podem apresentar variações. Por exemplo, nem todas as pessoas com cromossomos XX têm vulva e vagina típicas, útero e ovários, assim como podem ter todas essas características, mas não responder aos hormônios endógenos de forma típica durante a puberdade. Algumas dessas variações são agrupadas como Diferenças de Desenvolvimento do Sexo (termo preferido em substituição a Distúrbios/Disfunções/Doenças do Desenvolvimento Sexual, que gera uma percepção
patologizadora),41 e termos estigmatizantes e incorretos, como “hermafroditismo”, “pseudo- hermafroditismo” e “reversão do sexo” não devem ser utilizados.42
A intersexualidade não deve ser compreendida como um problema médico, pois a maioria das pessoas intersexo é saudável e somente uma parcela pequena dessa população necessita de intervenções cirúrgicas no início da vida para manter a funcionalidade (relacionada às eliminações fisiológicas). As cirurgias precoces e sem finalidade funcional realizadas nas pessoas Intersexo, com objetivo de encaixar seus corpos dentro de uma lógica binária de gênero (mulher ou homem), não melhoram a vivência da pessoa com a sua sexualidade nem a ansiedade da família,43 e são consideradas hoje como mutilação, tortura e outras violações dos direitos humanos, por alterarem corpos saudáveis e gerarem sequelas físicas e psíquicas permanentes, que trazem mais sequelas do que conforto a essas pessoas.44,45 Historicamente, essas cirurgias foram desenvolvidas com o objetivo de
41 European Union Agency for Fundamental Rights - FRA [homepage na internet]. The fundamental rights situations of intersex people. Vienna: 2015 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/fra-2015-focus-04-intersex_en.pdf 42 Hughes IA, Houk C, Ahmed SF, Lee PA, LWPES1/ESPE2 Consensus Group. Consensus statement on management of intersex disorders. Arch Dis Child [periódico na internet]. 2006 April 19 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2082839/ 43 Hughes IA, Houk C, Ahmed SF, Lee PA, LWPES1/ESPE2 Consensus Group. Consensus statement on management of intersex disorders. Arch Dis Child [periódico na internet]. 2006 April 19 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2082839/ 44 United Nations Humans Rights. Intersex [internet]. 2018 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Discrimination/LGBT/FactSheets/UNFE_FactSheet_Intersex_EN.pdf 45 Silva MRD. Repensando os cuidados de saúde para a pessoa intersexo. In: Dias MB. Intersexo. Revista dos Tribunais; 2018 out 23. ISBN-10: 855321205X ISBN-13: 978-8553212057
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86 normalizar os corpos e adequar a vivência social dessas pessoas e, infelizmente, ainda são recomendadas rotineiramente ou até desejadas por familiares de crianças intersexo – fato que demonstra como a sociedade em que vivemos não oferece espaço para indefinições sobre a genitália e, consequentemente, para a indefinição sobre o gênero a ser atribuído a alguém.46 É importante considerar avaliar a causa das diferentes características corporais de uma criança, sejam elas genitais ou não. Variabilidades genitais podem ser resultado de variações hormonais ou cromossômicas, como hiperplasia da glândula adrenal - situação que pode solicitar intervenções específicas, principalmente nas formas perdedoras de sal. As cirurgias genitais e gonadais precoces devem ser realizadas apenas visando funcionalidade urogenital, com preservação das eliminações fisiológicas (fezes e urina). Organizações de direitos humanos e os movimentos sociais de pessoas intersexo defendem que procedimentos cirúrgicos sejam realizados somente quando a pessoa tiver condições de decidir por si mesma e após serem informadas sobre riscos, para poderem decidir conscientemente e com autonomia, considerando que a intersexualidade traz um debate muito mais profundo sobre trauma e sobre estigma do que sobre gênero.47 Uma pessoa intersexo pode identificar-se com os mais variados gêneros: mulher, homem, não binário ou outros. Portanto, pessoas intersexo podem ser cisgênero ou transexuais, assim como podem ter qualquer orientação sexual. Muitas pessoas intersexo submetidas a intervenções cirúrgicas na infância sentem que foram forçadas a adotar um gênero que não as contempla, portanto entre essas pessoas há uma porcentagem muito maior de vivências de transgeneridade do que entre pessoas diáticas.48 Alguns debates apontam o termo Intersexo como uma identidade biopolítica, pois envolve a marcação de um posicionamento e por pautas de Direitos Humanos: direitos a certidão de nascimento no sexo real de registro – intersexo; ter o corpo não violado por procedimentos médicos sem consentimento e irreversíveis. 49
46 Butler J. Gender Trouble [Internet]. 1st ed. Londres: Routledge; 1990: 92 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://lauragonzalez.com/TC/BUTLER_gender_trouble.pdf 47 Consortium on the Management of Disorders of Sex Development. Clinical Guidelines for the Management of Disorders of Sex Development in Childhood. Intersex Society of North America [homepage na internet]; 2006 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.isna.org 48 Hughes IA, Houk C, Ahmed SF, Lee PA, LWPES1/ESPE2 Consensus Group. Consensus statement on management of intersex disorders. Arch Dis Child [periódico na internet]. 2006 April 19 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2082839/ 49 Santos TEC, Martins RA, Klein AM. Pessoas Intersexo e a violação dos Direitos Humanos: mutilações genitais, hormonização imposta e a não existência legal. In: Brabo TSAM. Mulheres, Gênero e Sexualidades na sociedade - diversos olhares sobre a cultura da desigualdade [ebook na internet]. Marília: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 2000.
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87 Assim, uma pessoa intersexo terá vivências relacionadas à sexualidade singulares, pois cada pessoa intersexo tem um corpo muito próprio e, portanto, a vivência de sua sexualidade pode também ser única.
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Pessoas endossexo / diáticas
São pessoas que nasceram com corpos em padrões que os levam a ser considerados tipicamente femininos (corpos de seres classificados como fêmeas) ou masculinos (corpos de seres classificados como machos). Pessoas endossexo não possuem características corporais relacionadas à construção social de gênero e de sexo que sejam, dentro de uma perspectiva normativa de corpos tradicionalmente considerados femininos ou masculinos, reconhecidamente desalinhadas entre si. Portanto, todas as pessoas que não são intersexo são reconhecidas como endossexo, ou diáticas.
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Diferentes momentos da vida
Cada pessoa vive experiências únicas e atribui a elas um significado específico dentro de sua própria história e de sua perspectiva de futuro. No entanto, nossa vivência social consolida-se embebida em intersecções de diferentes percepções culturais e modos de viver, que projetam em nossa existência possibilidades que reproduzem vivências e papéis sociais, os quais se refletem na percepção individual e coletiva. Por coexistirmos em uma mesma sociedade e em um mesmo momento histórico, é comum que muitas experiências sejam compartilhadas, assim como as interpretações e os afetos relacionados a elas. Portanto algumas vivências são comuns à população LGBTIA+. É importante compreender que a duração, os conteúdos e a atribuição de significados sociais aos diferentes momentos da vida se modificam de acordo com a cultura e com o momento histórico. Em diferentes tempos e culturas, o curso da vida pode ser dividido diferentemente da forma com a qual nos acostumamos. Assim, compreende-se como sendo uma construção social, e não um fenômeno "natural", o entendimento de que existem momentos e ciclos de vida nos quais algumas práticas sociais possuem diferentes significados e aceitabilidades, denominados como infância, adolescência, idade adulta e envelhecimento. As construções sobre sexualidade e suas vivências individuais também são atravessadas por essa contextualização sociocultural e temporal e, para pessoas LGBTIA+, as crises esperadas em cada momento de vida sofrem ação também da intolerância e da marginalização à qual essa população é submetida. Por esse motivo, a seguir são apresentadas algumas das experiências que se percebem comuns a pessoas LGBTIA+ que se encontram em diferentes momentos da vida e que atravessam algumas experiências específicas, assim como são oferecidas algumas recomendações a profissionais de saúde que se propõem a reconhecer, compreender, cuidar e promover bem-estar dessas pessoas durante seus atendimentos.
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Antes do nascimento ou da adoção
Muito antes do nascimento, existe um projeto de parentalidade. Seja esse processo planejado ou factual. Escolher a parentalidade como uma forma de constituir família com a concepção ou adoção de criança(s) é um direito reprodutivo que deve ser assegurado a todas pessoas que assim desejarem. Equipes de saúde devem assegurar atendimento digno que não reproduzam preconceitos com os projetos de parentalidade independente da identidade de gênero, orientação sexual ou composição familiar e/ou de relacionamento da pessoa atendida. É normal que se criem expectativas em relação à(s) criança(s) que está(ão) por vir. Tanto no caso da adoção quanto no caso da gestação. Uma das expectativas mais comuns é com relação ao gênero no primeiro caso e à genitália no segundo caso. Socialmente e culturalmente projeta-se sobre as crianças expectativas e padrões comportamentais de acordo com a genitália. Exemplos dessas expectativas diferenciadas pelo gênero designado ao nascimento são a diferenciação da cor de roupa, do tipo de brinquedos e brincadeiras, das possibilidades profissionais, do tipo de afeto trocado com essa criança, do casamento e de geração de filhos. No entanto as expectativas geradas sobre a(s) futura(s) criança(s) não só podem frustrar a família de origem, como podem, ao reproduzir machismo, misoginia, LGBTIA+fobia – como a imposição dos papéis de gênero – alimentar uma cultura que gera sofrimentos, violências e mortes. Logo, é papel de profissionais de saúde trabalhar essas questões para cuidar da saúde e da vida das famílias, das crianças e de toda a sociedade. Esse cuidado pode acontecer de diversas maneiras, um exemplo é a oferta de espaço de reflexão durante uma consulta de pré-natal sobre as vivências relacionadas ao gênero na pessoa atendida e o quanto é esperado que essas experiências sejam reproduzidas ou evitadas na educação da criança que está por vir. Com o avanço e a democratização da tecnologia, é possível identificar através de exames de imagem e de sexagem a genitália de fetos antes mesmo do nascimento. E com isso faz-se necessário que profissionais de saúde se responsabilizem por explicar que exames visualizam órgãos e corpos, não aspectos psíquicos e sociais. Em alguns casos é possível identificar inclusive genitálias atípicas, apesar de ser mais corriqueira essa identificação após o parto. O importante nesses casos é naturalizar e despatologizar os corpos intersexo, evitando palavras como anomalia, má formação, aberração cromossômica ou sexual.
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Nascimento
O momento do nascimento de uma criança é um momento bastante importante e intenso na vida da pessoa parturiente. E também é um momento de bastante fragilidade física e emocional. É imprescindível que a equipe de saúde que conduz o parto seja acolhedora com parturiente e recém-nascido. Não são raros os relatos de violência obstétrica no momento do parto. Os grupos mais vulneráveis são as pessoas negras, indígenas e as pessoas da comunidade LGBTIA+. Por esse motivo é importante lembrar que gestar e parir não são etapas da vida exclusivas de mulheres cisgênero e heterossexuais. Pessoas não binárias, pessoas transmasculinas, homens trans, pessoas intersexo, lésbicas, bissexuais, dentre outras identidades podem gestar e parir. Por isso, gestação e parto são fases da vida possíveis para todas as pessoas que têm útero e desejam a parentalidade como escolha. Da mesma forma que é necessário considerar a diversidade da pessoa parturiente, o mesmo é válido para a criança que nasceu. Uma criança e sua identidade passam a existir, coletivamente ou no imaginário da família, antes mesmo de ela nascer ou ser concebida. Desejos e expectativas sobre a criança são geradas, consciente ou inconscientemente, incluindo-se aqueles relacionados à sexualidade.50 O momento da designação de gênero é o momento que se segue ao seu nascimento. É comum que seja usado o sistema binário para a designação de gênero. Identificado o pênis a criança será designada como menino. Identificada uma vulva a criança será designada como menina. A partir do gênero designado ao nascimento, baseado nas características corporais, comunica-se às crianças direta e indiretamente sobre quais são os comportamentos esperados e exigidos delas. Os papéis sociais relacionados ao gênero e a heterocisnormatividade são exemplos desses comportamentos sociais. (ver Aspectos da sexualidade) Devido à falta de divulgação da possibilidade de nascimento de crianças intersexo (1,7% da população), a atribuição de gênero ao nascimento pode gerar ansiedade na família de crianças que nascem intersexo, principalmente quando não existe acolhimento e cuidado adequado pela equipe de saúde. Essas crianças correm risco erroneamente de serem vistas como mal formadas, de serem submetidas a tratamentos e, até, a intervenções cirúrgicas desnecessárias, gerando amputações que provocam não apenas sequelas físicas, mas também emocionais irreversíveis e potencialmente graves.
50 Ministério da Saúde (Brasil). Saúde Sexual e Reprodutiva. Brasília: Departamento de Atenção Básica; 2013. (Caderno de Atenção Básica)
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92 As crianças intersexo devem ser recebidas com naturalidade, orientando parturiente e familiares que eventualmente estejam despreparadas para recebê-las, oferecendo informações sobre a normalidade da ocorrência do nascimento de crianças intersexo e oferecendo orientações para sua criação de gênero indistinta, até que manifestem naturalmente o gênero ao qual a criança se identificará, em outro momento de sua vida. (ver Intersexualidade) Após o nascimento, durante os primeiros 48 meses de vida da criança, o Ministério da Saúde recomenda o aleitamento humano, para que essa criança possa receber alimento, imunidade, afeto e como forma de criação de vínculo com sua família. O aleitamento pode ser oferecido pela pessoa que gestou e pariu a criança e também pode ser ofertado por outra(s) pessoa(s) do núcleo familiar.
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Infância
Através da receptividade emocional e cognitiva das pessoas ao seu redor, um bebê irá aprender a lidar com suas frustrações, fantasias, medos e desconfortos. O bebê sente-se confortado e seguro quando sua angústia é identificada, tolerada e elaborada pelas pessoas que são suas cuidadoras, tornando-o capaz de lidar com diferentes situações, ao elaborar e tolerar suas próprias frustrações.51 A psicanálise teoriza sobre a sexualidade e suas manifestações desde a infância, ao descrever fases com alguns focos de descoberta do mundo e de prazer físico e/ou emocional: fase oral (com mamas e objetos introduzidos à boca, no primeiro ano de vida), fase anal (controle de esfíncteres e ganho de autonomia, ao redor de um ano e meio a dois anos) e fase fálica (descoberta de genitais, curiosidade sobre o mundo e reconhecimento de si como pessoa, dos três aos seis anos). A maturação do sistema sensorial e motor promove uma mudança na forma como a criança percebe e explora o mundo. A partir da interação com as pessoas ao redor, ocorre a diferenciação entre o eu-outro e a autopercepção em relação a si. Ao redor dos 3 anos, a criança já percebe diferenças entre os corpos, como presença de pênis ou vulva, e entre 6 e 9 anos são comuns brincadeiras de imitar as pessoas adultas, inclusive nos papéis de gênero. Alguns familiares apresentam dúvidas sobre o comportamento das crianças nessa fase, como a criança que quer beijar a mãe na boca, ou o garoto que fica com a mão nos genitais. Na maioria das vezes, essa é uma atitude da criança de descoberta do corpo e imitação que, embora se relacione com o desenvolvimento sexual, possui significado distinto daquele de pessoas adultas.52 O pudor em relação à nudez é aprendido ao redor dos 4 anos. Até então, é comum as crianças manipularem seus genitais em espaços públicos, falarem sobre "xixi" e "cocô", ou olharem pessoas nuas ou se despindo no banheiro. A partir dessa fase, algumas falam palavrões sem compreender o que significam e realizam brincadeiras para explorar o corpo de outras crianças da sua idade. Ensinar as crianças sobre as diferenças entre o comportamento no espaço público (ex.: na rua, na escola) e privado (ex.: em casa, no banheiro), sem provocar vergonha ou constrangimento, são aspectos que podem influenciar positivamente o desenvolvimento da sexualidade.53
51 Ministério da Saúde / Secretaria de Atenção à Saúde / Departamento de Atenção Básica. Caderno de Atenção Básica - Saúde Sexual e Reprodutiva. 2013 52 Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM. Sexualidade e Diversidade. Em: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre: Artmed; 2019. 2v. 53 Souza MFD, Ribeiro CT. Criança: gênero e sexualidade no processo educativo. Revista Humanidades e Inovação. 2020; 7(4): 76-87.
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94 A puericultura emancipatória precisa considerar o desenvolvimento amplo da sexualidade, qual seja, da “descoberta do corpo, do desejo e da relação com o outro”. A equipe de saúde deve estar atenta para não reproduzir desigualdades entre homens e mulheres, por exemplo, atribuindo apenas às mulheres a responsabilidade pelo cuidado direto de crianças. O respeito à diversidade deve ser cultivado e estigmas sobre os papéis de gênero precisam ser evitados. (ver Papéis sociais de gênero) Brincadeiras e contatos corporais, inclusive com responsáveis pela criança, são ferramentas de vinculação e afeto saudáveis e importantes para o desenvolvimento neurocognitivo e emocional das crianças. Excluem-se dessa perspectiva as situações de abuso. É importante entender que crianças aprendem por imitação, por isso não há razão para impedir ou desencorajar crianças a brincarem ou se comportarem de forma diferente do papel de gênero esperado, uma vez que as brincadeiras de faz de conta refletem a descoberta de habilidades e o desenvolvimento das relações sociais. Dessa forma, quando uma criança brinca, mesmo que seja de atividades que não correspondem ao papel de gênero esperado, isso é um aprendizado saudável e não deve receber reprimendas. No caso de crianças que não se identificam com o gênero designado ao nascimento; ou seja, crianças com vivências de variabilidade de gênero, ou com uma identidade já autorreferida trans ou travesti; o bloqueio hormonal pode ser considerado a fim de adiar a puberdade e o surgimento dos caracteres sexuais secundários. Essa conduta pode reduzir os índices de depressão e ansiedade e melhorar o desenvolvimento psicossocial. No caso de crianças trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, não são brincadeiras que não corresponderão ao esperado para crianças com a mesma genitália, mas sim a vivência de gênero ou até a identificação da criança sobre si mesma para outras pessoas. Isso não é algo fruto da educação ou da imitação social, mas algo interno. Quando a vivência relacionada a gênero é entendida como consistente, insistente e persistente, possivelmente trata-se de uma criança com variabilidade de gênero. (ver Transgeneridade/Transexualidade) Em 2018, a Organização Mundial de Saúde anunciou a retirada da transgeneridade do capítulo de saúde mental da 11a edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-11). A medida, que implica a aceitação de que a condição não é um transtorno mental, contribui para a obsolescência de antigos critérios psicodiagnósticos que eram aplicados também à infância. Frente a isso, profissionais de saúde e familiares devem saber que não é uma disfunção de qualquer natureza, mas uma condição humana e que, portanto, não deve ser evitada ou reprimida pela família ou profissionais de saúde, o que poderia acarretar danos psicológicos e representar uma extrema violência contra a criança.
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95 Profissionais da saúde precisam compreender que crianças podem apresentar variabilidade de gênero, com uma fluidez maior do que a encontrada em adolescentes e pessoas adultas. O suporte dado deve estar de acordo com suas necessidades do momento, que não necessariamente serão as mesmas no decorrer da vida. Cabe oferecer a mães, pais, familiares, demais responsáveis e mesmo equipes escolares que tiverem dificuldade de lidar com a vivência de variabilidade de gênero, apoio psicológico e de orientação educacional, de forma a inibir situações de exclusão e violência mental e física nos meios familiares e escolares nos quais se inserem. É importante que a informação passada por profissionais de saúde seja a mais desprovida de valoração moral. Termos como vivências de variabilidade de gênero, criança trans, travesti, devem ser usados e acolhidos sem que seja dada valoração moral. Com o avanço de informações e vivências diferentes, termos e experiências estarão mais ou menos disponíveis para a criança, mães, pais e responsáveis. Compete às equipes garantirem que as famílias possam ter o amparo adequado, caso necessitem. Além disso, um acompanhamento mais específico deverá ser feito no início da puberdade, que pode acontecer desde o final da infância até o início da adolescência (entre 9 e 14 anos para meninas trans e entre 8 e 13 anos para os meninos trans), para que seja avaliada a necessidade ou não de bloqueio puberal, a fim de adiar o surgimento das características corporais puberais. Este pode ser um momento muito delicado, com alto risco de piora de disforia corporal relacionada a gênero. O bloqueio puberal tem o objetivo não só de prevenir o sofrimento destas pessoas, mas também dar-lhes tempo para vivenciar sua identidade de gênero e se compreenderem melhor, para que sua família possa também entender e se fortalecer para os cuidados dessa criança ou adolescente, além de potencialmente evitar o desejo ou a necessidade de procedimentos cirúrgicos no futuro. Essa conduta pode reduzir os índices de depressão e ansiedade e melhorar o desenvolvimento psicossocial.54 Crianças que vivem em lares com duas mães ou dois pais têm desenvolvimento emocional, cognitivo, social e sexual semelhantes a crianças com mães e pais heterossexuais. Essas crianças apresentam resiliência e podem ter boas condições de saúde física, social e sexual, como as demais, apesar das disparidades econômicas, legais e estigmas aos quais essas famílias poderão ser submetidas. O desenvolvimento psicossocial
54 Vries ALC, McGuire JK, Steensma TD, Wagenaar ECF, Doreleijers TAH, Cohen-Kettenis PT. Young adult psychological outcome after puberty suppression and gender reassignment. Pediatrics. 2014 Oct; 134(4): 696- 704.
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96 da criança depende mais do senso de segurança e conforto promovido pela família do que da orientação sexual ou identidade de gênero de seus responsáveis.55 Apesar da orientação sexual só ser percebida pelas pessoas no início da adolescência, é importante destacar que crianças podem apresentar estereótipos de comportamento que destoam dos padronizados para o seu gênero de acordo com a sociedade em que vive.56 Isso pode estar ou não relacionado com uma futura percepção de orientação sexual diversa, mas a maioria das pessoas LGBTIA+, em especial homens gays, tem memórias de violências sofridas na infância devido a interpretação de seu comportamento em uma sociedade heteronormativa e machista, que reprime meninos que gostem de dança, por exemplo, mas que pode não se impressionar tanto com meninas que gostem de futebol ou artes marciais. Crianças Intersexo brincam e podem se desenvolver como toda criança. Algumas podem ter alterações na estatura por causa de suas características cromossômicas, gonadais e hormonais, enquanto algumas podem não desenvolver a puberdade espontaneamente e necessitar de hormônios sexuais, outras serão inférteis ou com baixa fertilidade. Uma parte das crianças intersexo poderá necessitar de outros hormônios como o corticoide, outras de medicamentos cardíacos ou renais, ou mesmo, de cirurgias especificas. Em geral a inteligência, a coordenação motora, os desenvolvimentos emocionais são semelhantes às demais crianças. Muitas têm excelente desempenho escolar, mas algumas têm problemas escolares limitantes, como dificuldade de concentração e problemas com matemática, por exemplo, e devem ser vistas pela neuropsicologia, fonoaudiologia e psicopedagogia caso a caso.57
55 Patterson CJ, Goldberg AE. Lesbian and gay parents and their children. National Council on Family Relations [homepage na internet]. 2016 Nov; 1(1): 1-4 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.ncfr.org/sites/default/files/2017-01/ncfr_policy_brief_november_final.pdf 56 Katz-Wise SL, Rosario M, Tsappis M. LGBT Youth and Family Acceptance. Pediatr Clin North Am. 2016 Dec; 63(6): 1011-1025. 57 Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI). Informativo sobre bebês intersexo. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde [homepage na internet]; 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/Informativo_sobre_bebes_Intersexos_30_12_2 020.pdf
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Autonomia e direitos de crianças de adolescentes nos serviços de saúde Os direitos de crianças e adolescentes no Brasil são regidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),58 que os concebe como sujeitos de direitos próprios, independentemente dos direitos de seus pais. Neste contexto legal, são consideradas crianças as pessoas de 0 a 12 anos incompletos e, adolescentes, pessoas de 12 a 18 anos incompletos. O ECA estabelece como princípios a proteção integral, a prioridade absoluta e o melhor interesse da criança e do adolescente, de forma que a presença ou anuência dos pais e responsáveis não são condições indispensáveis para o exercício dos direitos das crianças e adolescentes, como o direito à vida, à liberdade, à saúde, à integridade física e moral; por mais que possam ser tidos como desejáveis, considerando-se as responsabilidades legais atribuídas à família. O direito à saúde, tal como estabelecido no ECA, constitui-se como um direito humano fundamental, ou um direito tutelar, o que exclui qualquer outra norma que se mostre prejudicial ao bem juridicamente tutelado à saúde da pessoa humana. Isso garante que crianças e adolescentes possam ter atendimento nos serviços de saúde sem a presença de familiares e responsáveis, e a exigência dessa presença pode ser caracterizada como lesão a esse direito fundamental.59 Fundamentado nessa mesma compreensão e no entendimento de que a revelação de determinados fatos e informações para os responsáveis legais pode gerar consequências danosas para crianças e adolescentes, o Código de Ética Médica não usa critério etário mas, sim, o do desenvolvimento intelectual e determina expressamente o respeito à opinião da criança e do adolescente e a manutenção do sigilo profissional, desde que a pessoa assistida tenha capacidade de avaliar o problema e de se conduzir por seus próprios meios. Os códigos de ética profissionais de profissionais da enfermagem, da psicologia e do serviço social têm posições semelhantes na garantia do sigilo, da privacidade e da intimidade de pessoas usuárias.60
58 Presidência da República (Brasil). Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [legislação na internet]. 1990 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm 59 Ministério da Saúde (Brasil). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Marco legal: saúde, um direito de adolescentes. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2007. 60 Araújo, TW; Calazans, G. Prevenção das DST/aids em adolescentes e jovens: brochuras de referência para os profissionais de saúde. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Centro de Referência e Treinamento DST/Aids; 2007.
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Adolescência e Juventude Em nossa sociedade, a adolescência e a juventude são compreendidas como momentos de transição entre a infância e a vida adulta. Assim, a adolescência e a juventude têm sido compreendidas como momentos de vida de transição entre a dependência e a heteronomia que costumam caracterizar a infância e a completa autonomia que, em tese, caracteriza a situação da pessoa adulta na sociedade. Uma especificidade importante da experiência juvenil, neste contexto, é a de ser uma fase da vida em que se intensifica a busca pela autonomia, por meio de uma atitude de experimentação e pela construção de elementos da identidade – pessoal e coletiva.61 Para o desenvolvimento de políticas públicas e práticas profissionais de cuidados em saúde voltadas a esse grupo populacional, é importante discutirmos as faixas etárias que delimitam a adolescência. Precisamos considerar, no entanto, que diferentes recortes etários têm sido utilizados nesse campo de práticas. A legislação brasileira considera crianças as pessoas de 0 a 11 anos de idade e adolescentes as que têm entre 12 e 18 anos.62 A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, considera a faixa etária entre 10 e 19 anos como período da adolescência e concebe as pessoas na ampla faixa de 10 a 24 anos como pessoas jovens. Para efeitos práticos de análise e de proposição de ações, a OMS recomenda uma divisão da categoria de pessoas jovens em três subgrupos:63 ● Pré-adolescentes: 10-14 anos ● Adolescentes: 15-19 anos ● Jovens: 20-24 anos Critérios cronológicos que são adotados para orientar produção de dados, investigação epidemiológica, elaboração de políticas públicas e delimitação de serviços sociais e de saúde pública, no entanto, não levam em consideração as singularidades pessoais. Dessa forma, é importante destacar que no cuidado em saúde é necessário atentar para as singularidades individuais em termos corporais, psicológicos e sociais. No âmbito deste protocolo, trabalha-se com a proposição de ações voltadas a adolescentes considerando a faixa etária de 10 a 20 anos. Recomenda-se, então, como
61 Sposito MP. Algumas reflexões e muitas indagações sobre as relações entre juventude e escola no Brasil. In: Abramo HW, Branco PP. Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo: Editora Perseu Abramo; 2005: 87-127. 62 Presidência da República (Brasil). Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [legislação na internet]. 1990 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm 63 Organização Mundial de Saúde. Young People's Health: a challenge for society. Relatório do Grupo de Trabalho sobre Jovens e Saúde para Todos no Ano 2000. Genebra: WHO; 1986. 731. (Relatório Técnico)
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estabelecido pela OMS, que seja importante diferenciar as especificidades de pré- adolescentes, adolescentes e jovens.
Já a puberdade se refere às mudanças físicas decorrentes da elevação dos hormônios gonadais e pode se iniciar em qualquer momento entre os 8 e 13 anos para meninos trans / transmasculinos ou meninas cis e entre 9 e 14 anos para meninas trans / transfemininas ou meninos cis. Portanto, os corpos se modificam de maneiras diferentes e em tempos diferentes, o que pode causar insegurança e fazer com que adolescentes passem a se comparar com outras pessoas de sua idade. É comum haver preocupações sobre tamanho de mamas ou de pênis, sobre a presença ou não de pelos e sobre a ereção, ejaculação e menstruação. A masturbação é uma prática comum, e é uma das formas de conhecer o corpo e de ter prazer. O comportamento sexual de adolescentes é motivado pelas expectativas do grupo. Palestras sobre os riscos das doenças ou da gravidez indesejada são pouco efetivas, pois na adolescência há o sentimento de invulnerabilidade, o que se reflete no baixo uso de preservativos e prevenção contraceptiva na primeira relação sexual. Em decorrência de fatores socioeconômicos, atitudes preventivas são mais comuns entre os adolescentes brancos e com maior nível de escolaridade e renda. Abordar as relações sexuais como potenciais fontes de prazer e erotismo e organizar atividades coletivas para conversar sobre situações vividas são táticas mais propícias para empoderar adolescentes sobre situações de risco e suas consequências. Abordagens positivas, que inclusive reafirmem como o desejo por relações sexuais ou a constituição de relacionamentos afetivos ou românticos, não são necessariamente experiências universais, são abordagens inclusivas e importantes. Garantir especialmente que adolescentes se sintam humanos e parte de grupos e coletividades ajuda a garantir que especialmente adolescentes LGBTIA+ sintam-se pessoas integrais e completas. Estratégias pedagógicas participativas, positivas, incluindo discussões de caso, pesquisas e dinâmicas com perguntas anônimas, evitam a exposição da intimidade individual e inibições, permitindo a disseminação de informações e o esclarecimento de dúvidas individuais e coletivas. Essas ações promovem um início de vida sexual mais consciente e protegido. A primeira relação sexual pode ser, para algumas pessoas adolescentes, origem de inseguranças e preocupações. Profissionais de saúde e de outros equipamentos públicos que lidam com essa população não devem emitir conselhos pessoais, julgamentos ou opiniões sobre comportamento sexual, incluindo virgindade e tipos de relacionamentos. Condições de vulnerabilidade, baixa autoestima e isolamento social devem ser identificadas, bem como a orientação de prevenção de ISTs e de gravidez deve ser constantemente estimulada. O
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100 diagnóstico da ocorrência dessas situações deve ser compreendido não como irresponsabilidade, mas de contextos socioculturais e educacionais desinformados. O acesso a orientações impacta o uso de preservativo por adolescentes.64 Na adolescência, os meios de comunicação (internet, jornais, televisão etc.) e as amizades são grandes fontes de informação sobre sexualidade,65 no entanto familiares e escolas devem se envolver nessa temática, oferecendo oportunidades para o diálogo e abrindo possibilidades para o acesso de informações adequadas sobre prevenção a IST e sobre qualquer outro assunto relacionado à sexualidade.66 Conversas abertas e acolhedoras sobre sexualidade estão associadas a maior uso preservativo por adolescentes.67 Diante da dificuldade para fazer essa abordagem, profissionais de saúde podem orientar tanto as pessoas jovens quanto suas famílias, encorajando-as a ter um diálogo franco (Quadro 15).
Quadro 15 – Sugestões para familiares ou responsáveis sobre formas de conversar com adolescentes sobre sexo. Pergunte e ouça o que sabem e quão fidedignas são essas informações. Identifique diferentes oportunidades de conversa, o tema pode surgir em uma conversa dentro do carro ou até mesmo em uma conversa de celular. Conversas frequentes sobre vários temas podem ser mais úteis do que uma única conversa. Relaxe e se disponha a ouvir qualquer coisa. Não se preocupe se ficar desconfortável com algumas perguntas ou temas. Evite reações imediatas. Tenha em mente que adolescentes podem ter opiniões diferentes da sua. Ofereça oportunidades para conversar com profissionais de saúde. Fonte: Adaptação de Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM68 Diante de profissionais da saúde, adolescentes devem ter espaço de escuta em conversa individual, ratificando o direito ao sigilo e à autonomia. No espaço da consulta, a dinâmica familiar deve ser abordada e observadas situações de possíveis vulnerabilidades, especialmente as violências verbais, físicas e sexuais. São fornecidas orientações sobre 64 Moreira AS, Alves JSS, Melo GG, Paixão JTS, Carnaúba MCS. Fatores associados ao não uso de preservativo por adolescentes brasileiros: uma revisão sistemática. Research, Society and Development 2022; 11(5): e54011528450. DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i5.28450 65 Borges ALV, Nichiata LYI, Schor N. Conversando sobre sexo: a rede sociofamiliar como base de promoção da saúde sexual e reprodutiva de adolescentes. Rev Latino-Am Enfermagem 2006 Jun; 14(3) [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/PVvMNd4YhTV94FHtFBGzttL/?lang=pt DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-11692006000300017 66 Janeiro JMSV. Educar sexualmente os adolescentes: uma finalidade da família e da escola? Rev. Gaúcha Enferm [internet]. 2008 nov 13; 29(3): 382 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/rgenf/article/view/6758 67 Paiva V. É difícil se perceber vulnerável. In: Paiva V. Fazendo arte com a camisinha: sexualidades jovens em tempos de aids. São Paulo: Ed. Summus; 2000. p. 106-40. 68 Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM. Sexualidade e Diversidade. Em: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre. Artmed, 2019. 2v
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101 direitos de jovens, além da elucidação de suas dúvidas, estejam elas relacionadas às mudanças corporais, sexualidade ou qualquer outro tema que possa surgir. A média de idade em que acontece a iniciação sexual no Brasil é de 17,3 anos, sendo menor entre os homens cis (16,4 anos), entre pessoas não brancas e entre adolescentes que frequentam escolas públicas69. O diálogo sobre início da vida sexual com adolescentes deve contemplar assuntos como autonomia e bem estar, além das tradicionais orientações sobre prevenção de ISTs e de gravidez indesejada, o que deve contemplar também a divulgação da possibilidade de testes rápidos disponíveis de IST e o encaminhamento para atualização de vacinas (como a contra a hepatite B e o HPV). A adolescência é um momento delicado para pessoas LGBTIA+, que tendem a se sentir inseguras no momento da percepção de sua diversidade, tanto por características típicas dessa fase, de comparação de comportamentos e de corpos, quanto pelas vivências da infância, agravadas naquelas que pertencem à famílias e comunidades conservadoras e preconceituosas, nas quais sejam testemunhas de violências verbais ou físicas contra pessoas LGBTIA+. Assexuais questionam sua “normalidade” ao assistirem colegas desejando outras pessoas e iniciando suas vidas sexuais. Pessoas adolescentes que se identifiquem ou não como lésbicas, gays ou bissexuais podem perceber suas atrações direcionadas a pessoas de mesmo gênero que o seu e, por esse motivo, sentir-se diferentes em relação a outras. Adolescentes intersexo não reconhecem seus corpos nas aulas de ciências e biologia e nem em colegas. Jovens trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem se perceber como tais desde a infância ou somente na adolescência, momento de grande risco para disforia corporal relacionada a gênero, em decorrência das mudanças desencadeadas pela chegada da puberdade. A revelação da orientação sexual diversa para a família e amigos costuma acontecer nesse momento da vida, sendo um dos mais difíceis da adolescência LGBTIA+. Profissionais da saúde que oferecem atendimento adequado, baseado em privacidade, respeito ao sigilo e com postura acolhedora, muitas vezes são as primeiras pessoas em quem a pessoa adolescente confia, podendo atuar como pessoas aliadas, tanto para apoiar a contar para sua família, quanto para orientar essa família diante da nova informação. É importante ressaltar a todas as partes que a pessoa em questão vem lidando com sua percepção e seus sentimentos há muito tempo e que a decisão de se expor foi resultado de um fortalecimento interno lento e que deve ser respeitado.
69 Felisbino-Mendes MS, Araújo FG, Oliveira LVA, Vasconcelos NM, Vieira MLFP, Malta DC. Comportamento sexual e uso de preservativos na população brasileira: análise da Pesquisa Nacional de Saúde, 2019. Rev Bras Epidemiol 2021 Dez; 24(suppl 2) [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/rbepid/2021.v24suppl2/e210018/pt/ DOI: https://doi.org/10.1590/1980- 549720210018.supl.2
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102 Pela suposição errônea de que todas as pessoas adolescentes são cisgênero e heterossexuais, o processo da autopercepção de adolescentes LGBTIA+ assemelha-se a um processo de luto da cisheteronormatividade, com todas as suas etapas. Essa compreensão pode orientar profissionais de saúde no acolhimento daquelas pessoas que passam a se perceber como LGBTIA+ e também na orientação e acolhimento de suas famílias. Manifestações de orientação sexual e identidade de gênero diversas devem ser vistas como uma condição inerente à personalidade de cada pessoa e não devem ser consideradas prejudiciais, opcionais ou anômalas. Portanto, qualquer crítica ou repressão se constitui como uma violência mental ou física, prejudicial ao desenvolvimento e à dignidade pessoal, tal como aponta a lei. (ver Direitos) É importante que se tenha sensibilidade para se entender que diferentes vivências LGBTIA+ são possíveis para adolescentes, e não se busque definir que adolescentes com determinada vivência ou experiência sejam LGBTIA+. Garantir espaço para autodescobertas, auxílio na compreensão de autolimites são fundamentais, especialmente quando pensamos
em experiências LGBTIA+ minoritárias, como a de adolescentes assexuais ou de gênero não- binário, que podem buscar prender-se em ideias pré-concebidas sobre essas determinadas
vivências para que possam ter sua experiência validada. Vivências da adolescência podem impactar a saúde física e mental do indivíduo na sua vida adulta, sendo fundamental mostrar a familiares os resultados da rejeição, como o aumento da incidência de quadros depressivos, ideação e tentativa de suicídio, maior frequência de abuso de substâncias psicoativas e de relações sexuais sem preservativo, resultando em maiores índices de infecção por IST.70 Pessoas adolescentes LGBTIA+ também devem ser protegidas de violência escolar, e precisam ser orientadas que caso a sofram, busquem apoio com pessoas da equipe da educação para enfrentá-las e, em caso destas serem as próprias agressoras, devem ser feitas denúncia para os órgãos competentes, como Conselhos Tutelares, Varas da Infância ou Fóruns locais. Em alguns casos, adolescentes buscam auxílio para compartilharem suas histórias com familiares. Para um suporte adequado, podem ser discutidas estratégias de como abordar o assunto e a identificação de uma rede de apoio e proteção caso exista alguma situação de conflito ou violência. Sites, materiais informativos e disponibilização de contato com organizações não governamentais (ONGs) e grupos formados por parentes LGBTIA+
70 Ryan C. A practitioner's resource guide: Helping families to support their LGBT children [guia na internet]. San Francisco: SAMHS; 2014 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://familyproject.sfsu.edu/sites/default/files/documents/FamilySupportForLGBTChildrenGuidance.pdf
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103 podem ser indicados aos responsáveis com dificuldades em lidar com adolescentes LGBTIA+. O acompanhamento do processo de afirmação de gênero faz parte do acompanhamento integral de adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. A transição social, com mudanças da expressão de gênero que não envolvam uso de hormônios ou cirurgias pode ser estimulada para todas aquelas que a desejam. Já o bloqueio puberal, quando indicado, é idealmente iniciado após a entrada na puberdade, diante do consentimento assinado pela pessoa adolescente e responsáveis, sempre de acordo com o Projeto Terapêutico Singular definido por elas em conjunto com a equipe multiprofissional. No momento, no Brasil, de acordo com a Resolução CFM 2.265/2019, o bloqueio da puberdade só pode ser realizado em caráter experimental e em serviços com projeto de pesquisa vigente. A hormonização pode ser realizada a partir dos 16 anos,71 diante do desejo da pessoa jovem e o apoio de responsáveis, com o objetivo de estimular o desenvolvimento das características físicas esperadas por cada pessoa. (ver Hormonização de adolescentes) A mesma resolução estabelece que cirurgias de afirmação de gênero podem ser realizadas a partir de 18 anos, no entanto a rede pública do município de São Paulo segue a idade mínima de 21 anos estabelecida pela Portaria 2803/2013 do MS - ainda não atualizada. (ver cirurgias) Ressalta-se que adolescentes que têm negado o direito a um acompanhamento digno tendem a se automedicar e procurar modificações corporais por conta própria, com alto risco de ocasionar danos para a sua saúde. Sobre a aplicabilidade, no SUS, dos novos limites etários estabelecidos pelo CFM, cabe apontar uma diferença entre procedimentos cirúrgicos e clínicos. As cirurgias de transformação corporal realizadas pelo SUS ocorrem sob a regulação das Portarias n. 457/2008 (substituída) e n. 2.803/2013 (vigente) do Ministério da Saúde, que inauguraram a oferta e o faturamento desses procedimentos no sistema público. As cirurgias são ofertadas e faturadas somente na rede credenciada para o "Processo Transexualizador" e de acordo com os critérios do documento. Por isso, os procedimentos cirúrgicos no SUS continuam sendo oferecidos somente a partir dos 21 anos de idade e com exigência de dois anos de acompanhamento por equipe multidisciplinar, apesar de o CFM ter baixado a idade para 18 anos. Seria necessária uma atualização dos procedimentos da tabela SUS propostos pela Portaria para adequá-la ao novo critério etário do CFM. No que se refere a procedimentos clínicos (cuidados gerais, hormonização) a Portaria tem efeito diferente. A Portaria nunca significou que pessoas trans só poderiam ser
71Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.265, de 20 de setembro de 2019. Cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Brasília: Diário Oficial da União; 2020 Janeiro(9): 1(6).
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104 consultadas na rede credenciada; apenas incluiu um mecanismo de incentivo financeiro para os serviços pioneiros ofertarem as consultas. Como sempre aconteceu, uma médica que trabalhe em uma unidade de saúde não credenciada pode oferecer cuidados gerais e hormonização a pessoas trans, se for capaz. O que regulará o que acontecerá no ato da consulta médica são as normas do CFM. E a consulta será faturada normalmente pelos mecanismos orçamentários próprios da unidade. Da mesma forma, uma consulta médica ocorrendo no SUS hoje com uma adolescente trans de 16 ou 17 anos será regulada pelas novas normas do CFM, ou seja, a hormonização poderá ser prescrita. Isso valerá inclusive para unidades credenciadas pela Portaria – nestas, porém, a consulta só será faturada pelas vias regulares da unidade, já que o incentivo financeiro federal só será aplicado para pessoas com 18 anos ou mais, enquanto vigorar a atual Portaria. Todas as possibilidades de modificações corporais precisam ser explicadas de forma compreensível para adolescentes e familiares. Devem ser realizadas orientações sobre possíveis efeitos colaterais, irreversibilidade de algumas mudanças quando realizadas hormonização e cirurgias, a frequência de uso da medicação e como adquiri-las e a necessidade de exames periódicos. Sempre deve ser discutida a questão da fertilidade e, quando viável oferecida a sua preservação. Compreendendo-se que os agravos em saúde física e mental de adolescentes LGBTIA+ são decorrentes de violências sofridas no decorrer de suas vidas, é possível mudar o rumo de suas histórias. O acolhimento respeitoso à diversidade sexual, de gênero e de corpos, e o fortalecimento da rede de apoio constituída por família, amizades e escola, faz com que adolescentes LGBTIA+ tenham todas as condições de serem saudáveis do ponto de vista físico e mental e terem um futuro como qualquer adolescente de sua geração.
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105 Quadro 16 – Exemplos de situações e dúvidas comuns na adolescência que podem ser disparadores para abordagem em grupos “A primeira vez" "Nunca vai acontecer comigo" "Quero encontrar alguém pelo aplicativo " “Enviei um vídeo íntimo meu pelo celular, e agora?” "Estava com muito tesão e não podia perder a oportunidade" "O que vão pensar se eu pedir uma camisinha na farmácia?" "O que minha família vai pensar se acharem a pílula anticoncepcional no meu armário? "Sexo oral transmite HIV?" "Ejacular fora da vagina pode engravidar?" "O que muda na minha vida se eu engravidar?" "O que fazer se eu transar sem camisinha?" "Se eu não transar, ela não vai gostar mais de mim" "Não sangrei durante a relação, sou virgem?" "Beijei outra pessoa do mesmo gênero que eu. Sou homossexual?" "Masturbação causa algum problema?" Fonte: Adaptação de Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM72 Recomenda-se, assim, que o atendimento de adolescentes na rede de saúde deve pautar-se pelos princípios do respeito à autonomia e à capacidade de discernimento dos adolescentes sobre o que é melhor para si; pela garantia do direito à privacidade e ao sigilo; pela garantia do direito da pessoa adolescente obter as informações sobre sua saúde; pela proteção dessa pessoa contra qualquer ato violento; e pela garantia de disponibilidade de todos os recursos necessários para que adolescentes possam cuidar de si e de sua saúde.73 (ver Autonomia e direitos de crianças e adolescentes)
72 Lopes Junior A, Amorim APA, Ferron MM. Sexualidade e Diversidade. Em: Gusso G, Lopes JMC, Dias LC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2a ed. Porto Alegre. Artmed, 2019. 2v 73 Ministério da Saúde (Brasil). Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens na promoção, proteção e recuperação da saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
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Vida adulta A vida adulta (a partir dos 20 anos) compreende o momento de maior autonomia das pessoas do ponto de vista físico, financeiro e social. Não é um período uniforme e se difere bastante entre as populações cisgênero e transgênero. Os preconceitos que se fazem presentes no mercado de trabalho dificultam o acesso da população LGBTIA+ (especialmente pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero) a trabalhos formalizados. Frequentemente as famílias de origem desresponsabilizam-se do atendimento de necessidades nessa faixa etária, o que coloca pessoas LGBTIA+ em impasses quanto à manutenção de sua sobrevivência e quanto à sua rede social. O impacto dessa exclusão social reverbera em vulnerabilidades sociais, emocionais e físicas. Neste momento de declarada responsabilidade sobre si, profissionais de saúde devem abordar o autocuidado, garantir a oferta de cuidados à saúde integral e prestarem atenção a sinais que signifiquem sofrimentos e/ou adoecimentos relacionados à saúde mental. A ausência de dados censitários sobre pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero induz que a própria comunidade se dedique a realizar levantamentos sobre a mortalidade de sua população, muitas vezes sem condições de garantir adequada metodologia de pesquisa. O apontamento da percepção de que as mortes violentas de travestis profissionais do sexo de um determinado grupo de convívio aconteciam em média aos 35 anos de idade é um dado relevante, que no entanto foi amplamente divulgado sem cuidados científicos como a expectativa de vida de pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero.74 Portanto, é importante não disseminar essa informação que, além de incorreta, estigmatiza, amedronta e induz que pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero tomem decisões opostas à preservação de sua vida durante a idade adulta. É nesta fase da vida quem que a maioria das pessoas realiza seus planejamentos reprodutivos. Portanto, garantir direitos relacionados à saúde sexual e reprodutiva é uma importante tarefa de serviços de saúde. Rastreamentos de cânceres, de IST e de doenças crônicas precisam ser ofertados com os mesmos critérios que para toda a população, portanto cabe atenção de profissionais de saúde para que não haja aumento da vulnerabilidade de pessoas LGBTIA+ devido à baixa oferta desses rastreamentos. 74 Reynaldo D [homepage na internet]. É impossível estimar a expectativa de vida da população trans, professor explica. abril 30, 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://naomatouhoje.wordpress.com/2019/04/30/expectativa/
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107 O acompanhamento de problemas crônicos de saúde tende a ser relativizado por pessoas com maiores vulnerabilidades, que podem colocar maior foco nas questões que garantem sua sobrevivência imediata. Portanto, a busca ativa de pessoas LGBTIA+ que possuam vulnerabilidades para a oferta de seguimento, caso possuam doenças crônicas ou necessidades específicas de saúde, pode ser útil.
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Envelhecimento Ao longo das últimas décadas o envelhecimento da população mundial mostrou-se como um fenômeno de grande expressão e com perspectiva crescente até o final do século XXI. A população não só envelhece como vive mais, além do aumento rápido de pessoas com idade a partir de 60 anos também há um aumento da expectativa de vida entre os idosos, fazendo com que tenhamos idosos mais longevos, incluindo maior número de centenários. Além disso, a redução da taxa de natalidade e a evolução no formato das famílias gera uma questão importante que é a redução da rede de apoio familiar que, até então, era a base principal da gestão do cuidado de pessoas idosas com necessidade de auxílio para atividades de vida diária. Esses fatores, aliados a considerável perda econômica decorrente da política previdenciária, gera a necessidade de políticas públicas que trabalhem a prevenção de agravos ou retardo da piora dos agravos instalados, manutenção da autonomia e independência e medidas urbanas de todos os tipos que possibilitem um ambiente amigável, garantindo a melhor qualidade de vida possível para as pessoas idosas nas diversas etapas de envelhecimento.75 O envelhecimento da cidade de São Paulo também tem ocorrido de forma acelerada em todas as regiões do município e as especificidades desta expansão exigem abordagens e ações qualificadas para que o cuidado em saúde seja efetivo nos diferentes pontos da rede de atenção.76 A Secretaria Municipal de Saúde (SMS/SP) vem formulando a Rede de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa (RASPI) como forma de organizar o atendimento a essa população, com o objetivo de promover ações que trabalhem pela educação e promoção da saúde, prevenindo agravos e melhorando a qualidade de vida dessas pessoas. A Portaria SMS no 202 de 2019 regulamentou a Política Municipal de Atenção à Saúde da Pessoa Idosa no Município de São Paulo, em consonância com a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI). A RASPI é parte da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e integra uma rede intersetorial em que participam os setores responsáveis pelas políticas públicas incluindo representantes da sociedade civil. A intersetorialidade compõe a macro estrutura sendo de fundamental importância para que a atenção à população idosa se concretize conforme o preconizado pela Política Nacional do Idoso, principal marco legal das políticas públicas voltadas à população idosa. 75 Alves MES, Araújo LF. Interseccionalidade, Raça e Sexualidade: Compreensões Para a Velhice de Negros LGBTI+. Revista de Psicologia da IMED 2020 Jul-Dez; 12(2): 161-178., Julho-Dezembro, 2020. 76 Amanajás R, Klug L. Direito à cidade, cidades para todos e estrutura sociocultural urbana, in: Costa MA, Magalhães MTQ, Favarão CB. A nova agenda urbana e o Brasil : insumos para sua construção e desafios à sua implementação. Brasília: Ipea; 2018.
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109 A PNSPI tem como meta a atenção integral à saúde e considera a funcionalidade como um importante indicador de saúde desta população, dando ênfase à promoção da independência e da autonomia. As abordagens adequadas a cada um dos estratos da população idosa, em cada ponto de atenção da RAS, devem adotar uma compreensão multidimensional para avaliar e identificar as necessidades e especificidades de cada pessoa idosa, do ponto de vista clínico, psicossocial e funcional, atribuindo a este processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida em que as pessoas envelhecem.77 Para avaliar a capacidade funcional como estratégia para identificar as necessidades de saúde da pessoa idosa o município utiliza o instrumento denominado Avaliação Multidimensional da Pessoa Idosa na Atenção Básica (AMPI-AB) como organizador dos fluxos da atenção da RASPI e definindo as diretrizes da Linha de Cuidado da Saúde da Pessoa Idosa no município. Considerando que concomitante às políticas públicas de saúde para a pessoa idosa está vigente a PNSILGBT, tendo como marca o reconhecimento dos efeitos da discriminação e da exclusão no processo de saúde-doença da população LGBTIA+, coloca-se o imperativo de promover mudanças no panorama heteronormativo sobre o envelhecimento e a velhice com vistas à redução das desigualdades relacionadas à saúde destes grupos sociais. Mudanças que pretendem estabelecer no âmbito das preocupações das políticas públicas de saúde, outros horizontes normativos quanto a gênero e sexualidade, repensando como as instituições voltadas ao cuidado de pessoas idosas têm se comprometido com aspectos como identidade de gênero, erotismo, desejo e práticas sexuais das pessoas idosas LGBTIA+.78,79 Na proteção às pessoas idosas, os componentes da RAPSI (órgãos da Saúde, previdência, assistência social, educação, trabalho, habitação e urbanismo, justiça, cultura, direitos humanos, esporte e lazer) precisam estar bem articulados e cooperados para garantir a efetividade em suas ações. É fundamental nesta rede a presença de organizações não governamentais que representam a diversidade das populações LGBTIA+ para o fomento de uma maior integração e transferência de conhecimentos.80,81 Assim sendo, é preciso 77 Organização Mundial da Saúde. Resumo do Relatório Mundial de Envelhecimento e Saúde. Genebra: WHO; 2015. WHO/FWC/ALC/15.01 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/186468/WHO_FWC_ALC_15.01_por.pdf;jsessionid=A8DFF823F 81FD83FBB6AACFA16D89913?sequence=6 78 Araújo LF, Carlos KPT. Sexualidade na velhice: um estudo sobre o envelhecimento LGBT. Psicología, Conocimiento y Sociedad 2018 may-oct; 8(1): 218-237. 79 Crenitte MRF, Miguel DF, Jacob Filho W. Abordagem das particularidades da velhice de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Geriatr Gerontol Aging 2019; 13(1): 50-6. 80 Croce AGD. A Organização Não Governamental EternamenteSOU como agente na promoção de um bom envelhecimento aos idosos LGBT no Brasil: primícias, desafios e esperanças. [apresentação na Reunião de Antropologia do Mercosul: Antropologias do Sul - XIIIRAM. 2019 jul 22-25; Porto Alegre, Brasil] 81 Duarte AS, Cymbalista R. Não só moradia: A Casa 1, Suas Estratégias Espaciais, e o Fortalecimento da Vizinhança em Diálogo com a Militância LGBT. [apresentação no Encontro Nacional da Associação Nacional de
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110 reconhecer que a qualidade de vida da pessoa idosa depende não apenas das suas próprias capacidades básicas (aquelas adquiridas ao longo da vida), mas também da qualidade de serviços oferecidos pelas políticas sociais de forma equânime, ou seja, as práticas intersetoriais devem favorecer ações em prol da proteção social e do enfrentamento das desigualdades sociais, sobretudo da população idosa LGBTIA+. Torna-se necessário trazer as especificidades das “Velhices LGBTIA+” considerando suas experiências de preconceitos, discriminação e violências ao longo da vida, junto à articulação existente entre os estigmas que recaem sobre a velhice daqueles estigmas relacionados à homoafetividade, biafetividade, transgeneridade, intersexualidade, assexualidade, e outras identidades relacionadas à orientação sexual e gênero. Estas propostas redirecionam e dão novos sentidos às políticas públicas, fortalecendo programas de educação temática, orientações e garantia de direitos civis, em uma abordagem direta às dificuldades enfrentadas no envelhecimento da população LGBTIA+.82 Dentre as pautas temáticas dessa construção programática no campo da gerontologia está o amplo treinamento e educação de profissionais das áreas de saúde e de assistência social, como meio de identificar e compreender as demandas na diversidade de aspectos apresentados no envelhecimento da população LGBTIA+. Esses aprendizados influenciam nos modos de interação como o uso, por profissionais, de um vocabulário próprio no respeito ao nome social ou até pronomes de gênero neutros, confidencialidade na comunicação, no respeito aos seus modos de se relacionar e de suas histórias de vida singulares. Ou seja, um apoio que vá de encontro às necessidades de saúde de cada pessoa idosa LGBTIA+ favorecendo o autocuidado e programas de saúde mais receptivos, em ambientes de maior respeito e mais acolhedores.83 O isolamento da população LGBTIA+ advém de seu aspecto transgressivo em relação às normas culturais, vistas como desviantes em sua expressão de gênero e sexualidade, que vivencia dificuldades de inserção social por conta do preconceito estrutural, da discriminação e violência. A velhice de pessoas LGBTIA+, ao buscar garantir sua expressão identitária e espaços de liberdade e autonomia, diferencia-se dos modos tradicionais do envelhecer pelo histórico sócio relacional e psicossocial, comumente marcado pelo risco de rompimento de
Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - XVIII ENANPUR, 2019 mai 21-27; Natal, Brasil] 82 Debert G, Brigeiro M. Fronteiras de gênero e a sexualidade na velhice. Rev. bras. Ci. Soc. [periódicos na internet] 2012 Out; 27(80) [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/4ZCPxm3dySBsmm79BJFmmfR/abstract/?lang=pt DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69092012000300003 83 Henning CE. Gerontologia lgbt: velhice, gênero, sexualidade e a constituição dos “idosos LGBT”. Horizontes Antropológicos [periódicos na internet] 2017 jan/abr; 23(47): 283-323 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/Mw58qyvVjfSQy7hbmmZqLbm/?lang=pt&format=pd
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111 vínculos familiares originários.84 Definir suas posições diante da vida pode promover angústias e violências, havendo também os efeitos negativos da estigmatização sobreposta da velhice junto à homoafetividade, biafetividade, transgeneridade, intersexualidade, assexualidade, e outras identidades relacionadas à orientação sexual e gênero, reproduzindo estereótipos e dinâmicas de segregação e de invisibilidade da pessoa idosa LGBTIA+.85 Quando o círculo de relacionamentos é restrito, menor é a presença de suporte social e mais vulnerável se torna a pessoa idosa. Como forma de assegurar a extensão das redes de apoio e de cuidado na velhice, frequentemente observa-se a constituição de “famílias de escolha” ou outras configurações familiares nas relações sociais LGBTIA+, geralmente com pessoas de fora das relações consanguíneas como amizades, companheirismos, vizinhança ou liderança comunitária. A preocupação com a falta de pessoas cuidadoras, contatos para situações emergenciais ou compartilhamento da experiência do envelhecimento pode acarretar impactos negativos na condição de vida. Neste contexto de dificuldade de compatibilizar identidade sexual e vida familiar, a necessidade de moradia é substancial. Diante do impasse de ter de esconder a própria identidade para permanecer no núcleo familiar, ou evitar conflitos no ambiente doméstico, soluções bem particulares como ir morar em repúblicas e pensões parecem ser uma opção escolhida ao longo da vida, sendo essa uma situação de vulnerabilidade que vem ganhando visibilidade através de reivindicações de direito à moradia em diversos segmentos LGBTIA+ organizados, que cada vez mais vem ganhando espaço na pauta das administrações públicas. Na Velhice LGBTIA+, a opção de acessar uma Instituição de Longa Permanência para pessoas Idosas (ILPI) ainda é acompanhada pelo medo de ter que esconder a própria sexualidade, sendo relevante instituir processos educativos que promovam ambientes inclusivos, conscientizando os colaboradores e gerando maior sensibilidade para que se adotem atitudes menos discriminatórias nesses serviços.86 Compreender uma pessoa idosa LGBTIA+ implica em interseccionar diferenças entre diversas orientações sexuais e identidades de gênero, entretanto, as convicções habituais relacionadas ao etarismo de uma “velhice assexual”, que reforça a ideia de que pessoas idosas não exercem ativamente sua sexualidade, podem prejudicar ainda mais o reconhecimento destas especificidades nas expressões de gênero.
84 Rebellato C, Gomes MCA, Cretitte MRF. Introdução às velhices LGBTI+. Rio de Janeiro: SBGG- RJ/EternamenteSOU/ILC-BR; 2021.
85 Santos JVO, Araújo LF, Negreiros F. Atitudes e estereótipos em relação à velhice LGBT. Interdisciplinar 2018 jan-jun; 29: 57-69. 86 Silva Júnior JR, França LD, Rosa A, Neves VR, Siqueira LE. Assistência à saúde de residentes LGBTI+ em Instituições de Longa Permanência para Idosos, Rev Bras Enferm 2021; 74(Suppl 2). DOI: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0403
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112 Pesquisa recente da organização “VOTELGBT”, realizada durante a pandemia de COVID-19, revelou outro dado preocupante para o envelhecimento LGBTIA+, a pobreza. Verificou-se que mais da metade das pessoas LGBTIA+ tiveram diminuição ou perderam toda a renda, sendo que entre aquelas desempregadas praticamente um terço permaneceu mais de um ano fora do mercado de trabalho. Mesmo pessoas com alguma renda foram afetadas, pois 41,55% afirmaram que se perdessem a fonte de renda não conseguiriam sobreviver por mais de um mês. Esse impacto se expressa também em insegurança alimentar, que é a falta de acesso regular à alimentação de qualidade, com o medo constante de serem acometidas pela fome.87 Enfrentar os estigmas, o isolamento social e as frequentes violências como a homofobia (especialmente quando associada ao racismo), circunscrevem as particularidades de saúde de idosos LGBTIA+, configurando uma predisposição aos problemas de saúde mental e doenças crônicas, aumentando sua vulnerabilidade social. As barreiras de acesso ao serviço de saúde, que passam pela falta de qualificação e o preconceito dos profissionais, torna-se mais crítica se a pessoa idosa apresenta algum nível de comprometimento de sua autonomia e independência (deficiência, fragilidade e incapacidade), os quais exigirão práticas de cuidado mais sensíveis para a produção de vínculos de confiança. O acesso a RASPI está disponibilizado a todas as pessoas idosas do município através das ações desenvolvidas em todas as Unidades Básicas de Saúde e, a partir do projeto terapêutico desenvolvido pela equipe da UBS, outros fluxos e ações serão desenvolvidas de acordo com as necessidades de cada um, possibilitando uma atenção integral e humanizada com o objetivo de possibilitar melhor qualidade de vida a essa população.
87 #VOTELGBT [homepage na internet], BOX1824. Diagnóstico LGBT+ na pandemia - Desafios da comunidade LGBT+ no contexto de isolamento social em enfrentamento à pandemia de Coronavírus, 2021 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://votelgbt.org/pesquisas
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Morte
A morte é compreendida como última etapa de desenvolvimento humano, porém podem ocorrer precocemente, seja por comorbidades de saúde, por violências de gênero, por negligência, por suicídio, entre outras. Na comunidade LGBTIA+ é comum o sentimento de medo da morte por violência. O momento que antecede a morte, quando em alguns casos é possível perceber que o corpo está falecendo é muito importante o respeito à identidade de gênero. Quando a morte ocorre, é importante que o comportamento das equipes de saúde seja ético tanto no respeito à identidade de gênero, ao nome e pronome que a pessoa que faleceu utilizava quanto ao seu corpo. Após a morte, as equipes hospitalares encarregadas dos primeiros preparos e transportes do corpo devem garantir a privacidade e o respeito à intimidade. Não expondo genitais, fotografando, compartilhando fotos, ou fazendo comentários invasivos e indevidos. Destaca-se a importância, especialmente, ao sigilo e à privacidade de pessoas LGBTIA+ quando se trata da morte. Falar em garantir o sigilo e a privacidade compreende
tratar com dignidade e respeito às alterações corporais vivenciadas, especialmente ao tratar- se de pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero, sem espetacularizar
seus corpos e evitar qualquer exposição que tenha origem na curiosidade de outras pessoas. É importante que se tenha em mente evitar discutir supostas experiências sexuais dessas pessoas sempre que desnecessário, ou quando não for pertinente à discussão vigente. Essa atenção e cuidado deve ser estendido quando se fala de discutir experiências sexuais passadas ou mesmo transformações corporais com pessoas do convívio da pessoa LGBTIA+; muitas pessoas buscando evitar preconceitos mantinham essas questões distantes das conversas com pessoas mais próximas de sua vivência, sendo importante ter em mente essas questões. Por último, é importante destacar que pessoas trans e travestis possuem direito ao uso do nome social, que deve ser respeitado. O nome de registro dessas pessoas somente deve ser utilizado quando estritamente necessário. É importante que se reconheça na sociedade brasileira que a vivências de pessoas LGBTIA+ as faz com frequência constituir relações informais, muitas vezes constituindo relações familiares que existem fora do padrão social-jurídico. Assim, criam-se verdadeiras famílias que são socialmente reconhecidas e mantém laços de fraternidade, solidariedade e, em alguns casos, possuindo honoríficos familiares com a identificação de mães, pais, irmãs, dentre outros.
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114 Infelizmente muitas relações e parcerias afetivas, sexuais e românticas, justamente por seu caráter informal não são reconhecidas socialmente. É importante que haja sensibilidade, quando não existe a formalização dessas relações, e que seja assegurado e garantido o respeito a elas, mesmo que informais em todos os momentos, mesmo na morte. O respeito às pessoas mortas, o direito de velar, o respeito e o reconhecimento do luto são partes fundamentais do respeito e garantias de vida social, pública e coletiva de pessoas LGBTIA+. Ao longo da vida, pessoas LGBTIA+, sua família e sua rede de contatos podem experimentar sofrimentos que se assemelham àqueles vivenciados na morte, que podem ser compreendidos como mortes simbólicas. (ver Saúde Mental)
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Grupos populacionais A cidade de São Paulo, assim como outros contextos urbanos, é formada por grande diversidade populacional. Além de se olhar para a vulnerabilidade de diferentes grupos populacionais, é necessário compreender que as suas particularidades também apresentam ou abrem espaço para potências, as quais podem ser impulsionadas por olhares específicos dentro do contexto de cuidado à saúde. A vivência de pessoas LGBTIA+ é profundamente impactada pelo contexto social, cultural e comunitário, portanto os textos a seguir abordarão as especificidades relacionadas à saúde de alguns grupos populacionais em intersecção com a comunidade LGBTIA+.
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Pessoas negras Em 1948, a OMS (Organização Mundial de Saúde) ampliou o conceito de saúde, a qual foi considerada como um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doenças. Esse conceito foi incorporado na constituição brasileira de 1988 que criou o SUS (Sistema Único de Saúde) e definiu suas diretrizes colocando a saúde como um direito de todos e dever do Estado, assim como a garantia de acesso universal, igualitário e equânime para todos as pessoas cidadãs.88 No entanto, para que esses objetivos sejam alcançados há necessidade de admitir e lutar contra as desigualdades presentes no nosso país e entre as violências que vivenciamos diariamente o racismo é uma das mais intensas. Grande parte das causas de doenças e desigualdades em saúde derivam, principalmente, de fatores como: condições em que a pessoa nasce; trajetórias familiares e individuais; desigualdades de raça, etnia, sexo e idade; local e condições de vida e moradia; condições de trabalho, emprego e renda; acesso à informação e aos bens e serviços potencialmente disponíveis. As questões socioeconômicas, raciais e de gênero estão associadas às iniquidades em saúde.89 Embora nas últimas décadas, as taxas de mortalidade na população em geral tenham diminuído e aumentado a expectativa de vida, a população negra ainda apresenta altas taxas de morbimortalidade em todas as faixas etárias, quando comparadas com a população geral. Cabe ressaltar que a utilização do conceito raça para a análise das desigualdades verificadas na saúde de pessoas e grupos não afasta outros fatores também importantes na produção de diferenciais e injustiças neste campo. Entre eles, é preciso destacar os fatores socioeconômicos, de gênero, idade, fatores ambientais, entre outros, que agem concomitantemente com a raça e vão determinar a ampliação ou redução dos diferenciais apresentados. No entanto, vale também assinalar que em vários estudos, de diversas áreas do conhecimento, o controle das variáveis demonstrou a persistência da raça – ou do racismo – como fator importante na produção de desigualdades. As manifestações do racismo nas instituições são verificadas por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórios naturalizados no cotidiano de trabalho resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer situação, o racismo institucional restringe o acesso das pessoas, de grupos raciais ou étnicos discriminados aos benefícios gerados pelo Estado e suas instituições/organizações.
88 Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. DF: Senado Federal; 1988. 89 Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas. Racismo como Determinante Social de Saúde. Brasília: SEPPIR; 2011.
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117 Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) baseado em dados oficiais de 2018 destacou essas desigualdades em saúde, apontando que alguns dos problemas de saúde evitáveis são mais frequentes na população negra do que entre pessoas brancas e do que na média nacional. São essas condições: mortalidade de recém-nascidos antes dos seis dias de vida, infecções sexualmente transmissíveis, mortes maternas, incluindo óbitos por abortos sépticos, hanseníase e tuberculose.90 Em 2016, 53,4% dos casos notificados de infecção pelo HIV ocorreram em pessoas negras e 45%, em brancas. Mais pessoas negras foram afetadas com casos de aids (56,3) do que pessoas brancas (43%) e os óbitos pela doença também ocorreram mais em pessoas negras (58,7%) do que em brancas (40,9%). No mesmo ano, 38,5% das notificações de sífilis adquirida ocorreram entre pessoas brancas e 42,4% em negras e, entre as mulheres gestantes diagnosticadas com sífilis, 59,8% eram negras e 30,6% brancas. Como resultado, mais que o dobro das mães de crianças com sífilis congênita eram negras (65,1%), com a minoria branca (25,0%).91 Em 2014, a hanseníase teve mais de dois terços de seus casos notificados na população negra e 57,5% das pessoas que apresentaram tuberculose eram negras. 80% da população que só acessava o serviço público como recurso de saúde era negra e, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (2015), 13,6% das pessoas que já se sentiram discriminadas nos serviços por profissionais de saúde apontaram o viés racial da discriminação.92 Além das doenças evitáveis, a saúde mental é um outro fator importante a ser avaliado, pois geralmente é nesse campo que o racismo interfere mais radicalmente, especialmente entre os jovens. No Brasil, entre todos os adolescentes e jovens, o número de suicídios é bastante elevado. O Ministério da Saúde divulgou um estudo que avaliou dados sobre suicídio entre 2012 a 2016. Ocorreram em média no período 11 mil suicídios na população geral e 3.043 suicídios entre adolescentes (10 a 19 anos) e jovens (20 a 29 anos), colocando o suicídio como a quarta causa de morte nesses grupos etários. Para os adolescentes e jovens negros, a primeira causa de morte são os homicídios, seguida dos acidentes (incluindo acidentes de trânsito), neoplasias malignas e o suicídio.93 O suicídio é
90 Nações Unidas no Brasil [homepage na internet]. Negros têm maior incidência de problemas de saúde
evitáveis no Brasil, alerta ONU. 2018 jan 31 [acesso em 13 jun 2022]. Disponível em: https://brasil.un.org/pt- br/79061-negros-tem-maior-incidencia-de-problemas-de-saude-evitaveis-no-brasil-alerta-onu
91 Secretaria de Vigilância em Saúde / Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico de HIV/Aids - 2016. Brasília:
Ministério da Saúde [internet]; 2016 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt- br/pub/2016/boletim-epidemiologico-de-aids-2016
92 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saúde - 2015. Brasília: IBGE; 2015. 93 Ministério da Saúde (Brasil). Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros entre 2012 e 2016. Brasília: Ministério da Saúde [internet]; 2018 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf
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118 influenciado por diversos fatores: depressão é um dos principais determinantes para a tentativa de suicídio e para a ação efetivas, situações que envolvem violência física, homofobia, consumo abusivo de álcool e uso de drogas, sentimentos de não pertencimento, exclusão e não aceitação de si mesmo por parte da própria pessoa adolescente/jovem, sua família e/ou amizades, indiferença/omissão de familiares sobre suas ações, violência familiar, cyberbullying e bullying. No caso de pessoas jovens negras, a vulnerabilidade aumenta devido principalmente ao preconceito e à discriminação racial e ao racismo institucional. Muitas vezes as queixas raciais podem ser subestimadas ou individualizadas, tratadas como algo pontual, de pouca importância e ainda com culpabilização de quem sofre o preconceito. Este relatório informa que em 2016, pessoas adolescentes negras apresentaram um risco 67% maior de suicídio do que brancas, e as jovens negras apresentaram um risco até 34% maior de suicídio. Ao avaliarmos a questão da violência, os dados referentes à população negra ficam mais evidentes. Segundo o Atlas da Violência de 2021, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi de 162% maior que entre as não negras. Pessoas negras são a maioria das vítimas independente de orientação sexual e identidade de gênero, o que se verifica também nos indicadores de violências letais referentes à população geral.94 Chama atenção que a desigualdade de vulnerabilidade à violência entre pessoas negras e brancas seja maior em função de identidade de gênero do que de orientação sexual, sinalizando para o fato de que políticas públicas de focalização refinada das intersecções entre gênero e raça são fundamentais para o enfrentamento às violências que atingem ambos os grupos, mas que pessoas trans negras possuem necessidades que demandam ainda mais focalização. Um dado importante na caracterização demográfica da população LGBTIA+ é a raça/cor declarada. Dados epidemiológicos mostram que pessoas negras (pretas e pardas) são 40% das vítimas de violência homofóbica registrada, porém estudos amplos sobre a violência no Brasil apontam a população negra como a mais vitimizada pela violência. Um dossiê elaborado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e transexuais) em 2021 demonstrou que 81% das vítimas de violência letal eram travestis/mulheres trans negras - pretas e pardas (de acordo com o Estatuto da Igualdade Racial), ratificando ainda mais os fatores da desigualdade racial nos dados de assassinatos contra pessoas trans. De acordo com o mesmo relatório, uma pessoa trans apresenta muito mais chances de ser assassinada do que uma pessoa LGB cisgênero. Porém, essas mortes acontecem com maior intensidade entre travestis e mulheres trans, principalmente contra negras, assim como são as negras as
94 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S (coord.). Atlas da violência 2021. São Paulo: IPEA [internet]; 2021 [acesso em 11 abr 20023]. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141- atlasdaviolencia2021completo.pdf
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119 que têm a menor escolaridade, menor acesso ao mercado formal de trabalho e a políticas públicas. Travestis e transexuais negras são maioria na prostituição de rua. Proporcionalmente, são essas as que têm os maiores índices de violência e assassinatos. Analisando os índices de assassinatos entre 2017 e 2022, a média de pessoas trans negras assassinadas é de 79,8%, enquanto para pessoas brancas, esse índice é de 20%.95 Sendo assim, para que o atendimento à população LGBTIA+ negra seja realmente equânime e igualitário, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988 é necessário que a equipe de saúde esteja bem orientada quanto importância em avaliar o usuário em sua integralidade levando em consideração determinantes sociais de saúde e as interseccionalidades que cada indivíduo pode apresentar e no caso das pessoas negras, sempre levar em consideração que o racismo é um importante fator adoecedor o qual deve ser combatido por meio de ações individuais e também no âmbito institucional. O Estatuto da Igualdade Racial,96 instituído pela Lei no 12.288/2010, em seu 7o artigo, define que o conjunto de ações de saúde voltadas à população negra constitui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) – Portaria GM/MS no. 992/2009. A PNSIPN é uma resposta do Ministério da Saúde (MS) às desigualdades em saúde que acometem a população negra e reconhece que as condições de vida resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos. O marco da Política é o reconhecimento do racismo como determinante social para o processo saúde doença da população negra brasileira. No ano de 2009, a partir da instituição da PNSIPN foi pactuado junto à Comissão Intergestora Tripartite (CIT) a articulação desta Política com as demais políticas de saúde, nas questões pertinentes às condições, características e especificidades da população negra. Portanto, a PNSPN dialoga com um conjunto de demais políticas voltadas à promoção da equidade no SUS, dentre elas a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT). Ambas têm por objetivo promover a saúde integral dessas populações eliminando a discriminação e o preconceito nas instituições e serviços do SUS.
95 Benevides BG. Dossiê – Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais em 2022. ANTRA [internet]. Brasília: ANTRA; 2023. 109p [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf 96 Câmara dos Deputados (Brasil). Estatuto da Igualdade Racial (2010): Lei no12.288, de 20 de julho de 2010, e legislação correlata - 5a ed [internet]. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara; 2016 [acesso em 11 abr 2023]. (Série legislação; n. 249). Disponível em: https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/17479/estatuto_igualdade_racial_5ed.pdf?seq uence=31&isAllowed=y
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120 Em dezembro de 2016, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo instituiu a Política Municipal de Saúde Integral da População Negra por meio da Portaria 2.283/2016- SMS.G. Entre suas diretrizes, destacamos as de números 16 e 17:
“16. Incorporar em seus programas ações que atendam as especificidades de gênero e raça/cor como prática da equidade em atenção à saúde da
população negra;
17. Garantir a inclusão das especificidades da população negra em todas as Linhas de Cuidado elaboradas pela Secretaria Municipal de Saúde como: Saúde da Criança\Adolescente, Saúde da Mulher, Saúde do Homem, Saúde das pessoas LGBT, Saúde do Idoso, Saúde das Pessoas em Situação de Violência e Saúde das Pessoas em Situação de Rua.” (Política Municipal de Saúde Integral da População Negra) Algumas práticas adotadas por serviços de saúde e por organizações gestoras são potencializadoras de ruptura dos racismos institucionais. Portanto, recomenda-se: • Incluir os temas Racismo e Saúde da População Negra na formação e educação permanente de trabalhadores; • Incluir em todos os sistemas de informação e formulários utilizados o campo Raça/Cor, bem como seu preenchimento adequado (Lei Municipal no 16.129/2015); • Produzir informações com recorte de raça/cor para avaliação, monitoramento, censos e programas. (Lei Municipal no 16.129/2015).
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Pessoas indígenas
Os povos indígenas englobam uma grande diversidade étnica, geográfica e cultural. O censo de 2010 do IBGE registrou 274 línguas indígenas e 305 etnias diferentes. Nesse levantamento, 896.917 pessoas se declararam ou se consideraram indígenas, das quais 63,8% vivem em área rural e 36,2% em centros urbanos.97 Ainda hoje os povos indígenas enfrentam diversas formas de violência, a falta de assistência em saúde e em outras áreas que afetam suas condições de saúde.98 Desde 1999, o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) e Distritos Especiais Indígenas (DSEI) nos quais é estruturada a Atenção Básica de Saúde. Em 2002, foi criada a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI),99 que propõe um modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços de saúde considerando as especificidades culturais, epidemiológicas e operacionais desses povos. Em 2010, foi criada a Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI), que passou a ser responsável pela gestão da PNASPI. A criação da SESAI foi uma resposta a reivindicações dos povos indígenas e aliados a respeito da necessidade de um órgão responsável unicamente pela saúde indígena no âmbito do Ministério da Saúde. Uma das diretrizes da PNASPI é a preparação de recursos humanos para atuação em contexto intercultural. No entanto, a noção de interculturalidade na atenção à saúde dos povos indígenas demanda um maior desenvolvimento na direção de alcançar interações simétricas entre pessoas, conhecimentos, valores e práticas culturalmente diferentes. Isso implica o respeito à diferença, à identidade e à capacidade de atuação dos envolvidos de modo a confrontar o racismo, a estrutura colonial e as desigualdades nos intercâmbios culturais. O diálogo intercultural esbarra ainda em problemas de rotatividade dos profissionais de saúde e em dificuldades relativas à educação permanente desses nas temáticas da saúde indígena.100
97 Fundação Nacional do Índio - FUNAI, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. O Brasil Indígena -
Folder. IBGE [internet]; 2013 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://indigenas.ibge.gov.br/estudos- especiais-3/o-brasil-indigena/download
98 Conselho Indigenista Missionário - CIMI. Relatório - Violência contra os povos indígenas no Brasil - Dados de
2021. CIMI [internet], 2022 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://cimi.org.br/wp- content/uploads/2022/08/relatorio-violencia-povos-indigenas-2021-cimi.pdf
99 Fundação Nacional da Saúde - FUNASA, Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde [internet]; 2002 mar [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf 100 Schweickardt JC, Freitas JMB, Ahmadpour B. A Saúde indígena no contexto da interculturalidade no cotidiano do trabalho. In: Schweickardt JC, Freitas JMB, Ahmadpour B, orgs. Saúde Indígena: práticas e saberes por um diálogo intercultural. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2020.
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122 Em muitas discussões atuais acerca das questões indígenas, é feita uma crítica à concepção de conhecimento característica da colonialidade, que promove hierarquias de raça e outras desigualdades. A partir de uma perspectiva decolonial, algumas autoras questionam a pretensão de universalidade do pensamento ocidental, encarado como o único verdadeiro e capaz de guiar o mundo, à custa do silenciamento e da desqualificação de outras formas de conhecer, ver e imaginar. Portanto, é necessário resgatar a ideia de conhecimentos indígenas do abandono e das distorções ocidentais, reconhecendo sua relevância para o futuro do mundo.101 A diversidade sexual entre os povos indígenas tem sido estudada e discutida com foco predominante na sexualidade heterossexual.102 Temas relacionados à homossexualidade, à transexualidade e à intersexualidade têm sido invisibilizados em diferentes âmbitos, inclusive nos estudos e serviços de saúde. Por outro lado, a partir da demanda de pessoas indígenas LGBTIA+, alguns debates acerca desses temas têm sido realizados em eventos como o Acampamento Terra Livre, encontro promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), e o Encontro Nacional de Estudantes Indígenas (Enei) em 2017.103 Pessoas indígenas que se identificam como LGBTIA+ têm problematizado as resistências e barreiras que enfrentam em suas comunidades, inclusive no âmbito do movimento indígena brasileiro.104 Algumas delas têm recorrido a estudos e parcerias que ajudem a mostrar para suas lideranças que o fato de serem LGBTIA+ não as torna “menos indígenas” ou os faz “perder sua cultura”.105 Com esse argumento, buscam contrapor a perspectiva de que as práticas homossexuais, por exemplo, seriam incompatíveis com as tradições indígenas e teriam sido incorporadas a partir do contato com a sociedade não indígena. Na direção contrária a essa perspectiva, é possível identificar que tais práticas ocorriam em diversas etnias antes desse contato, como mostram alguns registros etnográficos, e que sua invisibilidade ou negação pode ser fruto dos processos de colonização, sobretudo no que diz respeito ao controle das sexualidades indígenas.106
101 Ndlovu M. Por que saberes indígenas no século XXI? Uma guinada decolonial. Epistemologias do Sul 2017; 1(1):127-144. 102 Belaunde LE. O estudo da sexualidade na etnologia. Cadernos de campo 2015; 24: 399-411. 103 Borret RH, Oliveira DOPS, Amorim ALT, Baniwa BA. Vulnerabilidades, interseccionalidades e estresse de minorias. In Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Jr A, eds. Saúde LBGTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba (SP): Manole; 2021. 104 Costa M, Vilas Boas S. Terra sem Pecado - documentário baseado na pesquisa Homossexualidade indígena e LGBTQfobia no Brasil: duas faces da mesma moeda. Brasil; 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BUuqAd-Gq8w 105 Fernandes ER. Dos "índios gays" ao queer como crítica colonial: uma agenda para o embate. Revista de Estudos em Relações Interétnicas 2018 jan/abr; 21(1): 5-17. 106 Fernandes ER. Ativismo homossexual indígena: uma análise comparativa entre Brasil e América do Norte. Dados - Revista de Ciências Sociais 2015; 58(1).
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123 Adicionalmente, as pessoas indígenas que residem ou se encontram em centros urbanos enfrentam dificuldades relacionadas ao reconhecimento de sua identidade étnica devido ao fato de não estarem em aldeias ou corresponderem a estereótipos reproduzidos por pessoas não indígenas. É comum que pessoas indígenas que se encontram fora das aldeias tenham suas identidades questionadas e seus direitos desrespeitados. Um exemplo são as barreiras que algumas delas encontram nos centros urbanos para ter acesso à vacina contra Covid-19. Em particular, a cidade de São Paulo, além de abranger territórios indígenas, concentra fluxos migratórios de indígenas de diferentes regiões do país motivados pela busca de emprego, de tratamentos em saúde ou pela possibilidade de ingresso em uma universidade. Tais fluxos acarretam também significativos intercâmbios culturais e, portanto, nas práticas, significados e identidades relativas a gênero e sexualidade. Profissionais de saúde podem se tornar importantes interlocutoras ou mediadoras da abordagem da diversidade sexual entre indígenas e suas especificidades para a saúde. Os serviços de saúde localizados em DSEI ou que atendem pessoas indígenas fora das aldeias devem integrar a suas atribuições o acolhimento e o suporte a pessoas LGBTIA+, o debate a respeito da diversidade sexual e de gênero, assim como o enfrentamento da discriminação e da violência atrelada à homo e à transfobia. Para tanto, é fundamental a capacitação profissional continuada tanto na perspectiva intercultural e decolonial com participação dos povos indígenas, quanto na compreensão da diversidade sexual e de gênero. Nesse sentido, vale ressaltar a heterogeneidade das cosmovisões indígenas não apenas acerca do cuidado em saúde, mas também da sexualidade e de gênero. Em diferentes sociedades indígenas, práticas, normas e identidades sexuais e de gênero podem ter nomes e conotações diversos e ser associadas a valores e papéis sociais específicos. Ao mesmo tempo, é comum o diálogo de pessoas indígenas com referências consolidadas na sociedade não indígena, como as nomenclaturas e pautas dos movimentos LGBTIA+. Cabe às equipes de saúde confrontar os discursos discriminatórios, em especial aqueles que encaram a homossexualidade e a transgeneridade como patologias. Nessa tarefa, é fundamental que profissionais de saúde se apropriem do debate e das normativas que determinam que tais condições não devem ser tratadas como doenças. (ver Psicólogas) As práticas de cuidado em saúde devem considerar a intersecção de etnia, orientação sexual e identidade de gênero na compreensão de determinantes de saúde. Devido às iniquidades sociais em saúde, é possível identificar aumento em determinadas morbidades tanto entre pessoas indígenas quanto entre pessoas LGBTIA+, como questões de saúde
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124 mental,107 suicídio,108 uso prejudicial de álcool e outras substâncias,109 violência,110 HIV e outras IST.111 Logo, a vulnerabilidade das pessoas indígenas LGBTIA+ a esses problemas de saúde pode ser agravada e merece atenção nos programas e ações de saúde.
107 Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria Especial de Saúde Indígena, Departamento de Atenção à Saúde Indígena. Atenção psicossocial aos povos indígenas: tecendo redes para promoção do bem viver [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf 108 Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria Especial de Saúde Indígena, Departamento de Atenção à Saúde Indígena. Estratégias de Prevenção do Suicídio em Povos Indígenas [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019[acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Estrategia_Prevencao_Suicidio_Povos_Indigenas.pdf 109 Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria Especial de Saúde Indígena, Departamento de Atenção à Saúde Indígena. Manual de monitoramento do uso prejudicial do álcool em povos indígenas [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Manual_Uso_Prejudicial_Alcool_Povos.pdf 110 Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria Especial de Saúde Indígena, Departamento de Atenção à Saúde Indígena. Manual de investigação/notificação de violências em povos indígenas [internet]. Brasília : Ministério da Saúde; 2019[acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Manual_Investigacao_Violencia_Povos_Indigenas.pdf 111 Graeff SVB, Picolli RP, Arantes R, Castro VOL, Cunha RV. Aspectos epidemiológicos da infecção pelo HIV e da aids entre povos indígenas. Rev. Saúde Pública [periódicos na internet]. 2019; 59 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rsp/a/kGr67vx9TXFhhJLRPhNDsHz/?lang=pt
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Pessoas com deficiência
O que é deficiência Segundo o artigo 2o da Lei Brasileira de Inclusão (LBI)112
, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” • Deficiência física: É o comprometimento, total ou parcial, das funções de algum segmento do corpo. • Deficiência intelectual: É caracterizada por graus variados de dificuldades de resolver problemas lógicos através do raciocínio e de compreender conceitos. Pode haver comprometimento de habilidades sociais e práticas, como relacionamento com outras pessoas e autocuidado. Apesar de a LBI trazer o termo “deficiência mental”, prefere-se usar “deficiência intelectual” por ser mais preciso e carregar menos estigma. • Deficiência sensorial: Caracteriza-se por deficiências isoladas ou combinadas, em graus variados, principalmente da capacidade auditiva e/ou visual. • Deficiência visual: Causada pela redução da visão em níveis diversos ou cegueira. O termo adequado para se referir à pessoa, é pessoa com deficiência visual. • Deficiência auditiva: Redução ou ausência da capacidade de ouvir determinados sons em diferentes graus de intensidade, podendo ser uma perda auditiva leve, moderada, severa ou profunda e pode ou não saber a língua brasileira de sinais (Libras) e se comunicar oralmente, podem fazer ou não leitura labial e/ou utilizar aparelho auditivo. Há outros grupos que se beneficiam do arcabouço legal das pessoas com deficiência, mas que podem se entender de outras formas em um ambiente de diversidade. Pessoas portadoras de transtornos do espectro autista (TEA) ou com síndrome de Down, por exemplo, podem se considerar como tendo uma característica, mas que não se constitui como uma deficiência. Elas podem ser consideradas como pessoas neurodiversas. Pessoas surdas podem se considerar como parte de uma minoria linguística, que têm como língua mãe a Libras e não a língua portuguesa, sem se considerar uma pessoa deficiente auditiva.
112 Brasil. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015 - Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) [internet]. [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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Direito à acessibilidade O Artigo 24 da Lei Brasileira de Inclusão113 assegura às pessoas com deficiência “o acesso aos serviços de saúde, tanto públicos como privados, e às informações prestadas e recebidas, por meio de recursos de tecnologia assistiva (...)”. É fundamental que a todas as pessoas que necessitam de atendimento em saúde seja garantido atendimento acessível e o seu protagonismo. A acessibilidade deve respeitar as características do indivíduo para que haja qualidade em seu atendimento e pode incluir rampas de acesso (cadeirantes), tempo adequado de consulta para garantir entendimento de orientações (deficiência intelectual) ou a presença de intérprete da língua brasileira de sinais (comunidade surda usuária de Libras).114 O acesso inclui a acessibilidade, mas não se restringe a ela. Muitas vezes pessoas com deficiência não têm acesso a serviços aos quais têm direito e essas situações devem ser compreendidas como discriminação, por qualquer que seja seu motivo: problemas estruturais, questões familiares, negligência profissional ou problemas relacionados à gestão e à política pública.
Capacitismo Capacitismo significa a discriminação de pessoas com deficiência. O termo é pautado na construção social de que a ausência de qualquer deficiência é vista como um padrão denominado como “normal” e da subestimação da capacidade e aptidão de pessoas em virtude de suas deficiências. O conceito abrange pessoas excluídas socialmente por sua deficiência, mas pode ser também ampliado para outros grupos populacionais lidos como insuficientes, como a população negra e de mulheres. Essa discriminação à qual são sujeitas as pessoas com deficiência é praticada como julgamentos ou formas diferenciadas de tratamento. Também se caracteriza como deficiência o mito do herói, através da concepção de que as pessoas com deficiência que executam as tarefas do dia-a-dia são vistas como exemplos de superação - cenário que joga um fardo às pessoas com deficiência, que precisam se esforçar ainda mais pelo fato de uma pessoa sem deficiência não executar determinada tarefa. Vale ressaltar que tanto pessoas que não possuem deficiências visíveis quanto pessoas com deficiências visíveis não devem ser discriminadas. A percepção de 113 Brasil. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015 - Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) [internet]. [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm 114 Brasil. Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002 - Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências [internet]. [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm
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127 “passabilidade” dessas pessoas (não serem lidas como pessoas com deficiência) não deve ser motivo para que sejam classificadas como pessoas sem deficiência. O que evitar A trajetória de contato das pessoas com deficiência com o sistema de saúde pode ser marcada por desencontros e violências, portanto é fundamental atentar a posturas profissionais que podem ser gatilhos para reviver traumas e gerar experiências desconfortáveis na pessoa atendida. Garantir um atendimento acolhedor é um dos passos para garantir um atendimento não excludente. Dicas sobre o que evitar: ● Termos depreciativos ou pejorativos: Reduzem a pessoa à deficiência, marcando a pessoa por um detalhe de seu todo. Ex.: retardado, aleijado, surdinho, mudinho, surdo-mudo. ● Foco do atendimento na deficiência: É importante que o atendimento leve em consideração o sujeito em todas suas dimensões, não somente o laudo ou a solicitação de exame. Priorize a demanda da pessoa usuária, evitando posturas em que a profissional direciona o cuidado. ● Evite que a consulta seja um espaço para trazer a pessoa atendida para um determinado padrão, como tentar convencê-la a colocar aparelho de amplificação sonora individual (aparelho para surdez) sem isso ser uma demanda dela. ● Estigmas atitudinais e sexualidade: Não assuma uma postura de saber baseada em uma característica da pessoa. Pessoas com deficiência podem ser estigmatizadas com a suposição de serem frágeis, incapazes de uma vida autônoma, sexualmente passivas, etc. ● Não encare a deficiência quando visível e/ou não pergunte a origem da mesma, que pode ser congênita ou adquirida.
Boas práticas no atendimento à saúde A pessoa com deficiência tem direito a atendimento completo e de qualidade tanto no âmbito público quanto no privado. A atenção integral à saúde deve ser assegurada em todos os níveis de complexidade do SUS, com garantia de acesso universal e equânime.115 Deve ser garantido ambiente acolhedor e respeitoso à pessoa atendida, acompanhantes e familiares, no momento do atendimento e também nos ambientes frequentados somente por
115 Brasil. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015 - Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) [internet]. [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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profissionais, como em discussões de caso e espaços de convivência. Parcerias afetivo- sexuais do mesmo gênero podem ser mais vulneráveis a barreiras de acesso a ambientes de
saúde como consultórios, salas de parto e reuniões para tomada de decisão compartilhada. Dicas para realizar um atendimento não excludente a pessoas com deficiência: • Se a pessoa com deficiência levar alguma acompanhante, refira-se sempre à pessoa com deficiência. Pessoas com deficiência buscam a autonomia e o protagonismo. • Pratique a escuta ativa e a empatia durante o atendimento • Termos adequados: Utilize sempre o termo mundialmente aceito: “pessoa com deficiência”. Para as pessoas surdas, é comum a preferência pelo termo “pessoa surda” ou “surdo”. Pessoas que usam cadeiras de rodas podem preferir usar o termo “cadeirante”. É mais adequado perguntar à pessoa sobre qual a forma de tratamento ela deseja que seja utilizada. • Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (TILS): Garanta a acessibilidade do atendimento à pessoa surda através do TILS, acessando a Central de Intermediação em Libras. Na presença de intérprete, direcione a fala para a pessoa que está no atendimento e não a quem é intérprete. • Quando atender uma pessoa com deficiência visual, faça uma descrição de si e do ambiente para torná-lo inclusivo (cor das roupas, formato do cabelo, cor da cadeira etc.). Representatividade das pessoas com deficiência em campanhas de saúde As campanhas de conscientização na área da saúde precisam ser mais inclusivas na sua prática. Quando se fala de representatividade das pessoas com deficiência na área da saúde, comumente imagina-se somente a estrutura física local, a disponibilidade de atendimentos de fisioterapia e fonoaudiologia ou o número de atendimentos básicos, sem enxergar a pessoa com deficiência como indivíduo de direito e com uma vida ativa. Por exemplo, observa-se que a pessoa com deficiência é pouco, ou quase nunca, representada em campanhas sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, porque profissionais de saúde muitas vezes não enxergam a pessoa com deficiência como um indivíduo que tem desejos, vontades e vivências sexuais/reprodutivos.116 Profissionais de saúde devem considerar todas as esferas da vida de pessoas com deficiência, o que inclui todos os aspectos da sexualidade, família, vontades e desejos. Há grande invisibilidade de IST em pessoas com deficiência, que sofrem com a negligência 116 Ferreira CBC. “Yes, we fuck”: sexualidade, “diversidade funcional” e mercado do sexo. In: Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia. Vila Real (Portugal): 2013; 5.
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129 profissional e com o medo de violências institucionais, como julgamentos, desrespeitos, quebra de sigilo ou ausência de recursos adequados para seu atendimento. É preciso oferecer escuta ativa às pessoas com deficiência, para que possam ser compreendidas em suas individualidades e assim receberem a atenção necessária e os cuidados em saúde mais apropriados. O trabalho multiprofissional e intersetorial é uma importante ferramenta para o acolhimento e para a criação de redes éticas de cuidado a essa população.
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Pessoas imigrantes e refugiadas
Quem são? As palavras “imigrante” e “refugiada” são frequentemente usadas como sinônimos, entretanto, elas possuem significados distintos: ● Pessoa imigrante: é toda pessoa que deixa seu país de nacionalidade ou de residência habitual, cruza uma fronteira internacional e adentra um novo país, normalmente por um longo período, por motivos diversos, como: trabalho, estudos, reunificação familiar, amor, ou em busca de refúgio e proteção.117 ● Pessoa refugiada: de acordo com a lei brasileira de refúgio, n°9.474 de 1997, é toda pessoa que precisou sair de seu país de origem por ter sido perseguida, ou por ter um fundado temor de perseguição por motivos relacionados à sua raça, religião, opinião política, nacionalidade, ou pertencimento a um grupo social. Ou ainda, devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, como situações de guerra ou profunda crise socioeconômica e política.118 ● Pessoa solicitante de refúgio: pessoa estrangeira que solicitou refúgio ao governo brasileiro, entretanto ainda aguarda uma decisão do órgão competente, o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE).119
Em todo o mundo, milhares de pessoas fogem da perseguição com base em sua
orientação sexual e/ou identidade de gênero. Além de contar com leis específicas anti- LGBTIA+ em seus códigos penais, as normas sociais, tradições e costumes de muitos países
tornam a vida para pessoas LGBTIA+ insegura. Esse grupo é constantemente confrontado com obstáculos adicionais e tem preocupações e vulnerabilidades únicas, como a violência dentro do núcleo familiar e/ou comunitário. Erroneamente, muitos associam refugiadas com pessoas ligadas a atividades ilegais ou foragidas, porém, isto é uma inverdade que alimenta discursos xenofóbicos.
117 International Organization for Migration. World Migration Report [internet]. Geneva: IOM, 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://publications.iom.int/system/files/pdf/wmr_2020.pdf 118Brasil. Lei no 9.474, de 22 de julho de 1997 - Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências [internet]. [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm 119Brasil. Lei no 9.474, de 22 de julho de 1997 - Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e determina outras providências [internet]. [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm
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Como atender? As pessoas imigrantes, refugiadas e/ou solicitantes de refúgio possuem os mesmos direitos de qualquer pessoa estrangeira em situação regular no Brasil, incluindo o acesso universal ao Sistema Único de Saúde (SUS).120,121 Isso é garantido pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação brasileira, independente do status de documentação (pessoa imigrante indocumentada), devendo ser garantida toda a qualidade dos atendimentos realizados de forma habitual. A pessoa usuária tem direito a ser chamada pelo seu nome de forma correta. Por isso é importante desde o início do acolhimento, perguntar como a pessoa quer ser chamada, qual nome utiliza, se tem nome social ou como se pronuncia seu nome. Evite falar diminutivos, equivalentes ou apenas parte do nome, sobretudo se a pessoa não o consentiu. É importante fazê-lo inclusive nos ambientes de acesso somente de profissionais, como discussão de casos e espaços de convívio, marcando sempre o respeito à pessoa usuária, acompanhante e a sua família. Acompanhantes do mesmo gênero podem ser mais vulneráveis a barreiras de acesso ao convívio da pessoa usuária (consultório, sala de parto etc.), tomada de decisão compartilhada e estigma (insinuações, piadas, estereótipos). (ver Nome social) Uma ferramenta importante é adotar a postura do “não-saber”, que significa simplesmente não assumir aspectos sobre a pessoa que temos na nossa frente, como por exemplo: sua cultura, religião, identidade, orientação sexual, posturas, etc. É essencial fazer perguntas abertas e estar aberta à diversidade existente porque pessoas Imigrantes e Refugiadas LGBTIA+ vêm de contextos multiculturais, diversos em suas expressões e identidades e, muitas vezes, percebem ou conceitualizam as sexualidades e identidades de gênero de forma diferente do Brasil, inclusive os termos que descrevem estes aspectos podem variar. Neste processo, é muito importante contar com o apoio da equipe interdisciplinar e discutir junto os casos para elaborar estratégias de abordagem integral e prover ou fortalecer as redes de suporte social da pessoa atendida.
120 Presidência da República (Brasil). Lei No 9.474, de 22 de julho de 1997: Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências [internet]. Diário Oficial da União 23 jul 1997; Seção 1: 15822 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm 121 Presidência da República (Brasil). Lei 8.080, 1990: Dispõe sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências [internet]. Diário Oficial da União 20 set 1990; Seção 1: 18055 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm
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Acessibilidade linguística É fundamental a formulação de estratégias que garantam a comunicação com as pessoas usuárias, evitando que a mesma fique com dúvidas ou incapaz de se comunicar. Essas estratégias devem ser facilitadoras, mas sem esquecer que no melhor cenário deveríamos ter uma intérprete profissional com capacitação em atendimento em saúde. As estratégias facilitadoras não podem ser um atalho a um atendimento rápido, que reduza sua qualidade ou torne invisíveis elementos culturais do atendimento. Por exemplo, podemos contar com profissionais de saúde que falam várias línguas, ter uma rede de aliadas no território que conheçam os códigos culturais da usuária (mediadora cultural) ou usar tradutores on-line (com cuidado), considerando se a pessoa é alfabetizada. A presença da intérprete presencial ou on-line é importante, pode ser uma pessoa da família ou conhecida da usuária ou muitas vezes, uma representante da sua comunidade. Assim como pode ser uma aliada, pode também significar uma barreira, dado que a pessoa que busca ajuda pode não querer compartilhar determinados temas com alguém de seu convívio pessoal.
O que evitar? ● Perguntar o motivo da migração: O processo migratório é um espaço de intimidade e pode ter sido marcado por violência. Se não temos o devido cuidado na abordagem, esse tema pode deflagrar gatilhos emocionais e fragilizar o vínculo com a pessoa. ● Assumir regras, uniformidades ou estereótipos: Por exemplo, assumir comportamentos típicos ou esperados de pessoas “latinas”, “árabes”, “africanas” etc. ou assumir questões sobre sua cultura e religião. ● Usar o termo “ilegal”: ele possui uma conotação negativa e depreciativa. Portanto, deve-se evitar a expressão “imigrante ilegal” e substituí-la por “imigrante indocumentado”, ou “imigrante em situação irregular”.122 Ninguém é ilegal! ● Condutas e rotulações: Por exemplo, pressupor a dinâmica de atividade sexual baseado em características físicas, etnicidade, comportamentais ou papéis que tendem a ser estereotipados; pressupor que as pessoas sentem menos dor e não fazer uso de anestésico, que resultam em formas de violência. ● Julgamentos à profissão: A prostituição no Brasil é uma ocupação profissional regulamentada entre pessoas maiores de idade. Pessoas imigrantes e refugiadas LGBTIA+ atuantes dessa profissão devem ser respeitadas e livres de julgamentos.
122 Instituto Migrações e Direitos Humanos, Migra Mundo, Ficas. Migração, Refúgio e Apatridia. Guia para Comunicadores [internet]. Acnur 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes-FICAS-color_FINAL.pdf
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Você sabe o que é Xenofobia? “Xenofobia é o sentimento de aversão, desconfiança, medo, antipatia, rejeição em relação à pessoa estrangeira, a tudo que vem de outro país, ao que vem de fora. O sentimento de xenofobia se manifesta em atitudes discriminatórias e, muitas vezes, violentas, tanto verbais como físicas e psicológicas contra migrantes.”123 A xenofobia é proibida e deve ser combatida!
Redes de apoio específicas para pessoas refugiadas • Cáritas Serviço: Acolhida e orientação para pessoas refugiadas Contato: caritassp@caritassp.org.br – telefone: (11) 4890-0350 • Adus Serviço: Integração de pessoas refugiadas Contato: adus@adus.org.br – telefone: (11) 3225-0439 ou (11) 94744-2879 • Conare – Comitê Nacional para os Refugiados Serviço: Órgão público, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que delibera sobre as solicitações de reconhecimento da condição da pessoa refugiada no Brasil. Contato: conaresp@mj.gov.br • ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados Serviço: Proteção e assistência a pessoa refugiada Contato: brabrhelp@unhcr.org – telefone: (11) 3101-2921
Redes de apoio específicas para pessoas imigrantes • CRAI: Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes Serviço: Regularização migratória e documental, serviço social, integração social, formação e qualificação de servidores e profissionais, atendimento jurídico, atendimento psicológico Contato: smdhcgabinete@prefeitura.sp.gov.br – telefone: (11) 2833-4280 • Missão Paz Casa do Migrante: Centro de Acolhida (moradia temporária)
123 Instituto Migrações e Direitos Humanos, Migra Mundo, Ficas. Migração, Refúgio e Apatridia. Guia para Comunicadores [internet]. Acnur 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Migracoes-FICAS-color_FINAL.pdf
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134 Centro Pastoral e de Mediação dos Migrantes (CPMM): Diversos eixos de apoio, como Capacitação e Cidadania, Comunidade e Família, Eixo Saúde, Eixo Trabalho, Estágio, Jurídico e Documentação, Serviço Social Contato: contato@missaonspaz.org – telefone: (11) 3340-6950 • CDHIC – Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante Serviço: Regularização migratória, assessoria jurídica e acompanhamento psicossocial Contato: contato@cdhic.org –Telefone: (11) 2257-3467 e (11) 95327-8158 (whatsapp) Atendimento online (somente WhatsApp): Segunda-feira a Quinta-feira, das 9h30 às 16h30 Regularização Migratória: (011) 94171-3994, Serviço Social: (011) 94337-6370, Assessoria jurídica: (011) 93290-1707 • Veredas (PUC) Serviço: Atendimento psicanalítico Contato: grupoveredaspsi@gmail.com • Projeto Ponte (SEDES) Serviço: Acompanhamento clínico psicanalítico individual ou grupal, atendimento a famílias estrangeiras e a casais estrangeiros Contato: equipe@projetopontesedes.com.br – telefone: (11) 3866-2735 ou (11) 3866-2736 • Prosol – Programa de Psiquiatria Social e Cultural Serviço: Atendimento em saúde mental / psiquiatria. Contato: prosol.ipq@gmail.com (profissional deve enviar informações sobre o caso) • Projeto de Acolhimento Psicossocial Intercultural UNIFESP Serviço: Acolhimento psicossocial individual e em grupos para pessoas migrantes, refugiadas, retornadas e indígenas Contato: intercultural@unifesp.br – WhatsApp: (11) 99179-1699 Muitos serviços de apoio à população imigrante podem ser encontrados no
Guia Somos Todas/os Migrantes e no
Manual de Atendimento Humanizado a Migrantes Internacionais LGBTQI+.
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Pessoas em situação de rua
A Pesquisa Censitária da População em Situação de Rua em São Paulo de 2019 apontou 24.344 pessoas em situação de rua. Destas, um total de 2,9% (706) foram identificadas como trans, travestis ou pessoas com variabilidade de gênero e 0,9% (219) declararam não saber sua identidade de gênero.124 Uma questão central para a atenção à saúde das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que estão em situação de rua deve ser reconhecer a experiência da exclusão social e do estigma que interferem diretamente na fragilização de suas redes de proteção social. As pessoas em situação de rua devem ser acolhidas como cidadãs, em quaisquer espaços, para que não se amplie o estigma e a discriminação que as distanciam dos espaços de convivência social e de promoção de saúde e, assim, proporcionar experiências de tratamento digno que possam dirimir os processos de marginalização que marcam tais existências. A percepção de discriminação é extremamente elevada nesse grupo, havendo a sobreposição de discriminações – tanto pela condição de viver na rua, como pela identidade de gênero, orientação sexual, raça/cor e geração. Essa experiência de discriminação também é frequente no âmbito dos serviços de saúde, apesar das orientações fornecidas aos serviços. Os serviços da rede municipal de saúde – sejam serviços de atenção primária em saúde, das redes especializadas e de urgência e emergência ou hospitalares – são orientados a atender à população de acordo com sua singularidade e necessidades individuais, preocupando-se em não estigmatizar as pessoas, acolhê-las em suas especificidades e, a partir disso, lidar com seus sofrimentos. São frequentes os relatos de pessoas vivendo em situação de rua sobre violências e agressões que sofreram ou a que foram expostas125 e podemos supor que sejam ainda mais acentuados entre pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero nessas condições. A precariedade dos vínculos sociais repercute negativamente sobre sua saúde física e mental e a possibilidade de sofrer mais agressões. O uso de álcool e outras substâncias, nesse contexto, muitas vezes ocorrem para ajudar a suportar as duras condições de vida, a ausência ou precariedade de vínculos, a falta de confiança, a exposição a situações de riscos à saúde. 124 Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (São Paulo, SP), Qualitest Inteligência em Pesquisa. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo - Produto IX: Relatório final da pesquisa amostral do perfil socioeconômico [internet]. Prefeitura de São Paulo 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/Produtos/Produto%209_SMADS_SP.pdf 125 Barata RB, Carneiro Junior N, Ribeiro MCSA, Silveira C. Desigualdade social em saúde na população em situação de rua na cidade de São Paulo. Saúde Soc. 2015; 24(1): 219-232.
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136 A infecção pelo HIV atinge desproporcionalmente a população de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero126 e pode ser ainda mais prevalente entre aquelas que se encontram em situação de rua, que são indígenas ou sobretudo negras, que são jovens ou, ainda mais, quando, por exemplo, trata-se de uma mulher trans negra que usa drogas e se encontra em privação de liberdade. A essa somatória de fatores de exclusão, Parker (2000) nomeou “sinergia de vulnerabilidades”.127 A população de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que está em situação de rua deve ser encarada, principalmente, pela ótica da exclusão social e do estigma que interfere diretamente nas redes de proteção que essas pessoas poderiam ter. As pessoas em situação de rua devem ser acolhidas como cidadãs, em quaisquer espaços, para que não se amplie o estigma e a discriminação que as distancia dos espaços de convivência social e de promoção de saúde, proporcionando uma abertura para mudanças no estilo de vida, porém sem impô-las.
126 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, Velasque L, Moreira RI, Garcia ACF, Castro CV, Krüger A, Luz PM, Liu AY, McFarland W, Buchbinder S, Veloso VG, Wilson EC. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017; 4: 169–76. 127 Parker R, Camargo Jr KR. Pobreza e HIV/AIDS: aspectos antropológicos e sociológicos. Cad. Saúde Pública 2000; 16(1): 89-102.
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Pessoas institucionalizadas
Para refletir a interseccionalidade na atenção à saúde das pessoas LGBTIA+ é necessário considerar aquelas inseridas ou egressas do sistema penitenciário, de maneira a incorporar na acolhida desta população, as particularidades das graves situações de violências físicas, psicológicas, sexuais; precariedade de higiene e superlotação dos espaços; bem como, a realidade da carência dos atendimentos à saúde nessas instituições. É importante considerar ainda as especificidades de pessoas adolescentes inseridas nos Centros de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), local onde se desenvolverá o atendimento a jovens que cometeram ato infracional e receberam sentenciamento com medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade, que ainda é marcada pelas denúncias de violências e precariedades vistas em prisões destinados a pessoas adultas. Apesar da existência do documento produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU) “Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos”, e no caso da população adolescente, o ECA, na dinâmica concreta do movimento histórico da construção e organização dessas instituições de punição e controle, observa-se a configuração desses espaços enquanto locais para se conter a classe trabalhadora e para se propagar e justificar o fortalecimento de uma indústria bélica e prisional, perpetuando diversas violações dos direitos humanos.128 Os corpos de pessoas pobres, negras/as e indígenas, já controladas permanentemente pela sociedade patriarcal e racista, quando capturados pelo Sistema Penal ou Juvenil sofrem uma dupla punição quando estes se apresentam com a identidade de gênero mulher: o controle/punição por ser mulher e o controle por supostamente praticar ato considerado crime pelo Estado. A sociedade que espera uma feminilidade biologizante e docilizada reage também pelo cárcere para punir todas aquelas que ousam romper com estes padrões. Quando essas pessoas apresentam ainda expressões de gênero e/ou orientação sexual diversa da hegemonia heteronormativa, o peso sobre a vigia de seus corpos e comportamentos ganham ainda mais expressividade. Isso exige considerar, no acolhimento e atendimento dessas pessoas adultas ou adolescentes (sejam elas ainda mantidas em privação de liberdade ou egressas), além dos agravos de saúde decorrentes das condições de confinamento, o impacto da invisibilidade da orientação sexual, da identidade de gênero e
128 Rusche G, Kirchheimer O. Punição e estrutura social. Tradução por Neder G. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan; 2004.
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138 da expressão de gênero na garantia de acesso às informações e acompanhamentos de saúde.129 As prisões reproduzem as desigualdades e opressões de gênero, e especificamente as mulheres que se identificam como pertencentes à população LGBTIA+, permanecem atrás dos muros e grades ainda mais invisibilizadas e estigmatizadas. Atualmente, o Brasil ocupa o 4o lugar entre os países que mais possuem mulheres cisgênero encarceradas.130 No ano de 2017, mais de 37.200 mulheres foram presas e, quanto às adolescentes, o número foi de 1.046 – o que correspondeu a 4% do total de pessoas adolescentes privadas de liberdade.131 O mesmo relatório aponta que da totalidade de pessoas adolescentes privadas de liberdade (desconsiderando-se o gênero): 21 se declararam com identificação LGBTIA+. Esses dados foram respondidos apenas por 9 estados do país, e São Paulo, o estado que possui o maior contingente de adolescentes em unidades de privação de liberdade, foi um dos que não informou esses dados. A ausência de dados consistentes sobre a situação das mulheres e adolescentes LGBTIA+ privadas de liberdade reflete a invisibilidade de suas existências, o que irá consequentemente desconsiderar suas nuances e impactos dos problemas de saúde flagrantes nas instituições penitenciárias.132 É necessário, portanto, conforme evidencia este protocolo, que se consolide a sistematização de informações sobre esse público com a adequação dos instrumentos de atendimento para que haja um levantamento específico sobre esta realidade. Ou seja, os formulários utilizados por profissionais precisam conter campos de diálogo sobre a orientação e identidade sexual das pessoas atendidas e se está inserida ou é egressa do sistema penitenciário e/ou da Fundação Casa.133 A acolhida e atendimento das pessoas privadas de liberdade e/ou egressas deste sistema, deve considerar a importância de um espaço de diálogo e empatia, possibilitando uma escuta qualificada e disponível que possibilite às pessoas atendidas a apresentação das 129 Almeida MCA, Felippe MB, Souza RCB, Canheo RO. MulhereSemPrisão - Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal [internet]. São Paulo: ITTC; 2019 [acesso
em 11 abr 2023]. Disponível em: https://ittc.org.br/wp-content/uploads/2019/05/mulheresemprisao- enfrentando-invisibilidade-mulheres-submetidas-a-justica-criminal.pdf
130 Walmsley R. World Female Imprisonment List - Women and girls in penal institutions, including pre-trial detainees/remand prisoners [internet]. 4th ed. London: Institute for Criminal Policy Research at Birkbeck; 2017 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prisonstudies.org/sites/default/files/resources/downloads/world_female_prison_4th_edn_v4_web.pdf 131 Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Brasil). Levantamento Anual SINASE 2017
[internet]. Brasília: MMFDH; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt- br/navegue-por-temas/crianca-e-adolescente/LevantamentoAnualdoSINASE2017.pdf
132 Menezes G. Encarceramento feminino no Brasil e nos Estados Unidos: O que dois dos países que mais encarceram no mundo têm em comum?. ITTC [homepage na internet] 2020 dez 01 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://ittc.org.br/encarceramento-feminino-eua-brasil/ 133 Lanfredi LGS et al. (coord.). Conselho Nacional de Justiça (Brasil). Manual Resolução no 348/2020 - Procedimentos relativos a pessoas LGBTI acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade [internet]. Brasília: CNJ; 2021. (CNJ. Fazendo Justiça / Gestão e Temas Transversais) [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/manual_resolucao348_LGBTI.pdf
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139 situações e experiências vivenciadas no contexto da privação de liberdade, o que suscita a possível revelação de violações de direitos, bem como a experiência da sexualidade neste contexto. Muitas das pessoas cisgênero que se encontram privadas de liberdade acabam se permitindo ter experiências de práticas sexuais com pessoas de mesmo gênero que o seu, o que possivelmente não se permitiriam em um contexto de imposição heteronormativa. Isso ocasiona inúmeras dúvidas e desconhecimentos acerca da prevenção, de profilaxias e de cuidados necessários em incursões sexuais e cuidados cotidianos. Os espaços de acolhida e atenção à saúde desse segmento podem promover encontros para refletir as novas experiência e vivências da orientação sexual, expressão e identidade de gênero, bem como consolidar diálogos que visem combater as possíveis violências, torturas e desigualdades vividas pela condição LGBTIA+ dentro das instituições voltadas à privação de liberdade, seja entre o convívio com a população encarcerada, seja com funcionários/as. Para tal, deve-se no trabalho em rede socioassistencial incluir e incentivar o diálogo e a qualificação de todos os/as profissionais da instituição para o acolhimento e o atendimento desse público. Além disso, cabe diálogo permanente entre profissionais e pessoas usuárias de saúde sobre relações afetivas e sexuais, prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e garantia de preservativos adequados para cada experiência sexual. No atendimento às pessoas ainda inseridas no sistema prisional, orientamos que haja a intervenção junto às instituições penitenciárias para garantir, condições materiais à atenção à saúde, sejam os atendimentos médicos especializados para o público, bem como a garantia de produtos de higiene pessoal, roupas íntimas de acordo com desejado, absorventes, e outros, como medicamentos, terapia hormonal, preservativos, preservação da aparência (cabelos longos ou curtos) e etc. É fundamental, ao acompanhar a população em situação de privação de liberdade (adultos e/ou adolescentes), realizar articulação com a rede socioassistencial para que a saída da população LGBTIA+ desses espaços seja acolhida em ambientes que auxiliem, material e subjetivamente, o reencontro com a dinâmica de vida fora dos muros das prisões.
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Pessoas que realizam trabalho sexual e sexo transacional
A abordagem da prostituição nesse protocolo deve-se ao fato de que é inegável que grande parte das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero têm alguma experiência na prostituição, uma vez que a falta de apoio da família e da comunidade, associada à marginalização social, dificulta ou mesmo impede que elas encontrem empregos estáveis no mercado de trabalho formal ou encontrem outros caminhos. A prostituição passa a ser, nesse contexto, uma das poucas alternativas de trabalho disponíveis. Devido aos efeitos do estigma social e da não regulamentação do trabalho sexual no Brasil, pessoas que realizam trabalho sexual geralmente apresentam maior vulnerabilidade social e se tornam muito expostas a outros fatores que afetam a saúde: violência, uso abusivo de álcool e outras drogas, infecções sexualmente transmissíveis (sífilis, HIV, entre outras) e infecções associadas a condições de vida precárias (como a tuberculose). Portanto, um primeiro ponto de atenção para profissionais de saúde que se deparem com essa temática no atendimento, é procurar explorar o contexto em que aquela pessoa exerce o trabalho sexual, pois cada situação pode estar relacionada a diferentes fatores que afetam a saúde, como apontadas anteriormente. É importante considerar na abordagem: os horários de trabalho (diurno ou noturno); o local em que atua (rua, boate, prédio etc.); se mora no local de trabalho; qual o acordo de pagamento para a boate, prédio ou cafetão/cafetina; quantos clientes atende por dia; se e como tem acesso a preservativos, gel lubrificante, assim como informações sobre HIV e outras IST, testagem, tratamento, e outras formas de prevenção ao HIV como a Profilaxia Pré-Exposição (PreP); quais percepções tem sobre o trabalho; se é sua única fonte de renda e há quanto tempo exerce a atividade. O Projeto Tudo de Bom, do Programa Municipal de DST/Aids, que possui agentes de prevenção, vinculadas à Rede Municipal Especializada de DST/Aids, é uma estratégia importante para acessar as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que são trabalhadoras do sexo, pois através da educação entre pares, ampliam o acesso aos insumos de prevenção e aumentam o conhecimento dessa população sobre prevenção combinada – principalmente as tecnologias de prevenção como PEP e PrEP. Essas agentes visibilizam locais de trabalho, sociabilidade e moradia, e mediam a relação entre as trabalhadoras do sexo e os serviços especializados em IST/HIV/Aids, principalmente no que se refere à linguagem e dias e horários para acessá-las, conforme a realidade e contexto da população. Porém, essas aproximações só são efetivas por meio de uma escuta atenta e sigilosa, sem julgamentos ou pressuposições, das informações trazidas no atendimento com
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141 profissionais. Por exemplo, nem todas as travestis e mulheres trans se prostituem, e nem todas as que se prostituem fazem uso abusivo de drogas. Esse tipo de estigma é um dos principais motivos que afasta as trabalhadoras sexuais – sejam elas cisgênero, trans ou travestis – dos serviços de saúde, onde elas deveriam, na verdade, encontrar um ambiente de acolhimento para suas demandas. Assim, o atendimento às especificidades das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero na atenção básica deve ter como eixo principal a ruptura desse ciclo por parte de todas as profissionais de saúde, passando por questões como: chamá-las pelo nome social, respeitar o pronome e identidade de gênero, não presumir que todas elas exerçam o trabalho sexual, não reduzir a saúde delas à prevenção das IST , entre outras formas de não discriminação que garantam o atendimento integral à saúde em um ambiente de acolhimento e respeito à diversidade.
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Pessoas vivendo com HIV/Aids
Pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) constituem um grupo populacional expressivo no Brasil, sendo estimado em 936.000 pessoas.134 Viver com HIV/Aids é uma condição de saúde, mas também é um lugar social, delineado por violações de direitos. Pode, portanto, ser ainda uma identidade política. Pessoas trans, em particular mulheres trans e travestis, são especialmente afetadas pela epidemia. Estudo de 2017 com mulheres trans e travestis em várias capitais brasileiras encontrou, na cidade de São Paulo, prevalência de 40,2% para HIV/Aids.135 Considerar as especificidades dessa condição de saúde e desse lugar social é fundamental para a realização de cuidados de saúde integral às pessoas trans vivendo com HIV/Aids. A vulnerabilidade das pessoas trans ao HIV/Aids deriva da vulnerabilidade social a que está submetida boa parte deste grupo populacional. O grupo também é mais vulnerável ao adoecimento por aids. Embora não haja dados específicos sobre monitoramento clínico nem de mortalidade por Aids nessa população, é plausível supor que a aids seja uma importante causa de morte para mulheres trans e travestis, sobretudo negras. Não há dados sobre homens trans e pessoas não-binárias vivendo com HIV/Aids no Brasil.
Direito à saúde Historicamente, as pessoas vivendo com HIV/Aids se organizaram para participar ativamente da resposta à epidemia. Isso foi operado por meio de diversas formas de articulação com o poder público, como por exemplo: ● Participando da formulação das políticas públicas através de canais de participação social, como conselhos; ● Operando advocacy junto aos Poderes Executivo e Legislativo; ● Oferecendo serviços em parceria com o estado, como casa de apoio a pessoas doentes, organizações de apoio mútuo e serviços de prevenção. Um marco histórico nesse sentido foi a inauguração da Casa de Apoio Brenda Lee, que ofereceu acolhimento e assistência em saúde para travestis e mulheres trans vivendo com HIV/Aids nos anos 1980 e 1990, na cidade de São Paulo. Ao estabelecer convênio com
134 Ministério da Saúde (Brasil). Relatório de monitoramento clínico do HIV 2020 [recurso eletrônico]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [acesso em 29 ago 2022]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_monitoramento_clinico_hiv_2020.pdf 135 Malta MS. Estudo de abrangência nacional de comportamentos, atitudes, práticas e prevalências de HIV, sífilis e hepatite B e C entre travestis nos municípios de Belém/PA, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF, Campo Grande/MS, Curitiba/PR, Fortaleza/CE, Manaus/AM, Porto Alegre/RS, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/BA e São Paulo/SP (resumo) [internet].Rio de Janeiro: FioCruz; 2017 [Acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt-br/ct/na
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143 o poder público, a casa inaugurou uma forma de relação entre governo e sociedade civil que foi fundamental para a resposta à epidemia. Atualmente, o esforço é tornar acessíveis à população brasileira, por meio do SUS, os notáveis avanços da ciência médica do HIV/Aids.
Estigma e discriminação (sorofobia) Outra frente de atuação de pessoas vivendo com HIV/Aids é a luta contra o estigma e a discriminação, que também podem ser chamados de sorofobia. Os valores morais atribuídos à PVHA, os sentimentos de vergonha, culpa e medo, e os tabus de sexo e morte estão na origem do estigma e da discriminação, que se apresentam sob diferentes formas: ● Autoestigma, ou sorofobia internalizada, é uma noção de desvalor que uma PVHA atribui a si própria em função de seu status sorológico; ● Silenciamento ou tabu sobre as vivências com HIV/Aids e invisibilidade das PVHA; ● Discriminação por familiares ou pelo círculo social e isolamento social; ● Discriminação no âmbito dos relacionamentos e da sexualidade; ● Discriminação em serviços de saúde, como postura acusatória a PVHA que optem por gestar, julgamento sobre o exercício da sexualidade ou negação de procedimentos; ● Assédio na escola ou trabalho ou demissões; ● Violações do direito ao sigilo, pela exposição não autorizada do status sorológico; ● Criminalização das pessoas vivendo com HIV/Aids, especificamente da possibilidade de transmissão não intencional do HIV. Uma pesquisa sobre estigma feita em 2019 em diferentes capitais brasileiras mostrou que 27% das PVHA entrevistadas em Salvador declararam terem perdido a fonte de renda ou o emprego em razão de sua sorologia nos últimos 12 meses. Em Porto Alegre, 23% das pessoas reduziram contato social com família e amizades por causa da sorologia.136 Estigma e discriminação têm consequências devastadoras não somente no âmbito social e dos direitos, mas também para a saúde mental das PVHA. A depressão é de 2 a 3 vezes mais comum em PVHA do que em pessoas HIV-negativas.137 Uso de substâncias e comportamento suicida também são mais frequentes.138,139
136 RNP+, MNCP, RNAJVHA, RNTTHP, ONG Gestos, UNAIDS, PNUD, PUC-RS (Brasil). Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS BRASIL – Sumário Executivo. UNAIDS; 2019 [acesso em 29 ago 2022]. Disponível em: https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2020/01/Exec_Sum_ARTE_2_web.pdf 137 Bernard C, Dabis F, Rekeneire N De. Prevalence and factors associated with depression in people living with HIV in sub-Saharan Africa : A systematic review and meta-analysis. PLos One 2017 Ago 4; 12(8): 1-22. 138 Durvasula R, Miller TR. Substance abuse treatment in persons with HIV/AIDS: challenges in managing triple diagnosis. Behav Med. 2014; 40(2): 43-52. 139 Catalan J, Harding R, Sibley E, Clucas C, Croome N, Sherr L. HIV infection and mental health: suicidal behaviour--systematic review. Psychol Health Med. 2011 Oct; 16(5): 588-611.
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144 A saúde física também é atingida pelo estigma e discriminação, pois, para além do efeito da depressão sobre o autocuidado, há aspectos práticos. Por exemplo, PVHA muitas vezes precisam esconder seus medicamentos ou o fato de que frequentam o serviço de saúde, o que são barreiras para uma adesão e retenção ótimas. A lei federal 12.984/2014 tornou crime as condutas de discriminação no trabalho, na escola, a recusa em atendimento em saúde e a divulgação do status sorológico com fins ofensivos. A sorofobia é uma camada adicional sobre outros estigmas, como transfobia e racismo. A superposição de estigmas representa um grande fardo para as pessoas trans vivendo com HIV/Aids em termos de saúde e direitos. A superposição de estigmas torna mais difícil a visibilização do status sorológico positivo por pessoas trans, dificultando a ação política em torno desta interseção. Pessoas trans vivendo com HIV/Aids podem ter dificuldade de acessar cuidados, por um lado, pela transfobia nos serviços de HIV/Aids e, por outro, pelo silenciamento da questão do HIV/Aids nos espaços comunitários e nos espaços de cuidados gerais em saúde trans.
Termos O termo soropositivo (para o HIV) deriva do jargão médico e deve ser evitado fora deste contexto em favor do termo pessoa vivendo com HIV/Aids (PVHA), que valoriza a dimensão da pessoa e não a doença. É também usado o termo pessoas vivendo com HIV (PVHIV), que é adotado oficialmente pelo Ministério da Saúde, mas que recebe crítica por invisibilizar as pessoas vivendo com aids. Há um guia de terminologia disponível que foi publicado pelo Unaids.140
Redes de pessoas vivendo com HIV/Aids ● Rede Nacional de Travestis, Transexuais e Homens Trans Vivendo e Convivendo com HV/Aids - https://www.facebook.com/pg/RNTTHP/posts/ ● Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids – http://www.rnpvha.org.br/ ● Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/Aids - https://www.facebook.com/RNAJVHA/ ● Movimento Nacional Cidadãs Positivas - https://mncp.org.br
140 Unaids. Guia de Terminologia. Brasília: Unaids [homepage na internet]; 2017 [acesso em 29 ago 2022].
Disponível em: https://unaids.org.br/wp- content/uploads/2015/06/WEB_2018_01_18_GuiaTerminologia_UNAIDS.pdf
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Direitos
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146 A população LGBTIA+ conquistou nas últimas duas décadas alguns amparos legais e de políticas públicas, como resultado de ações do movimento social organizado. Muitos direitos reconhecidos dessa população referem-se a responsabilidades de setores da Saúde. Conhecer e divulgar direitos, assim como zelar por eles, é parte integrante do trabalho de profissionais de saúde. Todos os serviços de saúde devem garantir o acesso a atendimentos de forma não discriminatória, garantir que os cuidados oferecidos respeitem as diversidades, assegurar sigilo e confidencialidade dos registros de atendimentos, realizar ações de enfrentamento a preconceitos e a outros fatores sociais que impactam a saúde, cuidar e defender qualquer pessoa vítima de discriminação ou violência. Importante destacar que o Brasil é signatário internacional de tratados que reconhecem, dentre outros direitos, especialmente à população LGBTIA+: Direito à Igualdade e a Não-Discriminação; Direito ao Reconhecimento Perante a Lei; Direito ao Padrão mais Alto Alcançável de Saúde; Proteção contra Abusos Médicos; Direito de Constituir uma Família; Direito de Participar da Vida Pública e Cultural (Princípios de Yogyakarta, 2006 e 2017). A seguir são apresentadas algumas garantias oferecidas por leis, portarias, resoluções, políticas e consensos, relacionadas aos principais temas de interesse da população LGBTIA+.
Quadro 17– Direitos em temas de interesse da população LGBTIA+ Temas Documentação dos direitos
Garantias
Direitos humanos internacionais em relação à orientação sexual e identidade de gênero
Princípios de Yogyakarta, de 2006 e 2017 - Brasil é país signatário
Princípios sobre direitos humanos que especificam obrigações e proteções do Estado, responsabilização e reparação das violências, integridade física e mental, reconhecimentos legais, liberdade de expressão e de defender direitos, direito à verdade e a não criminalização devido à sexualidade.
Direito à não discriminação
Constituição Federal, de 1988 – Artigo 5o
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”
Direitos Sexuais Reprodutivos
Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (MS/2005)
Atuação de diversos Ministérios para treinamento, pesquisa e ações voltadas a planejamento familiar, anticoncepção, pré-natal e puerpério, atenção humanizada no abortamento, violência sexual.
Prostituição Código Penal: -Artigo 230 (rufianismo) -Artigo 233 (ato obsceno)
A prostituição não é considerada crime no Brasil, mas o ato de tirar proveito da prostituição alheia (rufianismo), sim. Atos obscenos e importunação ofensiva ao pudor são delitos previstos nas leis penais.
Aborto Legal Código Penal – Artigo
128
O acesso ao abortamento é permitido no Brasil em três casos:
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147 ADPF no 54, STF a) gravidez de risco à vida da pessoa gestante; b) gravidez resultante de violência sexual;141 e c) anencefalia fetal – conforme o Supremo Tribunal Federal decidiu em 2012.142 Nos três casos, o acesso ao abortamento legal é uma garantia às pessoas gestantes, não devendo as equipes de saúde atuarem com denuncismo ou apresentar obstáculos ao acesso desse direito. Para a realização do procedimento não se deve exigir autorização judicial, bem como também não se deve demandar a apresentação de boletim de ocorrência. O procedimento demanda sempre do consentimento da pessoa gestante, sendo necessário o consentimento de uma das pessoas genitoras ou responsáveis, no caso de crianças ou adolescentes, excluindo-se as situações em que haja urgência no atendimento, como nos casos em que há risco de vida iminente. A objeção de consciência é permitida à profissional, todavia, esse pode ser limitado em casos de urgência ou quando não há outra profissional para fazer o atendimento. É direito da pessoa gestante ser encaminhada, inclusive com fornecimento de transporte, ao serviço de referência mais próximo, ou ser atendida por outra profissional. Quaisquer complicações de ordem moral, física ou psicológica em decorrência de omissão de profissional ou do Equipamento de saúde, poderá ocasionar responsabilização pessoal e/ ou institucional.
Punição ao “Estupro Corretivo”
Lei no 13.718, de 24/09/2018
Essa lei alterou o Código Penal tornando mais severa a pena de crimes sexuais quando, buscam controlar o comportamento social ou sexual da vítima (estupro corretivo, artigo 226, b), e/ou contam com o concurso de 2 (dois) ou mais agentes (estupro coletivo, artigo 226, a). Essa garantia busca proteger especialmente grupos mais vulnerabilizados ao chamado estupro corretivo, quando o estupro busca justificar-se pelo controle do comportamento sexual da vítima, e/ou apresentar-se como “cura” para a identidade sexual da mesma. Pessoas LGBTIA+ são com mais constância vítimas dessa prática, especialmente pessoas assexuais, homens trans, mulheres lésbicas e mulheres bissexuais.
Criminalização da LGBTI+fobia
Lei no 7.716/1989 (Lei do Racismo), por
Qualquer tipo LGBTI+fobia é reconhecida como crime. Alguns estados brasileiros possuem 141 Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde (Brasil). Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica [internet]. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2011 [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento_norma_tecnica_2ed.pdf 142 Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde (Brasil). Atenção às mulheres com gestação de anencéfalos: norma técnica [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2014 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_mulheres_gestacao_anencefalos.pdf
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decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI por Omissão no 26 e no MI no 4.733
legislações específicas que punem também administrativamente a LGBTI+fobia.
Punição da LGBTIA+fobia
Lei Estadual no 10.948, de 05/11/2001
Pune administrativamente manifestações de homofobia, bifobia e transfobia no Estado de São Paulo. Nome social Portaria MS no 1.820, de 13/08/2009 (Carta de Direitos dos Usuários da Saúde), Parecer CNE/CP no 14/2017 e Resolução CNE/CP no 1/2018, Decreto Nacional no 8.727, de 28/04/2016, Nota técnica MS/2014 (impressão do CNS com nome social), Decreto Federal no 8.727, de 28/04/2016, Decreto Estadual no 55.588 de 17/03/2010, Decreto Municipal no 58.228, de 16/05/2018
Uso do nome social nos serviços de saúde, nas instituições de ensino e no âmbito da administração pública. Algumas áreas técnicas também têm legislações específicas que obrigam o uso de nome social, muitas inclusive no âmbito da administração privada. O nome social é qualquer nome pelo qual a pessoa queira ser chamada no serviço de saúde, independentemente aos seus documentos civis ou a qualquer julgamento que profissionais de saúde tenham sobre esse nome. É importante perguntar com quais pronomes (femininos, masculinos ou neutros) a pessoa quer ser tratada. (ver Abordagem) O nome social deve ser utilizado em todos os formulários usados no serviço (prontuário, receitas, encaminhamento, exame etc.) e o nome de registro deve constar somente no campo específico da ficha de identificação.
Nome social no município de São Paulo, com
inscrição pós- morte em lápides.
Decreto Municipal no 58.228, de 16/05/2018
Além de regulamentar o uso de nome social por pessoas trans, o decreto garante ainda que o nome social seja incluído em todos os registros, incluindo lápides, pelo Serviço Funerário do Município de São Paulo, bem como os cemitérios particulares localizados no território do Município, mediante solicitação simples requerimento por qualquer membro da família da pessoa falecida.
Autorização de uso de Nome Social no documento de Identidade, inclusive por pessoas com menos de 18 anos.
Decreto Federal no 9.278 de 05/02/2018, e o Decreto Federal 10.977 de 23/02/2022, que regulamentam a Lei no 7.116 de 29/08/1983
Em seu artigo 8o, o Decreto informa sobre as informações que serão incluídas no documento de identidade mediante requerimento da pessoa, destacando em seu inciso XI, o nome social. O nome social será incluído mediante requerimento escrito da pessoa interessada, com a expressão “nome social”, sem prejuízo da menção ao nome do registro civil no verso da Carteira de Identidade, e sem a exigência de documentação comprobatória, podendo ser excluído por meio de requerimento escrito da pessoa interessada. A autorização é extensível também para menores de idade, devendo as pessoas responsáveis realizar o requerimento por escrito.
Divulgação do direito ao nome social
Decreto municipal no 58.228/2018
Divulgação de cartaz sobre direito ao nome social em todas as unidades de saúde do município de São Paulo.
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Uso de nome social por adolescentes nos serviços de saúde
Nota técnica da SMS no 01, de 24/01/2023
Uso de nome social por adolescentes entre 16 e 18 anos nos equipamentos de saúde da SMS
Retificação de registro civil para pessoas trans
Provimento CNJ no 73/2018
Mudança de prenome e retificação de gênero (campo “sexo”) nos documentos de registro civil
Acesso de pessoas trans a transformações corporais pelo SUS
Portaria GM/MS no 2.803, de 19/11/2013 ("Processo Transexualizador" no SUS)
Hormonização e algumas cirurgias específicas, para pessoas trans que desejam transformações corporais.
Pedido de refúgio para pessoas estrangeiras LGBTIA+
Concessões prévias Embora não exista como critério nas normas, desde 2010, o Brasil tem aumentado os casos de concessão de refúgio para pessoas estrangeiras que sejam perseguidas em seus países de origem, por serem LGBTIA+. Às esposas e maridos de pessoas estrangeiras morando no país é direito o visto temporário para reunião familiar.
Saúde de pessoas LGBTIA+
Portaria MS no 2.836, de 01/12/2011 (Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)
Acesso da população LGBTIA+ aos cuidados em saúde, com atenção às demandas específicas e vulnerabilidades.
Despatologização CID-10 (OMS, 1990) CID-11 (OMS, 2018)
A OMS excluiu de sua lista de doenças a homossexualidade (CID-10) e as transgeneridades/transexualidades (CID-11).
Proibição de terapia de reversão sexual
Resolução CFP no 1/99, de 22/03/1999 (Normas para atuação de profissionais de psicologia em relação à orientação sexual)
Proíbe que profissionais de psicologia realizem ações para alteração da orientação sexual ou colaborem com serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Atuação profissional de psicólogas no atendimento às pessoas intersexo
Nota técnica e orientativa do CRP SP
Busca garantir que pessoas intersexo, dentro do processo psicoterapêutico, tenham preservada sua dignidade e autonomia
Atuação de psicólogas em relação às bissexualidades e demais orientações não monossexuais
Resolução CFP no 8, de 17/05/2022
A Resolução estabelece regras de atuação para profissionais da Psicologia em relação às
bissexualidades e demais orientações não- monossexuais, reconhecendo a legitimidade das
bissexualidades e demais orientações não- monossexuais, não as vinculando às
homossexualidades ou às heterossexualidades.
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União estável entre pessoas de mesmo sexo de registro
Julgamento do STF da ADI no 4277 e da ADPF no 132, em 05/05/2011
Mesmos direitos já reconhecidos a casais formados por uma mulher e um homem, inclusive pensão e adoção.
Casamento entre pessoas de mesmo sexo de registro
Resolução do CNJ no 175, de 14/05/2013
Obriga cartórios de todo o país a celebrar o casamento civil e a converter em casamento, caso seja desejado, a união estável entre pessoas de mesmo gênero/sexo de registro.
Planejamento familiar
Lei 9.263, de 12/010/1996 - regula o § 7o do art. 226 da Constituição Federal; Lei 9.263, de 12/01/1996 (Lei do Planejamento Familiar), Política Nacional de Planejamento Familiar (MS, 28/05/2007)
Planejamento familiar como um direito de toda pessoa cidadã e como um dever do Estado.
Reprodução Portaria MS/GM no 426, de 22/03/2005 - Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana
Cuidados com infertilidade e acesso à reprodução humana assistida pelo SUS.
Reprodução para mulheres que se relacionam com mulheres
Resolução CFM no 2.168/2017, substituída pela Resolução CFM no 2320/2022
Permitidas técnicas de reprodução assistida a pessoas que solicitarem, inclusive relacionamentos de pessoas de mesmo gênero (inclusive gestação compartilhada, com transferência do oócito fecundado para a parceria com útero).
Reconhecimento da Parentalidade Socioafetiva
Provimento CNJ n. 63, de 14/11/2017, alterada pelo Provimento CNJ n. 83 de 14/08/2019
Dispõe sobre a possibilidade do reconhecimento da parentalidade socioafetiva perante os registradores civis. O reconhecimento socioafetivo perante órgão registrador civil somente pode ocorrer para pessoas maiores de 12 anos; para menores de 12 anos, é necessária a via judicial. Casais LGBTIA+ que não tenham realizado procedimentos de reprodução assistida, com filhos ou filhas menores de 12 anos, somente podem realizar o reconhecimento da Parentalidade Socioafetiva por via judicial.
Adoção Lei no 12.010/2009 (Nova Lei da Adoção) e Decisão do STJ REsp 889852 RS/2006, de 27/04/2010
Adoção individual por pessoas maiores de 18 anos e conjunta por pessoas casadas ou em união estável. STJ decidiu pela permissão de adoção por casais de pessoas de mesmo sexo de registro
Direitos de adolescentes em saúde
ECA, Crianças e adolescentes têm direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo identidade, autonomia, valores e ideias, direito de
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Marco legal: saúde, um direito de adolescentes, Diretrizes nacionais para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens
opinião e expressão, de buscar refúgio, auxílio e orientação. Têm direito a atendimento privativo e sigiloso, sem a presença de familiares e responsáveis. A exigência dessa presença pode ser caracterizada como lesão a esse direito fundamental.
Acesso de Pessoas Trans aos sistemas e instituições de ensino
Resolução CNCD/LGBT no 12, de 16/01/2015
Resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais, estabelecendo parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e pessoas trans nos sistemas e instituições de ensino. É assegurado, inclusive, o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero de acordo com a identidade de gênero da pessoa.
Doação de Sangue (embora pensasse em homens cis, havia impedimento prático de que mulheres trans e travestis doassem sangue)
Julgamento do Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no. 5.543
O STF considerou inconstitucionais dispositivos de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que excluíam do rol de pessoas habilitadas para doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes". Apesar das normas citarem apenas homens cis, em extensão ao entendimento equivocado da sigla HSH, mulheres trans e travestis eram atingidas por essas normas.
Proteção a mulheres vítimas de violência doméstica
Lei no 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), também aplicada a vítimas trans e travestis conforme o STJ, e com base na doutrina especializada e na Recomendação no 128 do CNJ
Mecanismos para coibir e agir em casos de violência doméstica e familiar contra mulheres cisgênero, mulheres trans e travestis, mesmo que a violência seja perpetrada por outra mulher.
Doação de sangue por pessoas com pênis que realizam sexo com pessoas com pênis
Guia sobre a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 399, de 07/07/2020
A triagem de doação de sangue não pode considerar como critério de restrição a pessoa com pênis que faz sexo com pessoa(s) com pênis
Defensoria Pública
LCP 80, de 12/01/2004 (Lei orgânica da Defensoria Pública), acrescida da Lei Complementar no 132/2009)
Orientação jurídica e defesa das pessoas necessitadas, vítimas de discriminação, opressão ou violência. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui o Núcleo Especializado de Defesa da Desigualdade e da Igualdade Racial (NUDDIR), que oferece assistência independentemente à situação econômica.
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Cirurgias genitais/gonadais em crianças intersexo
Resolução CFM 1.664, de 13/05/2003
ECA
Responsáveis legais devem ser devidamente informadas e têm autonomia para decidir e negar cirurgias que são consideradas mutilatórias (estritamente estéticas, que não tenham função funcional na infância) Equipes que realizam cirurgias devem ser especializadas. Família tem tutela sobre a criança, que é cidadã de direito sobre seu corpo.
Declaração de Nascido Vivo (DNV) para filha de pessoas LGBTIA+
Liminar na ADPF 787 - decisão do Ministro Gilmar Mendes, de 28/06/2021
Solicitou ser utilizado os termos “parturiente” (e não generificado como “mãe”) e “responsável legal” (e não generificado como “pai”)
Declaração de Nascido Vivo (DNV) para bebês Intersexo, com DDS ou com genitália atípica
Lei no 12.662, de 5/06/2012
Preenchimento da Declaração de Nascido Vivo para bebês intersexo, com DDS ou com genitália atípica, através do uso da opção “ignorado” no campo “sexo”
Registro civil de pessoas intersexo e preenchimento de declaração de óbito (DO)
Provimento 122, de 13/08/2021 do Conselho Nacional de Justiça
Utilização do termo “ignorado” para preenchimento do campo “sexo” em registro civil (certidão de nascimento, casamento e óbito) de pessoas intersexo, a partir de DNV e DO preenchidos dessa maneira. Não há obrigatoriedade de que o campo “sexo” seja alterado em qualquer momento. Responsáveis pela criança têm autonomia para fazer a troca, mas a partir dos 12 anos de idade, a própria pessoa deverá ser ouvida.
Possibilidade de acesso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para procedimentos de saúde pela população LGBTIA+
Jurisprudência do STJ e de Tribunais Diversos
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui jurisprudência no sentido de entender que os casos previstos em lei para o saque do FGTS não são restritivos, mas exemplificativos. Nesse sentido, considerando que a legislação faz previsão ao saque motivado por tratamento grave de saúde, a Jurisprudência pátria passou autorizar que pessoas LGBTIA+ realizassem saque com o intuito de custear procedimentos de acesso e garantia de saúde, bem como planejamento familiar, como no caso específico de custeio para o procedimento de fertilização assistida, por casais com apenas útero. Essa possibilidade deve ser informada e apresentada como possibilidade de estratégia e busca de acesso e garantia de saúde ou parte do planejamento familiar para pessoas LGBTIA+.
Ouvidoria dos serviços públicos
Lei no 13.460, de 26/06/2017
Participação, proteção e defesa dos direitos de pessoas usuárias de serviços públicos da administração pública
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Proteção de pessoas vivendo com HIV (PVHIV) e pessoas vivendo com aids.
Lei no 12.984, de 02/06/2014 Lei Estadual no 11.199, de 12/07/2002
Define o crime de discriminação de pessoas vivendo com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de aids. Proíbe a discriminação a pessoas vivendo com HIV ou às pessoas vivendo com aids e dá outras providências.
Garantias de pessoas LGBTIA+ no sistema penitenciário
Resolução CNJ no 348, de 13/10/2020, alterada pela Resolução CNJ no 366, de 20/01/2021
Estabelece diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, trans, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente.
Garantias de pessoas LGBTIA+ no sistema penitenciário
Resolução CNPCP no 4, de 29/06/2011
Recomenda aos Departamentos Penitenciários Estaduais ou órgãos congêneres seja assegurado o direito à visita íntima à pessoa presa, recolhida nos estabelecimentos prisionais.
Garantias de pessoas LGBTIA+ no sistema penitenciário
Resolução SAP no 153, de 28/06/ 2011
Regulariza visita íntima entre pessoas de mesmo gênero para pessoas presas.
Garantias de pessoas LGBTIA+ no sistema penitenciário
Resolução SAP no 11, de 30/01/2014
Dispõe sobre a atenção a travestis e pessoas trans no âmbito do sistema penitenciário.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim e Walter Mastelaro Neto
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Acolhimento e abordagem
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155 O acolhimento não se restringe aos momentos de consultas e pode ser entendido como uma postura do serviço de saúde frente a uma pessoa ou população com a qual tem contato. A seguir são apresentadas reflexões sobre possibilidades de abordagem em diferentes contextos.
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Individual
A abordagem realizada por profissionais de saúde a uma pessoa deve ser centrada na percepção dela sobre necessidades em saúde e no estabelecimento de um plano de cuidados que seja compartilhado com ela. A prática de diferentes estratégias de organização de uma consulta colabora para que o espaço da consulta cumpra seu objetivo de oferecer cuidado em saúde e ser menos violento, como o Método Clínico Centrado na Pessoa,143 a Consulta em 7 Passos,144 a abordagem de vivências ou história de vida através da linha do tempo,145 abordagem de relações a partir do mapa de rede social,146 do círculo social, construção de ecomapa,147 familiograma etc. A abordagem de todas as questões relativas à sexualidade deve ser voltada para a percepção da pessoa em relação ao assunto, às suas identidades e às suas vivências, com garantia de autodeterminação identitária e de autonomia. Aspectos que não são justificadamente relevantes para o cuidado em saúde e que têm a curiosidade pessoal da profissional como única motivação de questionamento não devem ser abordados, pois tendem a estigmatizar e violentar a pessoa atendida. Da mesma forma, ao oferecer abordagem de um aspecto que não é trazido pela pessoa, é necessário solicitar consentimento e efetivamente realizar a oferta desse diálogo, sem que o tema se torne compulsório ou uma condição para a continuidade do cuidado disponibilizado a ela. Importante lembrar que profissionais de saúde dispõem de um status social que afeta a percepção de pessoas usuárias de saúde sobre a hierarquia estabelecida durante uma consulta ou conversa, mesmo que essa hierarquia não seja desejada por profissionais de saúde. Portanto, o parâmetro de percepção de constrangimento de uma pessoa durante uma consulta não pode se restringir à negativa dela em responder uma pergunta ou declarar-se constrangida e cabe a profissionais de saúde atentar para suas ações. As percepções sociais de gênero e todas as suas normatividades atreladas, como a cisnormatividade ou a heterossexualidade compulsória, se reproduzem no trabalho em saúde com práticas que invisibilizam as diferentes nuances da sexualidade das pessoas usuárias de serviços de saúde. Por exemplo, há uma tendência de profissionais de saúde ignorarem a saúde reprodutiva de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade
143 Stewart M, et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico [recurso eletrônico] Trad. Burmeister A, Rosa SMM. Rev. técnica: Lopes JMC. 3a ed. Porto Alegre: Artmed; 2017. 144 Ramos V, et al. A consulta em 7 passos. Lisboa: Focom XXI, Lda.; 2008 Set. 145 Bodenhamer BG, Hall LM. Adventures with Time Lines. California: Meta Publications; 1998. 146 Sluzki CE. A rede social na prática sistêmica: alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo Livraria e Editora; 1997. 147 Lopes JMC. Consulta e abordagem centrada na pessoa. In: Gusso G; Lopes JMC (orgs.). Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012. v.I, 113 p.
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157 de gênero, focando inadequadamente o cuidado oferecido em uma suposta vulnerabilidade a IST vivida, ou na oferta de transformações corporais. Enquanto isso, os cuidados em saúde de mulheres cis tendem a ser centrados na abordagem de situações relacionadas à reprodução, enquanto práticas sexuais, prazer, sentimentos, relacionamentos e até desconfortos genitais são situações consistentemente negligenciadas.148 A heteronormatividade também costuma estar presente em serviços de saúde, assim como em toda a sociedade, invisibilizando orientações sexuais e vivências de sexualidade que não sejam hegemônicas. A saúde reprodutiva (ver Saúde reprodutiva), no entanto, também engloba aspectos da saúde sexual, portanto o cuidado em saúde sexual e reprodutiva deve ser direcionado para todas as diferentes camadas da sexualidade. Uma importante ferramenta para evitar esses equívocos é realizar uma abordagem individual não excludente, com confidencialidade e sob garantia de sigilo. Durante uma consulta a qualquer pessoa é importante oferecer abordagem a cada um dos aspectos atribuídos à sexualidade, que são independentes entre si, perguntando e/ou oferecendo espaço para que a pessoa possa dialogar sobre qualquer questão de sua sexualidade a qualquer momento, a fim de garantir que possíveis dúvidas, desconfortos ou adoecimentos possam ser experenciados. (ver Abordagem da sexualidade) Algumas práticas individuais de trabalhadoras da saúde também são importantes para acolher e possibilitar vinculação da pessoa atendida com o serviço. Trabalhadoras de saúde não devem agir como se algum aspecto da sexualidade fosse motivo de vergonha ou piada.149 O acolhimento recebido de cada pessoa trabalhadora do serviço precisa refletir essa proposta e para tanto são necessários constantes diálogos interprofissionais, com adaptação de fluxos e de formulários, para que a identidade de gênero e a orientação sexual das pessoas que buscam o serviço não seja negligenciada ou invisibilizada e para que também não vulnerabilize a pessoa a violências.150 É fundamental reconhecer e lidar com a violência institucional em todas as suas formas e mesmo quando ela não é intencional, seja ela reproduzida no tratamento às pessoas usuárias ou aplicada às pessoas trabalhadoras, para que o serviço de saúde seja efetivamente um ambiente seguro e que respeite direitos
148 Moscheta MS, Fébole DS, Anzolin B. Visibilidade seletiva: a influência da heterossexualidade compulsória nos cuidados em saúde de homens gays e mulheres lésbicas e bissexuais. Florianópolis: Saúde & Transformação Social 2016; 7(3): 71-83, 2016. 149 Amorim APA, Vieira RC, Borret RH, Campos T, Morelli TC. Abordagem integral da sexualidade e cuidados específicos da população LGBTI+. Em: Duncan BB et al. Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2022. 150 Ferri RL,Rosen-Carole CB, Jackson J,Carreno-Rijo E, Greenberg KB. ABM Clinical Protocol #33: Lactation Care for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus Patients. Breastfeeding Medicine 2020; 15(5). DOI: 10.1089/bfm.2020.29152.rlf
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158 humanos. O Núcleo de Prevenção à Violência (NPV) da unidade de saúde pode contribuir com o planejamento de cuidados e acompanhamento de cada caso de violência. O sigilo dos registros e das informações oferecidas a profissionais de saúde também deve ser respeitado, pois revelá-las a membros da família, da comunidade ou mesmo a demais profissionais sem consentimento expresso da pessoa atendida pode não só comprometer o direito ao sigilo dela, mas também sua segurança. Cabe a profissionais de cada unidade de saúde atentar para riscos de quebras de sigilo nos seus fluxos e trabalhar para evitar essas violências (por exemplo: acesso aos dados de prontuário por profissionais que não realizam atendimentos clínicos, disponibilidade de prontuários a outras pessoas atendidas ou familiares, atendimentos em espaços sem privacidade, consultórios que mesmo fechados permitem que outras pessoas vejam ou ouçam parte da consulta etc.). Quadro 18 – Exemplos de erros comuns de abordagem individual e abordagens preferenciais
Evitar Preferir
Perguntas e uso de formulários com concepções binárias, como: gênero “mulher ou homem” sexo de registro “feminino ou masculino” orientação sexual “heterossexual ou homossexual”
Considerar também variações não binárias, como: outras identidades de gênero ou a ausência de gênero sexo não definido e pessoas intersexo bissexualidade, pansexualidade, polissexualidade e assexualidade
Perguntas e formulários heteronormativos como: “mãe e pai”
Utilizar o termo “filiação”
Desconsiderar as vivências da pessoa com sua sexualidade e não oferecer espaço para conversar sobre o assunto
Declarar à pessoa atendida que o serviço e profissionais de saúde estão disponíveis para conversar sobre quaisquer assuntos relacionados à sexualidade
Assumir que as pessoas não querem conversar sobre sexualidade
Perguntar se há algo sobre sexualidade que a pessoa gostaria de conversar e oferecer para que isso aconteça também a qualquer outro momento.
Que o fraldário esteja em um banheiro direcionado a um único gênero
Possibilitar que pessoas de qualquer gênero possam utilizar o fraldário
Assumir que o exame ginecológico é esperado pela pessoa
Quando o exame ginecológico for relevante para cuidado, oferecê-lo e explicar seu objetivo e seus passos
Assumir que a pessoa entende raciocínios clínicos e que está disposta a conversar sobre qualquer assunto com profissionais de saúde
Explicar motivos e pedir consentimento para fazer perguntas que aparentemente não estão relacionadas à consulta.
Examinar o corpo da pessoa sem comunicar-se com ela sobre o exame
Pedir consentimento para realizar qualquer exame físico, explicá-lo e, caso a pessoa não aceite, manter o acolhimento.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim e Guilherme Antoniacomi Pereira
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Familiar
Segundo o Dicionário Houaiss, a família é definida como "núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária".151 Este conceito é comemorado, uma vez que rompe com a chamada família moderna, que surge no século XVII enquanto uma estrutura cis heterossexual monogâmica, fundamento para a propriedade privada e ferramenta de controle social. Ao longo do tempo, apesar de caracterizada como o espaço de tutela da infância, de suporte ao longo da vida, de trocas afetivas e de aprendizado das regras sociais, esse modelo de família consolidou-se como legítimo para perpetuar a repressão e controle sobre membros que divergem da norma. Portanto, o cuidado à saúde das pessoas LGBTIA+ não pode ser realizado de forma deslocada de seus múltiplos contextos, principalmente o familiar, uma vez que os componentes deste podem estar relacionados ou ser a origem de problemas orgânicos ou psicossociais.152 Nenhum modelo de funcionamento familiar deve ser determinado como normal ou ideal para ser seguido, pois as famílias elaboram seu próprio regimento interno, que é diretamente influenciado pelos sistemas de crença, valores sociais, espirituais, de raça, classe, gênero e sexualidade através do tempo. A família é um subsistema da comunidade, da cultura e da sociedade mais ampla. Portanto, a vulnerabilidade social, a pobreza, a migração, o racismo, entre tantas outras intersecções, interferem diretamente na dinâmica familiar. Olhar para os sintomas e para a dinâmica familiar dentro de um contexto sistêmico faz com que as intervenções terapêuticas auxiliem as famílias a acolher e garantir a autonomia de cada um de seus membros, inclusive da pessoa LGBTIA+, bem como desenvolver a resiliência a tantos estressores. A abordagem familiar não se limita a convocar a família para uma reunião ou conferência. É possível realizá-la mesmo nos atendimentos individuais, principalmente para as pessoas LGBTIA+, já que a maioria delas têm a família como principal perpetuante de sofrimento psíquico. Para realizá-la, é necessário seguir alguns preceitos básicos: ● Profissionais de saúde precisam estar cientes de seus próprios preconceitos sobre funcionalidade familiar. Afinal, cada família é única e deve ser compreendida dentro de seu próprio regimento, não de um parâmetro externo, normativo.
151 Houaiss, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva; 2016. 152 Bork B, Santos TEC, Pereira GA. Abordagem familiar e psicossocial. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba (SP): Manole; 2021. p.75-186.
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160 ● Formular impressões ou hipóteses sobre a dinâmica de uma família só faz sentido se o objetivo for confirmar ou refutar as mesmas, sendo essencial desenvolver habilidades para fazê-lo. ● Num arranjo familiar, os membros estão em constante interação, nunca de forma unilateral, linear, mas circular, que se retroalimenta. A ação de X afeta Y, e, neste, surgem mudanças de comportamento e de comunicação, que, por sua vez, afetam X ou Z. ● Violência e abuso nunca devem ser normalizados, ainda que façam parte do regimento interno daquela família. Por isso, é fundamental saber demonstrar o quanto a atitude de uma pessoa é capaz de desrespeitar e invisibilizar a outra. É fundamental auxiliar o sistema familiar a desenvolver padrões de comunicação menos violentos ou abusivos.
Para começar, é fundamental demonstrar curiosidade e interesse pelas interações familiares, a fim de compreender o sintoma apresentado pelo indivíduo num contexto sistêmico. A própria entrevista clínica já é interventiva e pode despertar investigações para ajudar as pessoas a prestarem atenção em determinadas questões, convidando-as a refletir sobre elas. Seguem alguns exemplos de perguntas reflexivas e circulares que nos auxiliam nesta investigação:153 ● "Quando você está deprimida/com dor (sintoma), quem reage a isso primeiro? O que essa pessoa diz ou faz?" ● "Eu estou interessada em saber quando o sintoma não aparece. Quando é que o sintoma se manifesta menos?" ● "Quem está mais e quem está menos preocupada com esse problema?" ● "O que X realmente pensa sobre você vir aqui buscar ajuda? O que você acha que X imagina que se passa aqui?" ● "Como a sua relação com X e Y seria afetada se o seu problema melhorasse? Quais seriam as vantagens?" ● "Como a sua mãe descreveria o relacionamento entre você e o seu pai?" ● "Como eram as coisas antes e depois que o problema ocorreu?"
Por vezes, para dar continuidade a esta investigação curiosa, pode ser útil alguma representação gráfica ou entrevista semiestruturada. Para isso, dispomos de algumas ferramentas: familiograma, círculos familiares, PRACTICE, APGAR, entre outras.
153 Asen E, Tomson D, Young V, Tomson P. 10 minutos para a família: intervenções sistêmicas em Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.
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161
Familiograma O familiograma é uma ferramenta gráfica que surgiu com a necessidade de profissionais de saúde mapearem e visualizarem a família, sua constituição e patologias mais prevalentes dentro dela, mas hoje é reconhecidamente também um potente instrumento terapêutico. Ao construí-lo juntamente da pessoa, é possível despertar diversas percepções, assim como compreender as interligações entre os componentes da família, os padrões que se repetem, os cortes emocionais e o nível de diferenciação de cada indivíduo e sua influência. Encontram-se algumas representações coletadas na literatura brasileira e internacional e algumas sugestões para a realização de um familiograma não excludente. Apesar disso, nota-se grande cis heteronormatividade e monogramia nestes símbolos. Uma pessoa LGBTIA+ não precisa ser destacada em um familiograma pela sua orientação sexual ou por ser uma pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero, a não ser que essa informação seja tão importante quanto outras informações para aquele recorte transversal e momentâneo das relações traçadas. Nos exemplos a seguir, são sugeridas representações que podem ser utilizadas para representar indivíduos índice (a pessoa atendida) ou seus familiares, que tenham identidade de gênero não-binária, trans, travestis, intersexo, assexual, bissexual ou demais diversidades relacionadas à sexualidade. De toda forma, já que o familiograma é um instrumento a ser realizado com a pessoa, cabe a ela - e apenas a ela - definir como quer ser representada. Figura 4 – Formas que podem ser ofertadas para representação não excludente de pessoas LGBTIA+ em familiogramas.
Fonte: Ana Paula Andreotti Amorim e Guilherme Antoniacomi Pereira
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162 Alguns erros que devem ser evitados por profissionais de saúde ao se construir o familiograma: ● Realizá-lo sem a presença da pessoa, utilizando apenas de seu aspecto informativo, fornecendo dados à equipe ou ao serviço de saúde; ● Tirar suas próprias impressões e conclusões acerca das relações familiares; ● Iniciar a construção de forma acelerada, sem levar em conta o momento da pessoa para falar sobre sua família; ● De forma paradoxal, atrasar sua construção por barreiras ou tabus, bem como pela gestão do tempo; ● Estabelecer diferenciações na representação gráfica de pessoas LGBTIA+ em comparação às pessoas que não se identificam como parte dessa comunidade, o que leva à segregação e estigma; ● Representar pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero com um símbolo gráfico específico com o qual ela não se identifica, antes de ter dialogado com ela sobre sua representação no instrumento; ● Usar formas gráficas (círculo ou quadrado) para representar as características corporais da pessoa que são tradicionalmente relacionadas ao sexo, e não o seu gênero identitário - o qual é o mais relevante no convívio social e familiar.
Círculo Familiar É outro instrumento gráfico muito utilizado enquanto intervenção breve e visual para reunir, avaliar e trabalhar com informações da pessoa e da família. O objetivo desta metodologia é auxiliar a pessoa a conectar problemas atuais ou passados com pessoas e relacionamentos familiares. Versões mais modernas da ferramenta contemplam também a inserção da comunidade, cultura, interesses e religião. Desta forma, possibilita uma visão até mais ampliada que o familiograma e outros instrumentos de abordagem familiar em si, o que é uma vantagem para a população LGBTIA+, já que muitas famílias são escolhidas. O método consiste em convidar indivíduos a desenhar ou construir um diagrama esquemático das suas vidas, através de círculos. A profissional de saúde desenha um grande círculo em uma folha de papel e direciona a pessoa: ● O grande círculo representa a vida da pessoa no contexto atual. ● Pede-se para a pessoa desenhar círculos menores para representar todas as pessoas importantes a ela - familiares, amizades, inimizades, pessoas da vizinhança etc. - incluindo ela mesma. ● Deve-se colocar a inicial do nome de cada pessoa nos círculos menores.
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163 ● As pessoas podem estar dentro ou fora do círculo, tocando umas às outras, sobrepostas ou bem separadas. Podem ser pequenas ou grandes, dependendo da importância que a pessoa atendida atribui a elas (por qualquer que seja o motivo). ● Pode-se colocar também "áreas" importantes da vida - trabalho, lazer, religião, animais de estimação. ● Além disso, pode ser interessante colocar as condições de saúde ou problemas atuais, para facilitar a visualização interacional do sintoma. Figura 5 – Exemplo de um círculo familiar a ser construído pela pessoa atendida
Fonte: Guilherme Antoniacomi Pereira
Após poucos minutos de reflexão e construção do mesmo, o que favorece a livre associação e espontaneidade, a profissional pode começar uma série de perguntas também interventivas e circulares sobre o diagrama. Por exemplo:154 ● "Você se importa se eu lhe fizer algumas perguntas sobre este círculo?" ● "O que você acha desta imagem? Você está feliz com ela?" - referindo-se ao círculo todo, uma representação da vida. ● "Estou observando que este círculo está muito próximo daquele - você pode falar sobre isso?" ● "Tem alguma coisa que gostaria de mudar - não só na figura, mas talvez também na sua vida?" ● "Se você tivesse desenhado este círculo há alguns anos, quais seriam as diferenças?"
154 Asen E, Tomson D, Young V, Tomson P. 10 minutos para a família: intervenções sistêmicas em Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.
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164 ● "Existe um grande vazio na sua vida ali. O que isso significa? Você sente que quer fazer alguma coisa sobre isso?" ● "Vamos imaginar que por algum passe de mágica, conseguíssemos encolher este problema para torná-lo muito menor, mais fraco. Que coisas ou pessoas se tornariam maiores? Que relacionamentos poderiam tornar-se mais próximos ou mais distantes?" Vale lembrar que o objetivo central destas intervenções é convidar a pessoa para a reflexão. Em nenhum momento a profissional de saúde deverá forjar hipóteses que direcionam para o que é certo ou errado, ou que caiam num discurso normativo sobre as relações. É importante instigar reflexões para que os próprios sistemas individual e familiar busquem mudanças para atingir sua resiliência. Apgar familiar É uma ferramenta de avaliação da funcionalidade familiar e sua aplicação padrão acontece com a realização de leitura das sentenças descritas no quadro abaixo. Para cada sentença, a pessoa atendida atribui um conceito: "quase sempre" (2 pontos), "algumas vezes" (1 ponto) ou "nunca" (0 pontos). Assim, realiza-se a somatória: pontuação de 7 a 10 - família altamente funcional; 4 a 6 - família com moderada disfunção; 0 a 3 - família com disfunção acentuada.155
Quadro 19 – Componentes do apgar familiar e sentenças que receberão conceitos Componente da dinâmica familiar Sentença Adaptation (adaptação) Estou satisfeita com a ajuda que recebo da minha família,
sempre que alguma coisa me preocupa.
Partnership (participação) Estou satisfeita com a forma como a minha família discute assuntos de interesse comum e compartilha comigo a solução do problema.
Growth (crescimento) Acho que minha família concorda com o meu desejo de iniciar novas atividades ou de modificar meu estilo de vida. Affection (afeição) Estou satisfeita com o modo como minha família manifesta a sua afeição e reage aos meus sentimentos, como irritação, pesar e amor.
Resolve (resolução) Estou satisfeita com o tempo que passo com a minha família. Fonte: Guilherme Antoniacomi Pereira
155 Chapadeiro CA, Andrade HYSO, Araújo MRN. A família como foco da Atenção Básica à Saúde. Belo Horizonte: Nescon/UFMG; 2012.
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165 Nota-se, entretanto, padrões normativos de funcionalidade que o instrumento traz, sem levar em conta o que significa ser funcional ou disfuncional para cada família específica. Para ultrapassar essa barreira, sugere-se uma escuta ativa acerca das respostas individuais, para assim avaliar os padrões de comunicação, valores e crenças embutidos em cada uma delas.
PRACTICE É uma ferramenta de avaliação sistêmica, mas não só, já que também se torna uma intervenção terapêutica. As pessoas frequentemente buscam o serviço de saúde apresentando um problema, que pode ser um bom ponto de partida. Porém, profissionais de saúde podem querer se aprofundar em outros elementos que auxiliarão a pessoa a focar na resolução do mesmo. Esta ferramenta, apesar de longa e ampla para os limites de tempo e pressão assistencial da Atenção Primária à Saúde (APS), traz um esquema geral de avaliação da família. A profissional pode escolher se debruçar sobre uma ou duas dimensões em cada consulta ou até mesmo usar a palavra mnemônica como roteiro na elaboração de hipóteses e intervenções sobre aquele sistema.
Quadro 20 – Dimensões, composições e possibilidades de intervenção da ferramenta de abordagem familiar PRACTICE Dimensão do sistema Composição Possibilidades de Intervenção Presenting problem (Problema apresentado)
Problema em si, a natureza, a duração Resultado do problema Significado do problema Efeito do problema
Escutar o problema Destacar os efeitos em todos na família Possibilitar que membros da família falem sobre o problema
Roles and structure (Papéis e estrutura)
Papel do problema Papéis de gênero Papel de cuidadora Papel de provedora Papel das profissionais Autoridade Responsabilidades de cada membro
Conversar sobre a mudança do papel da pessoa-foco Considerar novos papéis Apontar a estrutura de poder Construir familiograma
Affect (Afeto) Próximo Distante Envolvimento diário Respostas de emergência Sentimentos Acolhimento
Mostrar empatia Possibilitar que uma variedade de sentimentos seja expressa
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166 Dimensão do sistema Composição Possibilidades de Intervenção Communication (Comunicação)
Verbal ou não verbal Direta ou indireta Conteúdo ou processo
Facilitar comunicação aberta Desafiar a conspiração do silêncio/questões inconclusas Desafiar coalizões veladas
Time in life cycle (Momento no ciclo de vida)
Transições Efeito do problema nas transições
Discutir questões eminentes da mudança para toda a família Discutir cenários alternativos
Illness in family (Doença na família)
Crenças/medos sobre doença ou problema Padrões de doença ao longo das gerações Relação com profissionais de saúde Conexões com roteiros, crenças e mitos
Falar sobre medos e crenças e as suas relações com experiências passadas Falar sobre como obter o que há de melhor dos serviços
Coping with stress (Enfrentamento do estresse)
Estratégias de enfrentamento que a família possui
Descobrir padrões de enfrentamento Rever as estratégias
Ecology (ambiente, rede de suporte)
Rede de apoio Questões raciais e étnicas Crenças religiosas Trabalho Lazer Finanças
Apontar interseccionalidades Trabalhar em equipe e em rede Abordagem comunitária
Fonte: Adaptação de Bork B et al (2021) e Asen E et al (2012)156157
156 Bork B, Santos TEC, Pereira GA. Abordagem familiar e psicossocial. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba (SP): Manole; 2021. p.175-186. 157 Asen E, Tomson D, Young V, Tomson P. 10 minutos para a família: intervenções sistêmicas em Atenção Primária à Saúde. Porto Alegre: Artmed; 2012.
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Considerações sobre constituição familiar
Família de Origem A falta de informação e os preconceitos culturais fazem com que grande parte das famílias brasileiras tenham dúvidas, dificuldades e até rejeição quando se vêem diante de membros familiares que se mostrem LGBTIA+ e saiam do padrão predominante cisheteronormativo. Nesse sentido, não é incomum que familiares acreditem que esses indivíduos que assim se apresentam sejam vistos como problemáticos e que precisem algum tratamento para “voltarem à norma”, ou seja, para seguirem o padrão de identidade cisgênero e parceria homem-mulher. Isso pode ocorrer com a busca de serviços de saúde com demandas de cuidados tanto de aspectos físicos, quanto de saúde mental. Nesse sentido, cabe salientar que uma das atuações de profissionais de saúde deve ser a elucidação sobre a normalidade das vivências e identidades LGBTIA+, salientando que não são problemas de saúde, mas diversidades humanas. Deve ser realizado apoio à saúde mental da família, para que possam criar mecanismos para conviver com essa diversidade em seu grupo, assim como orientações gerais e específicas de promoção à saúde relativos à faixa etária da pessoa em questão, seja criança ou adolescente. Assim, mães, pais, pessoas cuidadoras e familiares de crianças e adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem recorrer a serviços que oferecem cuidados à saúde mental ou a cuidados específicos para essa população, para que possam ser promovidos direitos e para que possam discutir a convivência junto à criança em casa, na escola, etc. Da mesma forma, mães, pais, pessoas cuidadoras e familiares de adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem procurar serviços para acompanhamento quanto às mudanças da puberdade, aos aspectos relacionados à saúde física e mental e demandas relativas a acompanhamento clínico e hormonal; bem como familiares de adolescentes LGBTIA+ podem receber orientação de como educar sobre aspectos da sexualidade e, em especial, à promoção do início das práticas sexuais seguras, sem riscos com relação a ISTs e gestações não planejadas. (ver Adolescência) Familiares de pessoas adultas LGBTIA+, além do apoio para entender e saber lidar com a diversidade LGBTIA+ podem receber orientação para divulgar os serviços e especificidades de acolhimento e temáticas importantes para membros familiares que vivenciem diversidades de quaisquer aspectos da sexualidade, inclusive de prevenção de situações de violência e LGBTIAfobia.
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Constituição familiar a partir de Famílias Escolhidas As famílias podem constituir-se efetivamente independentemente de seus núcleos familiares de origem. Esse fenômeno não é exclusivo de pessoas LGBTIA+, mas costumam denotar importante parte de seus vínculos. Devido às grandes taxas de exclusão social, violência e abandono social, é comum pessoas LGBTIA+ agregarem-se e reconhecerem-se como núcleos familiares, de maneira específica ou não. Por exemplo, o título de mãe, filha, prima ou irmã pode ser utilizado entre pessoas que não possuem laços consanguíneos e nem compartilharam entre si suas primeiras vivências em família, mas que se adotam para suporte emocional, social, prático e/ou financeiro. As famílias que são constituídas independentemente a um núcleo familiar tradicional devem ser reconhecidas e legitimadas pelos serviços de saúde, sem que sejam encaradas como descartáveis ou desimportantes. Assim como em famílias de origem, a convivência com uma família escolhida pode resultar na criação de laços que oferecem suporte e resiliência, assim como podem resultar em relacionamentos que geram sofrimentos. Importante lembrar que os relacionamentos não são estáticos e que se transformam constantemente. Portanto, independentemente à origem da constituição familiar, profissionais de saúde precisam ter abertura para compreender sua história, seu significado, sua dinâmica e suas potencialidades.
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Comunitária
O acolhimento e a abordagem relativa à sexualidade iniciam-se muito antes do momento de uma consulta. Para que as pessoas possam compreender que o tema é valorizado pelo serviço, é importante comunicar à comunidade que a unidade de saúde é um ambiente que acolhe as diversidades da sexualidade, o que pode ser feito ativamente (a partir de conversas em grupos, atividades em sala de espera, nas reuniões do conselho gestor local ou em interações em ambientes externos à sede da unidade) ou passivamente (através de cartazes, panfletos ou símbolos LGBTIA+). (ver Ambiência, ACS)
Território Tão importante para a APS, o território vai muito além do conjunto de ruas e espaços físicos que compõem a área de abrangência de uma UBS. Ele é dinâmico e vivo, revelando, inclusive, as relações de poder e quais são o fluxo de comunicação da comunidade. Por isso, ao mapeá-lo, a equipe de saúde deve identificar quais grupos, famílias e indivíduos estão expostos a riscos e vulnerabilidades, bem como as lideranças e grupos comunitários que acolhem ou oprimem a diversidade sexual e de gênero. É importante conhecer e se fazer presente nos locais de frequentação das pessoas LGBTIA+, como praças, parques, casas de acolhimento, realizando ações e visitas
sistemáticas para a construção de vínculo com a equipe. Além disso, no mapeamento, deve- se levar em conta os locais de vulnerabilidade e risco, como cenas de prostituição e de uso
de substâncias, bem como os de maior repressão, como algumas comunidades religiosas, grupos violentos, entre outros. A equipe deve, continuamente, analisar os indicadores de saúde, gênero e sexualidade do seu território, uma vez que, se as populações marginalizadas ainda não estão integradas ao serviço, pode ser que ainda estejam invisibilizadas.158 Espaços coletivos de produção de cuidado Toda coletividade deve estar envolvida na promoção da saúde integral da população LGBTIA+, de forma a promover e facilitar a inserção social dessas pessoas, favorecendo a autoestima, o autocuidado e a ida a serviços públicos de seu interesse, inclusive os de saúde. Associações de bairro, ambientes comunitários, grupos locais e lideranças podem ser incentivadas atuar de forma a combater a discriminação por sexo/gênero e promover cidadania. Muitas vezes, podem buscar discutir o tema da discriminação, procurando levar 158 Rodrigues FTT, Paiva M, Sarno MM, Lopes Junior A. Abordagem comunitária e educação em saúde. In: Ciasca SV, Hercowitz A, Lopes Junior A. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba (SP): Manole; 2021. p.157-168.
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170 esclarecimento e sensibilizar as pessoas para os abusos e sofrimentos causados pelo preconceito contra as pessoas LGBTIA+, que podem ocorrer inclusive dentro da própria família. Espaços de circulação jovem, incluindo praças e quadras da comunidade, ou outros pontos de encontro de adolescentes e jovens, podem ser utilizados para a abordagem, reunião e atividades que façam a promoção da saúde integral LGBTIA+, inclusive de discussão de preconceito contra pessoas com diversidade sexual e de gênero, visando ampliar a percepção e a cidadania jovem e adolescente. Escolas devem ser incentivadas pelos serviços de saúde a aderir a estratégias e programas de promoção à saúde, inclusive os que recebem apoio financeiro do Ministério da Saúde em parceria como o Ministério da Educação, como o PSE (Programa Saúde na Escola). Este programa visa o público infantil, adolescente, jovem e adulto, favorecendo a criação de ações e a formação de redes dos setores de Educação junto à Atenção Primária à Saúde municipal, o que inclui várias temáticas de saúde, incluindo Direitos Humanos. Dado que os Direitos Humanos incluem a promoção da igualdade de direitos para todas as pessoas e o respeito à diversidade, além dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, esses projetos podem propor ações tanto com relação à promoção da cidadania, como de combate a qualquer preconceito relativo à diversidade de sexualidade e orientação sexual e violências correlatas, assim como à violência psicológica, física e sexual, além de poder encampar a promoção do cuidado em saúde sexual e reprodutiva, o que inclui a prevenção de IST e orientações contraceptivas. Assim, a partir da pactuação entre secretarias de saúde e educação, é possível o desenvolvimento de propostas de ação em escolas selecionadas, a partir de uma diversidade de estratégias ou definições feitas por essas próprias secretarias, considerando o seu contexto epidemiológico, realidade local, equipe e parcerias envolvidas. Tal projeto submetido ao programa recebe recursos para o seu desenvolvimento. Também é possível incluir no PSE redes locais de assistência social e outras entidades que atuem para a finalidade do projeto proposto, beneficiando a formação de redes que se apoiem mutuamente para a promoção da saúde e dos Direitos Humanos. Controle social
“A expressão ‘controle social’ tem sido alvo das discussões e práticas recentes de diversos segmentos da sociedade, como sinônimo de participação social nas políticas públicas” (Ferreira, 2009).159
159 Ferreira MVC. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz; 2009.
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171 A Lei 8142/90 dispõe principalmente sobre a participação da Comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da Saúde. Há duas instâncias de participação da Comunidade no SUS, que ocorrem em âmbitos Federais, Estaduais e Municipais: Conferências de Saúde e Conselhos de Saúde. As Conferências de Saúde avaliam a situação da Saúde e propõem diretrizes para a formulação de políticas de Saúde nos níveis correspondentes. Devem acontecer a cada quatro anos, através de convocação pelo Poder Executivo, pela própria Conferência ou ainda pelo Conselho de Saúde. Devem ser compostas por vários segmentos sociais – pessoas usuárias de Serviços de Saúde, trabalhadoras da Saúde, prestadoras de serviços e governo, numa proporção de 50% de usuárias e 50% do conjunto das demais instâncias (25% de trabalhadoras da saúde e 25% de gestoras e prestadoras de serviços). Os Conselhos de Saúde atuam na formulação de estratégias e controle da execução da política de Saúde na alçada correspondente, e também nos aspectos econômicos e financeiros. Têm a mesma composição da Conferência de Saúde (pessoas usuárias, trabalhadoras, prestadoras de serviços e governo), possuem caráter permanente e deliberativo, eleições a cada dois anos, regimento próprio aprovado pelos seus membros e decisões homologadas pela chefia do poder constituído em cada esfera do governo. A participação de pessoas trans, travestis e com outras vivências de variabilidades de gênero em Conferências e Conselhos de Saúde deve ser efetivada para que as necessidades de saúde deste segmento populacional sejam amplamente discutidas, respeitadas, melhoradas e controladas em sua implementação. No âmbito dos Conselhos de Saúde locais, deve haver incentivo para que pessoas Conselheiras Gestoras tenham ciência dos preconceitos, exclusões, estigmas e diversas formas de violência perpetuadas ao longo de décadas pela sociedade, para que sejam ampliadas as discussões sobre inclusão e acesso à saúde integral para esta população. Torna-se essencial estimular a participação deste segmento populacional a partir dos Conselhos locais para o exercício do Controle Social nas decisões de Saúde.
Intersetorialidade Muitas demandas podem atravessar o cotidiano da população LGBTIA+, portanto o trabalho em rede intersetorial é um importante ponto de apoio e de inclusão de novos atores no enfrentamento aos preconceitos (LGBTIA+fobia, racismo, machismo, xenofobia) e/ou violências específicas encaradas por pessoas LGBTIA+. A identificação, compreensão e articulação para construção de uma rede de serviços potencializa as possibilidades de
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172 cuidado e permite que profissionais de saúde atuem com dentro de uma perspectiva de validação do território que a pessoa ocupa e de suas vivências. Desenvolver estratégias de cuidado interinstitucionais e formar redes de cuidado a pessoas vítimas de LGBTIA+fobia (preconceito e/ou violência específicos a pessoas LGBTIA+) são algumas das necessidades para a coordenação do cuidado e o atendimento longitudinal dessa população. A interlocução com instituições de ensino, com serviços de assistência social, com setores de defesa a direitos específicos, com instâncias do controle social e a participação na formulação de políticas públicas são importantes na construção de redes locais para suporte. A formação e manutenção dessas redes locais são parte do trabalho da Atenção Primária à Saúde. No município de São Paulo, existem alguns serviços que constituem uma rede ampliada para acesso e suporte a Direitos da população LGBTIA+. Esses serviços podem ser acessados diretamente pela população e/ou podem colaborar com profissionais de saúde na formação de redes de suporte locais: • Centros de Cidadania LGBTI; • Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD); • Defensoria Pública Estadual – Núcleo de Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial (NUDDIR); • Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância - DECRADI (Polícia Civil); • Delegacias de Defesa da Mulher (DDM); • Rede de Atendimento à Mulher; • Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro POP); • Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); • Controle Social (Conselho Municipal de Políticas LGBT, Conselho Estadual dos Direitos da População LGBT de São Paulo, Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT); • Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Cidade de São Paulo – Coordenação de Políticas para LGBTI; • Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de SP – Coordenação de Políticas Para a Diversidade Sexual.
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Interprofissional
Ambiente de trabalho A segurança percebida por profissionais LGBTIA+ no seu ambiente de trabalho ou de aprendizado é capaz de interferir e pautar o seu relacionamento profissional/acadêmico dentro do serviço de saúde, impactando assim na assistência prestada a todas as pessoas. Há tendência de que violências sutis dentro de um serviço de saúde sejam relevadas por profissionais e mesmo por pessoas usuárias de saúde. No entanto, não passam despercebidas e geram uma cultura de medo e silenciamento, criada nos espaços formais de trabalho e também nos informais (como intervalo para o almoço, confraternização da equipe, reuniões etc.). Pessoas que atuam em serviços de saúde devem refletir em como suas ações, comentários e opiniões interferem no resultado final de seu trabalho perante a população LGBTIA+ atendida, mas também perante colegas de profissão. A naturalização de violências junto a demais profissionais de saúde se reverbera em violência reproduzida à população, assim como se reflete na diminuição da capacidade de acolhimento de pessoas usuárias que apresentem demandas equivalentes às experienciadas em outros espaços.
Educação Permanente Todas as profissionais envolvidas no cuidado de pessoas LGBTIA+ são responsáveis em manter-se atualizadas em relação às evidências científicas e devem compartilhar seu conhecimento com demais membros da equipe. A troca de informações e o matriciamento, entre profissionais e entre os diversos equipamentos de saúde que formam redes de cuidado, podem servir para sensibilizações e capacitações específicas, mas também para construção coletiva de processos de trabalho inclusivos e que respeitem as competências e habilidades de diversas áreas profissionais. A Política Nacional de Humanização gerou muitas publicações que auxiliam a organizar processos de trabalho melhores e mais integrados. A Secretaria Municipal de Saúde, as Coordenadorias Regionais e as Supervisões Técnicas de Saúde oferecem, periodicamente, sensibilizações e capacitações a profissionais de saúde. Algumas instituições ligadas à Secretaria de Direitos Humanos também apoiam equipes da área da saúde e oferecem capacitações, como os Centros de Cidadania LGBTI. (ver Intersetorialidade) Cada serviço de saúde pode se organizar para produzir seus próprios espaços de formação e atualização, com a possibilidade de usar materiais audiovisuais já existentes
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174 levando em consideração que podem estar desatualizados (ex: Cuál es la diferencia? - legendado, Saúde para todes, etc.) Alguns cursos on-line gratuitos estão disponíveis para profissionais de saúde dos serviços públicos, esporadicamente, através de algumas plataformas virtuais de instituições públicas. As divulgações acontecem através da gestão ou através de plataformas específicas, com oportunidades direcionadas às diferentes categorias profissionais.
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Cuidados em saúde
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Saúde mental
Em 2019, a OMS excluiu a transgeneridade do capítulo de “saúde mental” da Classificação Internacional das Doenças (CID), sob recomendações de populações e de profissionais de saúde de todo o mundo, com base em s evidências científicas que mostram que a transgeneridade/transexualidade/travestilidade não é um transtorno mental, tampouco é decorrente de adoecimentos mentais.160 A nova edição (CID-11) adota o termo “Incongruência de Gênero”, presente no capítulo “condições relacionadas à saúde sexual”, para nomear situações nas quais o gênero com que uma pessoa se reconhece não é o mesmo daquele atribuído a ela ao nascimento. Apesar de passível de críticas, o termo “incongruência de gênero” assegura que sistemas de saúde públicos e privados possam ser cobrados para incluir os cuidados de saúde, incluindo procedimentos relacionados às estratégias pessoas de afirmação de gênero, no rol de seus compromissos com as pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero. O termo “transexualismo”, descrito anteriormente no Capítulo de Transtornos Mentais e Comportamentais da CID-10, carregava o estigma de patologização das “identidades trans” e não deve mais ser utilizado. Afinal, a identidade de gênero é uma das expressões da sexualidade humana e possui diversidades. A despeito da existência de adoecimentos mentais específicos pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero podem estar mais vulneráveis a adoecimentos e agravos de saúde mental, tais como: depressão, ansiedade, uso abusivo de substâncias, estresse pós-traumático, autolesões não-suicidas, ideação suicida e tentativa de suicídio.161,162,163,164,165,166 Tais sofrimentos, no entanto, não resultam da identidade trans/travesti per se, mas da exclusão social e da vulnerabilidade individual e social a que essas pessoas estão submetidas em diversos contextos.167 Em termos gerais, a exclusão e 160 Robles R, Fresán A, Vega-Ramírez H, Cruz-Islas J, Rodríguez-Pérez V, Domínguez-Martínez T, et al. Removing transgender identity from the classification of mental disorders: a Mexican field study for ICD-11. The Lancet Psychiatry. 2016; 3(9): 850-9. 161 Tanis J. The power of 41%: A glimpse into the life of a statistic. Am J Orthopsychiatry. 2016; 86(4): 373-7. 162 Guzman-Gonzalez M, Barrientos J, Saiz JL, Gomez F, Cardenas M, Espinoza-Tapia R, et al. Mental health in a sample of transgender people. Rev Med Chil. 2020; 148(8): 1113-20. 163 Chen Y, Chen S, Arayasirikul S, Wilson E, McFarland W, Lu J, et al. A cross-sectional study of mental health, suicidal ideation and suicide attempt among transgender women in Jiangsu province, China. J Affect Disord. 2020; 277: 869-74. 164 Silva G, Meira KC, Azevedo DM, Sena RCF, Lins S, Dantas ESO, et al. Factors associated with suicidal ideation among travestis and transsexuals receiving assistance from transgender organizations. Cien Saude Colet. 2021; 26(suppl 3): 4955-66. 165 Reis A, Sperandei S, de Carvalho PGC, Pinheiro TF, de Moura FD, Gomez JL, et al. A cross-sectional study of mental health and suicidality among trans women in Sao Paulo, Brazil. BMC Psychiatry. 2021; 21(1): 557. 166 Organização Mundial da Saúde. Transgender People and HIV. Geneva: WHO; 2015 Jul. p.34. 167 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016; 388(10042): 390-400.
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177 violência costuma se manifestar em: abandono familiar e expulsão domiciliar, comum na adolescência ou vida adulta168, nas dificuldades para permanecer e concluir o ensino formal, bem como para inserção no mercado de trabalho formal. Organizações Não Governamentais (ONG) apontam, ainda, que o Brasil é atualmente o país que mais registra assassinatos em números absolutos dessa população específica.169,170,171 Resultado da exclusão social, tais sofrimentos têm sido associados ao Estresse de Minoria, categoria empregada para classificar o estresse excessivo vivenciado por grupos sociais "minorizados" (ex. população LGBTIA+, população negra, mulheres etc.) em razão da discriminação e do estigma que são alvo. A literatura científica identifica fatores que impactam negativamente a saúde mental dessas pessoas, aumentando a sua vulnerabilidade ao adoecimento e agravos à sua saúde mental. Também são conhecidos fatores protetivos, ou seja, aqueles que contribuem para diminuir e/ou atenuar essa vulnerabilidade.
168 Centro de Estudos de Cultura Contemporânea. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa [internet]. São Paulo: CEDEC; 2021 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/LGBT/AnexoB_Relatorio_Final_Ma peamento_Pessoas_Trans_Fase1.pdf 169 Aliança Nacional LGBTI+, Grupo Gay da Bahia. Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil [internet]. Aliança Nacional LGBTI+; 2021 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2022/03/mortes-violentas-de-lgbt-2021-versao-final.pdf 170 Transgender Europe. Nota de Imprensa, Dia Internacional da Visibilidade Trans - Mais de 2,000 pessoas trans assassinadas nos últimos 8 anos [Internet]. Transrespeito Versus Transfobia no
Mundo; 2016; Março(30). Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/dia-internacional-davisibilidade- trans-mais-de-2000-pessoas-trans-assassinadas-nos-ultimos-8-anos/6043
171 Benevides BG. Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2022. Brasília: ANTRA [internet], 2023 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf
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178 Quadro 21 – Fatores que impactam negativamente e fatores que protegem a saúde mental CONTRIBUEM PARA PIORAR A SAÚDE MENTAL172,173 Exposição ao estigma e discriminação Evasão/expulsão escolar Dificuldade para Inserção no mercado de trabalho (formal) Abuso físico ou verbal Isolamento social Círculo de amizades e relacionamentos interpessoais empobrecidos Rede de apoio social ou familiar inexistente ou insatisfatória Baixa autoestima
PROTEGEM A SAÙDE MENTAL174,175,176 Respeito à identidade de gênero Uso e respeito ao nome social Permanência escolar (com sensação de segurança e pertencimento escolar) Sentimento de pertencimento à comunidade e apoio social Aceitação e suporte familiar para expressar a identidade de gênero Sentimento de bem-estar nos diferentes espaços de convivência Rede de suporte e apoio satisfatória, com presença de respeito à identidade de gênero Contar com rede de apoio e vínculo familiar seguros Autoestima satisfatória
Estudos sugerem que pessoas trans apresentam níveis elevados de sofrimento mental, resultando em taxas mais elevadas de ideação suicida e tentativas de suicídio, quando comparadas com a população cisgênero177,178. Discriminação, violência verbal e psicológica, transfobia internalizada, falta de acesso à educação e ao mercado de trabalho e ausência de suporte social são fatores de risco para suicídio179. Estudo realizado em São
172 Tankersley AP, Grafsky EL, Dike J, Jones RT. Risk and Resilience Factors for Mental Health among Transgender and Gender Nonconforming (TGNC) Youth: A Systematic Review. Clin Child Fam Psychol Rev. 2021; 24(2): 183-206. 173 Robles R, Fresán A, Vega-Ramírez H, Cruz-Islas J, Rodríguez-Pérez V, Domínguez-Martínez T, et al. Removing transgender identity from the classification of mental disorders: a Mexican field study for ICD-11. The Lancet Psychiatry. 2016; 3(9): 850-9 174 Tankersley AP, Grafsky EL, Dike J, Jones RT. Risk and Resilience Factors for Mental Health among Transgender and Gender Nonconforming (TGNC) Youth: A Systematic Review. Clin Child Fam Psychol Rev. 2021; 24(2):1 83-206. 175 Becerra-Culqui TA, Liu Y, Nash R, Cromwell L, Flanders WD, Getahun D, et al. Mental Health of Transgender and Gender Nonconforming Youth Compared With Their Peers. Pediatrics. 2018; 141(5). 176 Olson KR, Durwood L, DeMeules M, McLaughlin KA. Mental Health of Transgender Children Who Are Supported in Their Identities. Pediatrics. 2016; 137(3): e20153223. 177 Lefevor, G. T., Boyd-Rogers, C. C., Sprague, B. M., & Janis, R. A. (2019). Health disparities between genderqueer, transgender, and cisgender individuals: An extension of minority stress theory. Journal of counseling psychology, 66(4), 385. 178 Marshall E, Claes L, Bouman WP, Witcomb GL, Arcelus J. Non-suicidal selfinjuryand suicidality in trans people: a systematic review of the literature.Int Rev Psychiatr. 2016; 28(1): 58-69. https://doi.org/10.3109/09540261.2015.1073143 179 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016; 388(10042): 390-400.
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179 Paulo, analisando dados de 763 mulheres trans e travestis reporta que 26,5% das participantes já tiveram diagnóstico de ansiedade e 19,1% de depressão, além de mais da metade da amostra já ter vivenciado ideação suicida ou tentado suicídio alguma vez na vida.180 Estudos indicam ainda que o histórico de maus-tratos é comum na infância de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, o que pode potencializar a vulnerabilidade ao sofrimento mental e outros agravos à saúde.181 Se, de um lado, o desrespeito à identidade de gênero e a exposição a estigma e discriminação impactam negativamente os desfechos em saúde mental de pessoas trans, travestis e/ou com vivência de variabilidade de gênero; de outro, o uso do nome social dentro dos serviços de saúde diminui significativamente as taxas de ideação e de tentativa de suicídio182, assim como ter o nome de preferência em documentos de identidade diminui taxas de estresse psicológico, ideação e planejamento de suicídio.183 Portanto, o uso do nome social, o uso dos pronomes de preferência da pessoa e a emissão de CNS com o nome social são ações de cuidado à saúde mental, além de ações de respeito aos direitos humanos. Até este ponto do texto, foi apresentado um panorama geral sobre aspectos sociais e interpessoais que podem impactar na saúde mental de pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero. É preciso, no entanto, atentar para a singularidade e vivência de cada pessoa, a fim de compreender como tais aspectos - e outros possíveis - podem estar ou não presentes em sua vida.
Saúde Mental, Disforia Relacionada a Gênero e Sugestões para a Assistência Imersas nessa realidade, pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem vivenciar também Disforia Relacionada a Gênero, um sofrimento causado pela sensação de inconformidade que é vivida por uma pessoa que não se reconhece e/ou não é reconhecida como pertencente ao gênero com o qual se identifica. Apesar do DSM-5 ter utilizado o termo “disforia de gênero” em substituição a “transtorno de identidade de gênero”, que constava na versão anterior (DSM-IV-TR) que representava patologização da identidade de gênero, é importante ressaltar que disforia de gênero não é sinônimo de transgeneridade, travestilidade ou transexualidade e nem todas as “pessoas trans”
180 Reis A, Sperandei S, de Carvalho PGC, Pinheiro TF, de Moura FD, Gomez JL, et al. A cross-sectional study of mental health and suicidality among trans women in Sao Paulo, Brazil. BMC Psychiatry 2021; 21(1): 557. 181 Fontanari AMV et al. Childhood maltreatment linked with a deterioration of psychosocial outcomes in adult life for southern Brazilian transgender women. Journal of immigrant and minority health 2018; 20(1): 33-43. 182 Russel ST, Pollitt AM, Li G, Grossman AH. Chosen name use is linked to reduced depressive symptoms, suicidal ideation, and suicidal behavior among transgender youth. Journal of Adolescent Health 2018; 63(4). 183 Scheim AI, Perez-Brumer AG, Bauer GR. Gender-concordant identity documents and mental health among transgender adults in the USA: a cross-sectional study. Lancet Public Health 2020; 5: e196-203.
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180 apresentam esse sofrimento. A Disforia Relacionada a Gênero tem raízes na cisnormatividade (concepção de que todas as pessoas são “naturalmente” cisgênero, que desconsidera e violenta pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero). Muitas vezes, as características corporais reconhecidas como marcadores de gênero (mamas, barba, “gogó”, traços faciais, voz etc.) são apontadas como responsáveis ou agravantes do sofrimento de disforia relacionada a gênero ou até mesmo responsáveis por sofrimentos disfóricos específicos para as pessoas trans. O sofrimento relacionado a essas características não é estético, porque não está necessariamente relacionado a padrões de beleza idealizados. É preciso, no entanto, diferenciar entre a disforia relacionada ao gênero e demais insatisfações corporais relacionadas a características específicas, que podem incluir o genital, a silhueta, características faciais, mamárias etc. Pessoas cis também podem ter disforias corporais, ou seja, sofrimentos relacionados a alguma característica corporal, que podem ou não ser relacionadas a gênero. Por isso, para cuidar de pessoas com sentimentos disfóricos é importante não os confundir com sintomas psicóticos ou com dismorfias corporais que não sejam relacionadas à identidade ou vivência de gênero. A abordagem de disforia corporal relacionada a gênero deve pautar-se em coletar a história da pessoa e verificar o desenvolvimento de possíveis sentimentos de disforia. Nas pessoas em que esse sofrimento se faz presente, cabe entender a idade em que o desconforto com o gênero atribuído ao nascer começou, se houve intensificação desse desconforto com o passar do tempo e se ele passou a ser percebido pelas pessoas no entorno, assim como o impacto do estigma relacionado à não conformidade com o gênero atribuído ao nascer e às crenças individuais e familiares (religiosa, cultural e funcional). Transição social de gênero, hormonização e procedimentos cirúrgicos estão associados a melhorias na saúde mental, emocional e no bem-estar184 e, consequentemente, as demandas em saúde mental diminuem entre pessoas que desejam e passam por procedimentos de transformações corporais, incluindo cirurgias.185 Portanto, os cuidados em saúde para pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero também incluem a oferta de modificações corporais para quem as deseja, que são demandas legítimas dessas pessoas e que devem ser validadas, mas não se limitam a esse aspecto. Para quem deseja fazer modificações corporais é importante a abordagem sobre os riscos e benefícios dos procedimentos, as expectativas da pessoa não apenas referentes aos resultados esperados no próprio corpo, mas também ao impacto que 184 Winter S, Diamond M, Green J, Karasic D, Reed T, Whittle S, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016; 388(10042): 390–400. 185 Branstrom R, Pachankis JE. Reduction in Mental Health Treatment Utilization Among Transgender Individuals After Gender-Affirming Surgeries: A Total Population Study. Am J Psychiatry. 2020; 177(8): 727-34.
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181 imagina que haverá em outros aspectos da vida, pois embora as modificações corporais possam trazer bem-estar e aumentar a satisfação em relação ao próprio corpo, melhorar a autoestima, as relações interpessoais e funcionamento social, podem não ser a panaceia para todas as dificuldades, sofrimentos ou insatisfações; e ao ponderar que tais efeitos podem não atender a todas as expectativas pessoais, devem ser discutidas possíveis frustrações e estratégias de enfrentamento durante o acompanhamento. Nesse sentido, a oferta de acolhimento e escuta qualificada deve acompanhar todo o processo, a fim de permitir um espaço para a reflexão e elaboração das necessidades, demandas e seus sentidos no âmbito da trajetória singular de cada pessoa. A exposição de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero à violência, exclusão e demais situações discriminatórias pode acentuar conflitos envolvendo a autoestima e de insatisfação com a própria imagem corporal, mesmo que não tenham sofrimentos disfóricos relacionados ao gênero. Por outro lado, a procura pela "passabilidade" (ou seja, a possibilidade de ser lida socialmente como uma pessoa não-trans) pode estar relacionada ao desejo de esquivar-se de situações sociais discriminatórias,186 de obter o reconhecimento e aceitação social ou ainda à transfobia internalizada. Vale ressaltar, no entanto, que a abordagem em saúde deve estar atenta a questões que envolvem a relação de cada pessoa com o seu corpo e com as tecnologias para modificação corporal, também levar em consideração o que cada pessoa trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero enuncia. É preciso considerar que tais questões podem variar de acordo com as demandas e expectativas individuais, com o avanço do próprio percurso de afirmação de gênero, bem como a partir de outras vivências que o ultrapassam. O acolhimento é uma estratégia de cuidado para pessoas e de organização de serviços e deve priorizar a perspectiva da pessoa trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero, portanto a percepção e necessidade da pessoa usuária deve ser privilegiada em relação à percepção da profissional. (ver Acolhimento). Além de realizar acolhimento cuidadoso, sugere-se que profissionais possam se atentar também: • ao fortalecimento e a ampliação de redes de apoio, incluindo as relações entre pares (pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero), • ao fortalecimento da autoestima e de uma visão positiva de si (entre as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero), • a abordagem de projetos de vida para além da questão de gênero, tendo como horizonte a promoção de empoderamento e valorização pessoal,
186 Almeida G. 'Homens trans': novos matizes na aquarela das masculinidades?. Revista Estudos Feministas 2012; 20: 513-523.
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182 • a aquisição e ampliação de repertórios referentes às relações interpessoais (no contexto de trabalho, afetivo-romântico etc.) e exercício da autonomia.
Acompanhamento em Saúde Mental e Lutos Vivenciados No processo da vivência de sua identidade de gênero, uma pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero invariavelmente irá lidar com mudanças que afetam o seu dia a dia e uma dessas mudanças pode incluir reconhecer a dor ou sentimentos de perda de pessoas próximas, como amizades e família, especialmente em decorrência da não-aceitação da identidade. Ainda que seja uma (ou mais) perda(s) simbólica(s), a vivência da dor é real e, consequentemente, a experiência de luto também. Luto é um processo natural e inerente ao ciclo vital de todo e qualquer ser humano, pois todos nós iremos experienciar, em algum momento de nossas vidas, a perda (real ou simbólica) de alguém ou de algo significativo para nós. O luto é uma elaboração adaptativa a uma nova situação que se apresenta a partir do esfacelamento do mundo presumido de uma pessoa, isto é, um mundo tal como se apresentava até o evento da perda. lidar com essa situação pode ser um processo bastante doloroso para qualquer pessoa. No caso de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, o luto pode trazer à tona questões bem específicas, que, geralmente, são oriundas da não-aceitação familiar e/ou de ordem social, impulsionadas pela discriminação e pelo preconceito. Por vezes, essas pessoas podem vivenciar o luto quando: 1.A família não aceita a transição social e, consequentemente, rompe a relação outrora existente e afetiva; 2.Amizades ou colegas de trabalho se afastam por preconceito; 3.Se há perda de algo muito valioso, como um trabalho, um projeto, um sonho de vida por sua condição; 4.Se há perda de relacionamento afetivo a partir da transição social; 5.Se há perda da rede de suporte, quando existente. Quando falamos em perda, falamos do rompimento, abrupto ou progressivo, com algo que nos é familiar, convencional, acomodado; perder algo ou alguém é ter que lidar com a imprevisibilidade que se apresenta diante do que foi perdido. O luto é um processo de reorganização interna essencialmente emocional. Não obstante, a experiência de uma pessoa enlutada pode ter manifestações físicas e cognitivas. O Modelo do Processo Dual do luto187 sugere que o enfrentamento adaptativo é composto de confrontação e evitação da perda; isto é, a pessoa enlutada pode oscilar entre o confrontamento e o afastamento do que 187 Organização Mundial da Saúde. Transgender People and HIV. WHO 2015 Jul:1-34.
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183 foi perdido, pendulando entre o pólo da perda (dor, desamparo, negação da morte, fuga da realidade) e o pólo da restauração (retomar as próprias tarefas, fazer coisas novas, se permitir momentos de lazer). Nesse sentido, o processo de luto é, portanto, dinâmico e regulador e sua oscilação é natural, permitindo a ampliação do conhecimento e a compreensão da pessoa enlutada acerca da elaboração de sua perda.
Estratégias para acolhimento de uma pessoa enlutada O acolhimento ao luto, de maneira geral, deve ser genuíno, compassivo e ético. Isto se aplica a qualquer pessoa provedora de cuidados a qualquer pessoa enlutada. No entanto, ao acolher uma pessoa trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero em situação de luto, recomendamos as seguintes orientações: • Acolha a experiência da pessoa enlutada tal como ela se apresenta: evite fazer direcionamentos com perguntas intrusivas e evite oferecer uma solução pronta. Não corrija a narrativa compartilhada nem tire conclusões precipitadas. Receba o que a pessoa enlutada está compartilhando com você e fique com isso. • Não priorize sua curiosidade: evite fazer perguntas que servirão apenas à sua curiosidade e que poderão causar algum desconforto para a pessoa (exemplo: querer saber o nome de nascimento). • Seja um espaço convidativo para o choro: o choro é uma forma de expressão. Sua intensidade e duração podem variar, principalmente considerando o contexto. Permita que a pessoa enlutada chore. Se possível, deixe à disposição dela um lenço de papel. O choro pode representar muitas coisas, inclusive amor. O choro também é uma manifestação de amor, assim como o luto. O luto é uma resposta emocional natural para a perda de um afeto. Se há choro no luto, especialmente em sua fase aguda, há dor. Se há dor no luto, há amor. • Não tente mensurar a dor do luto: somente a pessoa enlutada sabe a dor que sente. Ela própria é especialista em seu luto, mais ninguém. • Evite clichês: não use frases como “vai ficar tudo bem”, “você é forte” etc. quando lhe faltar palavras. Apenas esteja ali e pergunte se você pode lhe oferecer algo. Deixe que a pessoa enlutada diga o que quer/precisa. • O silêncio como aliado: caso você não saiba o que dizer, permita o silêncio. Esteja disponível com sua presença e escuta. Isso por si só é uma forma de acolhimento. Caso você sinta que contribuiu com o que pode, pergunte se há algo a mais que a pessoa enlutada ainda gostaria de compartilhar.
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184
Saúde sexual
"Saúde sexual é o estado de bem-estar físico, emocional, mental e social relacionado à sexualidade; não se refere à mera ausência de doenças, disfunções ou enfermidades. A saúde sexual exige uma abordagem positiva e respeitosa no que tange a sexualidade e relacionamentos sexuais, assim como a possibilidade de ter experiências sexuais seguras e prazerosas, sem coerção, discriminação e violência. Para que a saúde sexual seja atingida e mantida, os direitos sexuais de todas as pessoas precisam ser respeitados, protegidos e cumpridos" (OMS)188
O cuidado à saúde sexual deve incluir todos os aspectos da sexualidade, que não podem ser associados entre si mas também não podem ser ignorados por profissionais de saúde. (ver Abordagem da Sexualidade) Uma importante parte do acesso à saúde sexual é a garantia de programas de saúde sexual abrangentes e que não realizem exclusões de qualquer tipo (idade, local de moradia, identidade de gênero, orientação sexual, raça/cor, vulnerabilidade social, deficiência, etc). Ofertas ativas, preparo profissional e adequação do ambiente em que as pessoas são atendidas (como sala de espera e organização do consultório sem segregação de gênero) possuem grande impacto no vínculo da pessoa com o serviço de saúde e, portanto, no seu acesso a recursos oferecidos.
188 Organização Mundial da Saúde. Saúde sexual, direitos humanos e a lei [e-book] Trad: Oliveira DC, Polidoro M (coord.). Porto Alegre: UFRGS; 2020 [acesso em 27 mar 2023]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/175556/9786586232363-por.pdf
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185
Prazer sexual
O prazer sexual (relacionado ao ato sexual – compartilhado com outra pessoa ou não) engloba diversas e diferentes percepções de satisfação, cuja combinação varia para cada pessoa: orgasmo, alívio físico, sensações corporais, imaginação, fantasia, desejo, excitação, afeto, intimidade, entrega física ou emocional, autoafirmação, descarga emocional, introspecção etc. Portanto não se deve compreender orgasmo como o objetivo de um ato sexual e nem como único prazer proveniente dele. As vivências de prazer sexual e o desejo de vivenciá-lo é uma característica humana que perpassa a idade, características corporais, classe social, raça e cor. São expressas de diferentes maneiras e intensidades e cada pessoa pode ter uma compreensão única de seus significados, assim como pode ter fórmulas para atingir esse prazer que se diferenciam em cada experiência. Particularidades históricas, culturais, biológicas, pessoais e relacionais impactam na percepção e na vivência desse prazer.189 Profissionais de saúde devem considerar as diversidades possíveis de vivências da prática sexual de qualquer pessoa atendida, validar as necessidades e percepções individuais e atentar para aspectos que podem prejudicar suas experiências de forma indesejada. Diferentes pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero que desejam hormonização cruzada possuem diferentes percepções sobre prazer sexual relacionado à sua genitália, portanto após serem adequadamente informadas dos efeitos de cada substância utilizada na hormonização algumas pessoas transfemininas irão decidir não utilizar antiandrógenos e/ou utilizar doses baixas de estrógenos por considerarem que ereção e a ejaculação são importantes para o seu prazer sexual, enquanto outras decidirão usar antiandrógeno por não desejarem ereção e/ou ejaculação. Da mesma forma, algumas pessoas transmasculinas decidirão diminuir a dose de testosterona ou suspendê-la devido incômodo com aumento de libido e/ou hipersensibilidade na glande do clitóris, enquanto outras desejarão manter o uso de testosterona para manutenção de seu bem estar sexual. É necessário garantir que serviços de saúde realizem um atendimento livre de julgamentos e preconceitos sobre a vivência sexual pois assim, ao ser criado um ambiente acolhedor, facilita-se a adesão ao cuidado de saúde integral.
189 Pereira A, Fernandes de Souza W. O prazer sexual feminino: a experiência do orgasmo na literatura. Revista Brasileira de Sexualidade Humana 2019, 30(2): 31-37.
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Prevenção a IST e HIV/Aids
As infecções sexualmente transmissíveis (IST) podem ser causadas por bactérias, vírus ou outros microorganismos e são transmitidas, principalmente, por relação sexual desprotegida com uma pessoa que está com a infecção. De maneira menos comum, as IST também podem ser transmitidas por meio não sexual, pelo contato de mucosas ou pele não íntegra com secreções corporais ou sangue de pessoas infectadas (inclusive menstruação, teoricamente). Ao verificar alterações na região genital, como verrugas, lesões (machucados ou feridas), corrimentos, coceiras, bem como ter dor ao urinar, a pessoa deve ser orientada a procurar a sua UBS de referência (preferencialmente), ou um serviço de urgência como AMA (Assistência Médica Ambulatorial) ou pronto-socorro. Visando a quebra da cadeia de transmissão das IST, a unidade de saúde deve garantir, o mais breve possível, acolhimento adequado e com privacidade. Este cuidado deve garantir: • a oferta de exames complementares (como sorologias para IST), • o tratamento das pessoas com IST e suas parcerias, • a realização de encaminhamentos caso sejam necessários, • a notificação das IST e • a realização de consultas imediatas no caso de úlceras e corrimentos genitais ou verrugas anogenitais.190 Casos de sífilis, gonorreia, clamídia, linfogranuloma venéreo, casos leves de condiloma acuminado por HPV, entre outros, podem ser tratados na UBS. Condilomas mais exuberantes, hepatites B e C devem ser encaminhados para o serviço de referência específico. Serviços de Atenção Especializada (SAE) e Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) em IST/Aids são serviços que também oferecem acolhimento e tratamento a pessoas com suspeita de IST. As IST podem surgir tanto nos órgãos genitais quanto em outras partes do corpo (olhos, palmas das mãos, garganta, língua etc.) e qualquer pessoa pode adquiri-las. Podem, inclusive, ser transmitidas entre uma pessoa gestante para a criança durante a gestação, o parto ou pelo aleitamento (a exemplo do HIV e sífilis). Hepatites B e C podem ser transmitidas também pelo compartilhamento de objetos de uso pessoal, como lâminas de barbear e escovas de dentes, assim como pelo compartilhamento de seringas e canudos (no caso da cocaína aspirada). Por isso, deve-se orientar que esses objetos não sejam compartilhados com outras pessoas 190 Ministério da Saúde (Brasil). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (PCDT IST). Brasília: MS; 2022.
Protocolo para o cuidado integral à saúde de pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero no município de São Paulo Abril/2023, versão preliminar submetida à consulta pública
187 O tratamento das IST melhora a qualidade de vida e interrompe a cadeia de transmissão dessas infecções. A sífilis é uma IST bastante transmitida por contato de mucosas, sendo o sexo oral uma importante via de transmissão. A sífilis pode ser diagnosticada através de exames sorológicos, feitos em UBS, CTA e SAE. O teste rápido detecta se uma pessoa já entrou em contato com a bactéria da sífilis, mesmo que não esteja com a infecção ativa no momento, então sempre que um teste rápido resulta como reagente, é necessário solicitar o exame de laboratório. O exame laboratorial de VDRL é indicado para iniciar o tratamento, que pode ser prescrito mesmo na ausência do resultado de VDRL caso não haja comprovação de tratamento prévio.191 O tratamento de sífilis é realizado pela UBS. A transmissão sexual da hepatite A tem sido amplamente reconhecida desde o surto ocorrido na cidade de São Paulo e em todo o mundo em 2018. A Secretaria Municipal de Saúde, em consonância com as recomendações do Ministério da Saúde, está oferecendo a vacina da Hepatite A para pessoas que tenham práticas sexuais com maior vulnerabilidade para contaminação por fezes, ou seja, prática oral-anal. A vacina está disponível para este grupo de pessoas nos SAE e nos Centros de Referência (CRs) em IST/Aids da capital paulista.192 A recomendação de uso de métodos de barreira precisa considerar a realidade das práticas sexuais de cada pessoa, que não devem ser inferidas segundo a identidade de gênero ou orientação afetivo-sexual-romântica de cada pessoa. Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero comumente sofrem estigma, discriminação e violência dentro dos serviços de saúde. Por isso, muitas possuem dificuldades de abordar ou conversar sobre práticas sexuais. Nesse sentido, é importante que haja sempre um diálogo aberto e acolhedor, que escute as demandas da pessoa usuária. Durante a entrevista clínica, é recomendado evitar associações diretas ao órgão genital (assim como presumi-lo), optar por palavras como “região genital” e perguntar qual a palavra que a pessoa prefere que seja utilizada para se referir à genitália. Faz parte do cuidado em saúde sexual oferecer e garantir espaço seguro e sigiloso para que a pessoa possa conversar e buscar respostas às suas perguntas, com diálogo sobre estratégias de prevenção diversas além dos métodos de barreira (como descrito na mandala de prevenção combinada).
191 Ministério da Saúde (Brasil). Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2022 [acesso em 11
abr 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/pcdts/2022/ist/pcdt-ist-2022_isbn- 1.pdf/view
192Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo) [homepage na internet]. Vacina Hepatite A. Secretaria Municipal da Saúde; 2019. [acesso em 11 abr 2023] Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/vigilancia_em_saude/doencas_e_agravos/index.php?p =257776
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Figura 6 – Mandala da prevenção combinada
Fonte: Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais - Ministério da Saúde (2018): Prevenção Combinada - SMS de São Paulo Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem apresentar alta vulnerabilidade às infecções sexualmente transmissíveis (IST). Há lacuna de conhecimento sobre homens trans e pessoas não binárias, mas há dados sobre mulheres trans e travestis na cidade de São Paulo, com prevalências de 2,63% para hepatite B, 2,8% para hepatite C e 26,9% para sífilis ativa.193 • Camisinhas internas e externas não devem ser utilizadas ao mesmo tempo, sob o risco de romperem-se com maior facilidade. • Camisinhas também podem ser utilizadas para qualquer tipo de penetração (por pênis, mão, dedos ou objetos), mas devem ser descartadas e trocadas por outra se a
193 Malta MS. Estudo de abrangência nacional de comportamentos, atitudes, práticas e prevalências de HIV, sífilis e hepatite B e C entre travestis nos municípios de Belém/PA, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF, Campo Grande/MS, Curitiba/PR, Fortaleza/CE, Manaus/AM, Porto Alegre/RS, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/BA e São Paulo/SP (resumo) [internet].Rio de Janeiro: FioCruz; 2017 [Acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt-br/ct/na
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189 penetração for alternada entre as pessoas ou entre ânus, vagina e boca, para evitar a troca de fluídos corporais. • Luvas e dedeiras podem servir para a penetração por mãos, que devem ser mantidas com as unhas bem aparadas para evitar lesões da mucosa penetrada ou rupturas da barreira utilizada. • A higiene também é uma estratégia de prevenção importante principalmente se as mãos forem utilizadas para a penetração, portanto a lavagem de mãos e objetos antes de utilizá-los para a penetração é uma prevenção a IST e a uretrites bacterianas.
Práticas sexuais entre vulvas (como o tribadismo) ou com trocas de secreções vaginais também têm o potencial de transmitir IST. Existem métodos de barreira específicos para a prática de tribadismo ou para sexo oral em vulva como placas ou calcinhas com fundo de silicone ou látex resistentes, mas dificilmente são encontrados para comercialização, não estão disponíveis nos serviços de saúde e costumam ser pouco conhecidos e divulgados devido a desinformação de profissionais e de pessoas usuárias de saúde e devido às concepções culturais heteronormativas sobre as práticas sexuais. Filmes plásticos de uso culinário não devem ser utilizados por serem porosos e se romperem com facilidade. As instruções de uso e manuseio do preservativo informadas pelas indústrias fabricantes seguem a Resolução no 62, de 3 de setembro de 2008, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, que incluem a advertência de não usar objetos cortantes, afiados ou pontiagudos para abrir a embalagem, como também não recomendam o corte para uso com outra finalidade. No entanto, devido à dificuldade de acesso a métodos de barreira específicos para a prática sexual não penetrativa em vulvas, é uma alternativa viável confeccionar uma placa de material seguro a partir de uma camisinha194 (interna ou externa), no momento do ato sexual, seguindo os seguintes passos: 1) abrir o pacote da camisinha e desenrolá-la completamente, 2) retirar o anel da extremidade (rompendo a fina camada de látex junto a ele com um dedo ou cortando com tesoura), 3) realizar um único rasgo ou corte na camisinha, desde sua base e ao longo de todo seu comprimento (caso haja uma tesoura à disposição, ela pode ser utilizada para cortar o fundo de saco da camisinha e dividi-la em seu comprimento), e 4) segurar a placa formada com ambas as mãos e mantê-la esticada para evitar o contato direto com a vulva.
194 Pinto VM, Tancredi MV, Neto AT, Buchalla CM. Sexually transmitted disease/HIV risk behavior among women who have sex with women. AIDS. 2005; 19(4): 64-9.
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190 Uma luva também pode ser cortada para servir como método de barreira em formato de placa e, se o encaixe dedicado ao polegar for mantido, é possível realizar penetração protegida através dessa estrutura. Figura 7 – Técnica para confecção de placa de látex a partir de cortes em luva ou camisinha
Fonte: Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual – Panfleto Espelho de mim: informações sobre sexo mais seguro entre mulheres. Protetores de língua, flexíveis e rígidos, estão disponíveis para comercialização com a intenção de oferecer método de barreira durante o sexo oral vulvar. Porém, seu uso é difícil e dificilmente impede completamente o contato com a mucosa vulvar e com fluídos vaginais. O sangue menstrual teoricamente aumenta a possibilidade de transmissão de HIV e Hepatite C, portanto conter o extravasamento de sangue também pode ser uma estratégia de prevenção, como o uso de coletores menstruais ou de absorventes internos, principalmente quando não for realizada penetração vaginal.195 Discos menstruais são mais confortáveis para serem utilizados durante a penetração vaginal. Atualmente, a prevenção do HIV conta com diversas estratégias que podem reduzir a chance de infecção. Para além dos métodos clássicos de prevenção (como as camisinhas penianas/externas e vaginais/internas e o gel lubrificante – visando diminuir o atrito nas penetrações e a possibilidade de microlesões); há estratégias como: • testagem regular de HIV e IST seguido de tratamento caso alguma infecção seja identificada; • tratamento com medicamentos antirretrovirais (ARV) para as PVHIV, com o objetivo de atingir o I = I;
195 Knight DA, Jarrett D. Preventive Health Care for Women Who Have Sex with Women. American Family Physician. 2017; 95(5): 314-321.
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191 • prevenção da transmissão vertical do HIV da pessoa gestante vivendo com HIV para o feto durante a gravidez, parto ou aleitamento (sendo o aleitamento não recomendado, nessa situação); e • imunização de hepatite B e do HPV.
Existem duas estratégias cujo conhecimento por pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero vulneráveis são de extrema relevância: a PEP e a PrEP. A Profilaxia Pós-Exposição (PEP) ao HIV, método preventivo de urgência que pode ser usado por pessoas HIV negativas que tenham vivido uma situação de possível risco de aquisição do HIV (por exemplo: quando o preservativo tiver saído durante a prática sexual penetrativa, se ele tiver rompido ou se não for usado). A PEP deve ser iniciada em até 72 horas após a exposição e está disponível em vários serviços da rede municipal, muitos deles abertos 24 horas por dia. Também é importante divulgar à população a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV, que consiste no uso programado e diário de ARV por pessoas HIV-negativas que se sintam sob risco para se infectar pelo HIV por apresentarem, por exemplo, dificuldade no uso consistente de preservativo. A proteção para sexo vaginal está resgistrada a partir vigésimo dia de uso do medicamento, enquanto para sexo anal há evidências de sua eficácia após sete dias de uso ou após 2 a 24 horas do uso de 2 comprimidos antes da prática sexual e com uso de um comprimido diário por mais dois dias (PrEP sob demanda).196 A PrEP está disponível na Rede Municipal Especializada em IST/Aids e em alguns serviços do município que oferecem acompanhamentos de estratégias escolhidas individualmente para afirmação de gênero (Rede SAMPA Trans). As pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero constituem um dos segmentos populacionais aos quais essa estratégia de prevenção se destina até o momento. Em relação ao uso concomitante de hormonização e PrEP, é importante ressaltar que não há razão para acreditar que existam interações significativas, visto que são metabolizados de maneiras diferentes.197 A oferta de hormonização e de cuidados com outras estratégias de afirmação de gênero escolhidas pela pessoa têm provavelmente um efeito
196 Ministério da Saúde (Brasil). Nota Técnica no 563/2022-CGAHV/.DCCI/SVS/MS - Dispõe sobre recomendações e atualizações acerca do uso da Profilaxia Pré-Exposição de risco à infecção pelo HIV (PrEP) oral, incluindo a modalidade “sob demanda” [internet]. Ministério da Saúde; 2022 dez 08 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://azt.aids.gov.br/documentos/SEI_MS%20-%200030684487%20- %20Nota%20T%C3%A9cnica%20563.2022.pdf 197 Cairns G. Estudo de dosagem diretamente observada encontra níveis semelhantes de drogas PrEP no sangue de mulheres e homens trans e cis. Boletim Vacinas 2021 jun; 34: 11-12.
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192 positivo na adesão das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero à PrEP. É relevante incentivar o autoconhecimento corporal e a observação das genitálias em busca de lesões e sintomas suspeitos de IST, com a intenção de evitar contato sexual e procurar atendimento em serviço de saúde caso sejam encontrados. A oferta de testes sorológicos (laboratoriais ou testes rápidos) deve estar disponível. A profilaxia pré-exposição ao HIV (PrEP) e a profilaxia pós-exposição ao HIV (PEP) são estratégias importantes de prevenção apenas da transmissão sexual do HIV, portanto é necessário utilizar outros métodos para evitar o contato com outras IST. (ver HIV/Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis) Ainda, é importante atentar-se a possíveis relatos de abuso sexual e violências durante o aconselhamento/acolhimento, que devem ser notificados e acompanhados juntamente ao Núcleo de Prevenção à Violência, assim como as pessoas podem ser orientadas e encaminhadas a outros serviços, caso haja interesse. (ver Violência) Uma situação comumente percebida pelas pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero nos serviços de saúde é a associação direta que profissionais costumam fazer entre sua identidade de gênero e vulnerabilidades a IST/HIV/Aids, o que alimenta estigmas e as afasta do serviço de saúde. Portanto, é aconselhável oferecer abordagem cuidadosa e respeitosa sobre IST em caso de vulnerabilidade identificada, baseada em avaliação de risco individual. A partir da abordagem de sexualidade e da percepção de vulnerabilidades para IST, é possível oferecer rastreamento para IST específicas.
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193 Cuidado a pessoas vivendo com HIV/Aids e com outras Infecções Sexualmente Transmissíveis
A população de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, devido à sua vulnerabilidade social e programática, possui alta incidência e prevalência de HIV/Aids.46198 Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (UNAIDS), mulheres trans e travestis possuem 49 vezes mais chances de adquirir HIV que a população geral. Segundo o Unaids, cerca de 19% desta população, em todo o mundo, vive com HIV/Aids.
199 Estudo de 2017 com mulheres trans e travestis em várias capitais brasileiras encontrou, na cidade de São Paulo, prevalência 40,2% para HIV/Aids.200 Além disso, a associação entre os estigmas ligados à transgeneridade (transfobia) e ao HIV (sorofobia) contribui para piores resultados em termos de acompanhamento, retenção e sucesso terapêutico (supressão viral) entre mulheres trans e travestis vivendo com HIV/Aids. Não há dados sobre adoecimento ou óbitos por Aids de mulheres trans e travestis, mas dada a alta prevalência e as barreiras sociais e programáticas ao cuidado efetivo, é provável que seja uma das mais importantes causas de morte nesse grupo. É ainda mais grave a lacuna de conhecimento sobre HIV/Aids entre homens trans, para quem não possuímos dados de prevalência, acompanhamento clínico, morbidade ou mortalidade. Contribui para essas lacunas o fato de que os documentos de notificação do Sistema Nacional de Agravos de Notificação e o Sistema de Informação sobre Mortalidade - que alimentam o Boletim Epidemiológico de HIV/Aids do Ministério da Saúde, produzido anualmente - não possuem o campo “identidade de gênero”. Se a pessoa usuária de saúde tiver sorologia positiva para o HIV e não estiver em acompanhamento, deve ser encaminhada a uma referência de assistência em IST/HIV/Aids, para iniciar o tratamento do HIV. O uso de antirretrovirais reduz as complicações relacionadas à infecção pelo HIV, promove a melhoria da qualidade de vida e reduz a morbidade e a mortalidade por Aids. Além disso, pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) em tratamento eficaz com antirretrovirais atingem o objetivo terapêutico de supressão viral, ou seja, sua carga viral torna-se indetectável. Quando a PVHA está com a carga viral 198 Grinsztejn B, Jalil EM, Monteiro L, Velasque L, Moreira RI, Garcia ACF, Castro CV, Krüger A, Luz PM, Liu AY, McFarland W, Buchbinder S, Veloso VG, Wilson EC. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017; 4: 169-76. 199 UNAIDS. The GAP Report. Unaiids 2014 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://files.unaids.org/en/media/unaids/contentassets/documents/unaidspublication/2014/UNAIDS_Gap_report_e n.pdf 200 Malta MS. Estudo de abrangência nacional de comportamentos, atitudes, práticas e prevalências de HIV, sífilis e hepatite B e C entre travestis nos municípios de Belém/PA, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF, Campo Grande/MS, Curitiba/PR, Fortaleza/CE, Manaus/AM, Porto Alegre/RS, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/BA e São Paulo/SP (resumo) [internet].Rio de Janeiro: FioCruz; 2017 [Acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt-br/ct/na
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194 indetectável há pelo menos seis meses e continua a tomar os remédios regularmente, deixa de transmitir o vírus pela via sexual, mesmo que não haja uso de preservativo, o que é conhecido como “I = I”, de “Indetectável = Intransmissível”. Esta informação é importante para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das PVHA.201 O estigma, experiências negativas em serviços e a priorização da hormonização ou preocupação sobre interações entre ARV e os hormônios são barreiras para vinculação e retenção no cuidado do HIV de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. São importantes para encorajamento ao início e à permanência no tratamento do HIV e podem melhorar a adesão à terapia antirretroviral (TARV):202 • ausência de discriminação, • oferta de tratamento do HIV associado ao acompanhamento médico da hormonização a educação entre pares, e • empoderamento das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. Casos de sífilis, gonorreia, clamídia, linfogranuloma venéreo, casos leves de condiloma acuminado por HPV, entre outros, podem ser tratados na UBS. Condilomas mais exuberantes, hepatites B e C devem ser encaminhados para serviços de referência. A população de mulheres trans e travestis da cidade de São Paulo têm prevalências de 2,63% para hepatite B, 2,8% para hepatite C e 26,9% para sífilis ativa.203 A hepatite A pode ser transmitida por práticas sexuais anal-oral ou fecal-oral, portanto, cabe abordagem sobre sexualidade ao seu diagnóstico e acompanhamento. Desequilíbrios da flora vaginal, como candidíase vaginal e vaginose bacteriana, podem ser transmissíveis entre pessoas com vulva que realizam sexo entre si, portanto também recomenda-se diálogo sobre práticas sexuais e consideração sobre tratamento de parceria(s) sexual(is).
201 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Indetectável = Intransmissível [internet]. 2022 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/noticias/?p=337749 202 Organização Mundial da Saúde. Transgender People and HIV. WHO 2015Jul:1–34. 203 Malta MS. Estudo de abrangência nacional de comportamentos, atitudes, práticas e prevalências de HIV, sífilis e hepatite B e C entre travestis nos municípios de Belém/PA, Belo Horizonte/MG, Brasília/DF, Campo Grande/MS, Curitiba/PR, Fortaleza/CE, Manaus/AM, Porto Alegre/RS, Recife/PE, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/BA e São Paulo/SP (resumo) [internet].Rio de Janeiro: FioCruz; 2017 [Acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt-br/ct/na
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Rastreamentos • Câncer de colo do útero A colpocitologia oncótica (também conhecida por papanicolau) deve ser oferecida a todas as pessoas entre 25 e 65 anos que possuem colo do útero e que já tiveram algum tipo de penetração vaginal ao longo da vida - o que ofereceria risco de exposição ao vírus HPV. A periodicidade deve seguir as recomendações do Ministério da Saúde (intervalo de um ano entre a primeira e a segunda coleta e, caso não sejam identificados riscos, intervalo de 3 anos entre as demais coletas até os 65 anos de idade). Homens trans e demais pessoas transmasculinas têm a mesma chance de desenvolver câncer de colo uterino que mulheres cisgênero, mas o rastreamento tende a ser realizado de maneira mais inadequada nessa população. Além dos fatores gerais que afastam as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero dos serviços de saúde, o uso prolongado de testosterona é um fator que desestimula a realização do rastreamento por pessoas transmasculinas, pois a atrofia vaginal e cervical geram maiores desconfortos durante o exame especular e a coleta de material cervical.204 A realização do exame não pode ser considerada uma condição para que a pessoa seja acompanhada por qualquer motivo, embora seja relevante considerar a oportunidade do contato de homens trans e pessoas transmasculinas com o serviço de saúde para a oferta do rastreamento.
• Câncer de mama A mamografia pode apresentar benefícios semelhantes aos das mulheres cisgênero para pessoas transmasculinas que não tiveram suas glândulas mamárias completamente removidas e para pessoas transfemininas em uso de hormônios há pelo menos 5 anos. A oferta deve incluir informações de benefícios e de riscos, como 0,1% de detecção precoce efetiva contra 10% de pessoas que terão biópsias indicadas (resultados falso-positivos), 0,5% de tratamentos desnecessários (sobrediagnósticos), muitos desconfortos e sensação de adoecimento (medicalização), gerados pelo exame ao final de 10 anos de rastreamento em uma população com baixo risco para câncer mamário.205 O desconforto disfórico relacionado ao exame em pessoas transmasculinas também precisa ser abordado e considerado, assim como a realização do exame pode ser
204 Dendrinos ML, Budrys NM, Sangha R. Addressing the Needs of Transgender Patients: How Gynecologists Can Partner in Their Care. Obstetrical and Gynecological Survey. 2019; 74(1): 33-39. 205 Gøtzsche PC, Jørgensen KJ. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database Syst Rev [internet]. 2013; 2013(6): 10000 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/23737396
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196 significativa para a percepção individual de afirmação de gênero às mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas.206
• Outras doenças O diagnóstico de outras doenças não deve ser realizado por meio de rastreamentos (busca de uma doença específica em população saudável e de baixo risco para desenvolver essa doença), e sim por investigações diagnósticas a partir de suspeitas clínicas ou após avaliação de riscos específicos. Não há evidência de aumento de risco para outros cânceres em pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero, mesmo sob a realização de hormonização. É dever de cada profissional de saúde discutir riscos e benefícios dos exames que demonstram diminuição de mortalidade quando aplicados como rastreamento, com garantia de autonomia e decisão consciente da pessoa atendida. O compromisso com o tratamento de problemas de saúde e com a reabilitação oferecidos por serviços de saúde se articulam também com a promoção de saúde e com a prevenção de adoecimentos, inclusive a prevenção quaternária.207,208 Não são exames de rastreamento: -PSA ou toque prostático209 -Exame de toda a superfície de pele -Inspeção visual de lábio e de cavidade oral -Colonoscopia e sangue oculto nas fezes (no Brasil)210 -Marcadores tumorais211 -Ultrassonografia transvaginal212 -Ultrassonografia mamária -Tomografia 206 Bourns A. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients. Toronto: Sherbourne Health - Rainbow Health Ontario; 2020. p.133. 207 Jamoulle M. Quaternary prevention: first, do not harm. Rev Bras Med Fam Comunidade 2015; 10:1-3. 208 Modesto AAD. Nem tudo que reluz é ouro: discutindo prevenção quaternária a partir de ditados populares. Rev Bras Med Fam Comunidade [periódico na internet] 2019; 14(41): 1781 [acesso em 11 abr 2023]. http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc14(41)1781 Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1781/968 209 Instituto Nacional do Câncer. Câncer de Próstata - versão para profissionais de saúde [Internet]. INCA 2021
[acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-de- prostata/profissional-de-saude
210 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Detecção precoce do câncer [internet]. Rio de Janeiro: INCA, 2021 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/deteccao-precoce-do-cancer.pdf 211 Almeida JRC, Pedrosa NL, Leite JB, Fleming TRP, Carvalho VH, Cardoso AAA. Marcadores Tumorais: Revisão de Literatura [internet]. Revista Brasileira de Cancerologia 2007; 53(3): 305-316 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://rbc.inca.gov.br/index.php/revista/article/view/1798/1080 212 Harding Center for Risk Literacy [homepage na internet]. Early detection of ovarian cancer. Harding Center 2021 Mar [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://hardingcenter.de/sites/default/files/2021- 10/Factbox_Ovarian_cancer_EN_new_Design_20210323_final.pdf
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-Hemograma (caso a pessoa não use testosterona) -Glicemia213 (caso a pessoa não tenha constatação de Hipertensão Arterial) -Densitometria óssea214
213 Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde (Brasil). Rastreamento [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. p.95 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_atencao_primaria_29_rastreamento.pdf (Caderno de Atenção Primária no 29) 214 Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde (Brasil). Rastreamento [internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. p.95 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/caderno_atencao_primaria_29_rastreamento.pdf (Caderno de Atenção Primária no 29)
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Considerações sobre o exame ginecológico
O conforto da pessoa deve ser pensando desde o acolhimento e a sala de espera, com abordagem sem discriminação e preconceitos desde a sua chegada no serviço, respeito ao nome social e ao pronome com o qual a pessoa se identifica, assim como o uso de linguagem de gênero neutro quando assim for desejado. O serviço de saúde que realiza exame ginecológico não pode transmitir a ideia de que seja voltado somente para mulheres ou de que seja LGBTIA+fóbico. É importante explicar o exame ou procedimento antes de realizá-lo, oferecer espaço seguro para que a pessoa dialogue e decida pela sua realização ou não, elucidar dúvidas, garantir o direito de ter uma pessoa acompanhante e compreender quais termos são mais bem aceitos pela pessoa para tratar de partes do seu corpo (por exemplo, algumas pessoas transmasculinas sentem-se mal em falar “vagina” e preferem referir-se à “frente” ou utilizar outro termo). É necessário ter cuidado com a formulação de perguntas na coleta do histórico de vida, abordar a vida sexual de forma natural e evitar presumir a história de práticas sexuais da pessoa. São comuns disforias corporais relacionadas a características corporais específicas e mais tradicionalmente reconhecidas como marcadoras de gênero, como genitália ou mamas, mas a compreensão individual sobre seu próprio corpo e sobre características corporais associadas a gênero pode trazer disforia em relação a quaisquer outras características do corpo. Acolher esse sofrimento pessoal e oferecer cuidado é responsabilidade de todas as profissionais de saúde, não somente daquelas que se dedicam exclusivamente à saúde mental (ver Disforia). Além disso, deve-se ter cuidado de não constranger a pessoa atendida, especialmente, ao se referir às partes do corpo que elas têm desconforto; e durante a consulta ou atendimento, caso haja a necessidade de realização de exames físicos e/ou procedimentos, é importante preservar a privacidade e evitar a exposição de mamas e órgãos genitais da pessoa atendida quando não há indicação ou pertinência para a conduta de cuidado em saúde. À inspeção vulvar, caso a pessoa pretenda iniciar uso de testosterona ou já a utiliza, pode-se atentar para sinais de atrofia de mucosa vulvar/vaginal e aferir o tamanho do clitóris, caso a pessoa autorize (ver Transformações corporais com descrição da técnica de aferição). Com a hipertrofia, o clitóris tende a tornar-se mais sensível, o que para algumas pessoas pode trazer desconfortos. O diálogo sobre higiene da vulva (principalmente das pregas entre glande de clitóris e prepúcio) deve ser oferecido, pois devido à disforia genital a pessoa pode ter dificuldade e desconfortos em tocá-la ou percebê-la. Caso a pessoa tenha atrofia vaginal ou grande desconforto ao exame especular, pode ser utilizado espéculo vaginal de tamanho extra pequeno, ser aplicada lidocaína tópica antes
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199 do exame ou mesmo utilizar estrógeno vaginal uma a duas semanas antes de um procedimento agendado.215 Benzodiazepínicos administrados 20 a 60 minutos antes do exame ginecológico podem ser úteis em situações de extrema ansiedade,216 embora não devam ser utilizados como única estratégia para trazer conforto à pessoa. Oferecer que a pessoa introduza o espéculo em si mesma, em posição confortável e com liberdade de movimentos (preferencialmente sem utilizar “perneiras”), com disponibilidade de um espelho para acompanhar o procedimento, também são técnicas que incentivam a autonomia da pessoa atendida, permitem respeito profissional às limitações individuais e podem minimizar de diversas formas o desconforto do exame.217,218 Caso a pessoa recuse o exame especular e o exame ginecológico seja indicado, a inspeção vulvar e o toque bimanual podem ser oferecidos. Exames físicos não especulares também podem servir como estratégia de adaptação e de estabelecimento de vínculo de confiança com a profissional de saúde, pois uma experiência positiva pode levar a reconsiderações futuras sobre a realização desse e de outros exames.219 O exame vulvar e vaginal de pessoas submetidas à vulvoplastia ou à vaginoplastia tem especificidades, que dependem da técnica cirúrgica e dos tecidos utilizados para a construção da neovulva ou da neovagina. (ver Cuidados pós-cirúrgicos)
215 Bourns A. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients. Toronto: Sherbourne Health - Rainbow Health Ontario; 2020. p.133. 216 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California [homepage na internet]; 2016 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 217 Murphy M. Immodest witnessing: The epistemology of vaginal self-examination in the U.S. feminist self-help movement. Fem Stud. 2004; 30(1): 115–47. 218 Seehusen DA, Johnson DR, Earwood JS, Sethuraman SN, Cornali J, Gillespie K, Doria M, Farnell IV E, Lanham J. Improving women’s experience during speculum examinations at routine gynaecological visits: randomised clinical trial. BMJ Online First. 2006; June(27): 3. 219Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California [homepage na internet]; 2016 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines
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Saúde reprodutiva
Fertilidade e reprodução
Pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero que não tenham realizado supressão puberal, hormonização ou cirurgias genitais/gonadais são tão férteis quanto pessoas cisgênero. A supressão puberal com análogos de hormônio liberador de gonadotrofina (GnRH), quando iniciada no estágio 2 de Tanner, impede a formação de tecido reprodutivo funcionante, assim como a suspensão deste tratamento permite o retorno à produção hormonal endógena e, portanto, a maturação do sistema reprodutor (entre 6 meses a 3 anos percebe-se produção de espermatozoides, porém não há estudos sobre tempo necessário para maturação de oócitos).220 Apesar do aumento da fertilidade, a suspensão de análogos GnRH não costuma ser tolerada por pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero por gerar transformações corporais indesejadas. Métodos reprodutivos que utilizam tecido ovariano e testicular imaturo ainda estão sendo pesquisados.221 Pessoas que atingiram os estágios de Tanner 3 ou 4, assim como aquelas que completaram sua puberdade, são capazes de produzir oócitos e espermatozoides maduros. Algumas técnicas cirúrgicas disponíveis para transformação corporal (como remoção de gônadas ou útero e algumas cirurgias de redesignação genital) logicamente afetam a fertilidade. Mas mesmo pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que utilizam hormônios para transformação corporal e mantêm suas gônadas e demais órgãos com potencial função reprodutiva tendem a ter grande queda do potencial reprodutivo, cuja recuperação completa é comum, mas imprevisível após a cessação da hormonização.222 O uso prolongado de estrógeno, assim como o uso de antiandrógeno, reduz a qualidade e a concentração de espermatozoides no sêmen, enquanto o uso prolongado de testosterona 220 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869-903. 221 Heath RA, Wynne K. A guide to transgender health: state-of-the-art information for genderaffirming people and their supporters [livro eletrônico]. Santa Barbara, California: Praeger, an imprint of ABC-CLIO, LLC; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em:
https://books.google.com.br/books?id=I_8cvgEACAAJ&dq=A+Guide+to+Transgender+Health:+ State-of-the- art+Information+for+Gender- Affirming+People+and+Their+Supporters&hl=ptBR&sa=X&ved=0ahUKEwj5hcXuxIrqAhWlK7kGHXgcALwQ6AEI
KDAA 222 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869-903.
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201 tende a causar atrofia endometrial e anovulação, mesmo que temporariamente.223 Portanto, ao oferecer transformações corporais, deve-se dialogar sobre desejo reprodutivo e possibilidade de criopreservação de gametas (não oferecida pelo SUS). (ver ‘Anexo 2. TCLE para uso de testosterona’ e ‘Anexo 3. TCLE para uso de estrógeno e antiandrógeno’) Há fluxo para encaminhamento a serviços de fertilidade humana às pessoas com útero e ovário que não tenham completado ainda 35 anos de idade, se tiverem parceria afetivo-sexual com espermatozoide. Há poucas vagas disponíveis em serviços de fertilidade humana, portanto existe fila de espera. Pessoas com pênis e testículos que queiram tratar de sua fertilidade podem ser encaminhadas para ambulatórios de urologia, caso o serviço de atenção primária à saúde não tenha condição de responder à sua demanda. Os cuidados de pré-natal habituais devem ser oferecidos aos homens trans e às demais pessoas transmasculinas gestantes, porém é importante dialogar com a pessoa atendida sobre possíveis desconfortos em frequentar um ambiente habitualmente repleto de mulheres, disforias em relação ao seu corpo ou em relação à via de parto proposta, possibilidades de amamentação, preparo do serviço de parto para o atendimento acolhedor desta pessoa e possibilidade de inclusão da rede de apoio pessoal nos cuidados pré-natais e de puerpério.224 A gestação e o aleitamento ainda são consideradas contraindicações para a hormonização de pessoas transmasculinas devido à possibilidade teórica de androgenização fetal e pelo risco de câncer observado em experimentos animais.225 Apesar de muitas pessoas transmasculinas gestarem em uso de testosterona e não gerarem fetos com genitália atípica, não existem estudos que considerem doses de testosterona exógena que seguramente não causariam androgenização, pois seus efeitos em fetos são observados mesmo ao uso de doses insuficientes para as transformações corporais esperadas por pessoas transmasculinas.226 Portanto, caso uma pessoa em uso de testosterona engravide, sua suspensão deve ser considerada o mais precocemente possível.227
223 De Roo C, Tilleman K, Tsjoen G, De Sutter P. Fertility options in transgender people. Int Rev Psychiatry. 2016; 28(1): 112-9. 224 Amorim APA. O atendimento de pessoas trans na Atenção Primária à Saúde. 31 jan 2020. SBMFC [internet]
2020 jan 31 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/o-atendimento-de- pessoas-trans-na-atencao-primaria-a-saude/
225 Silva AE, Serakides R, Cassali GD. Carcinogenese hormonal e neoplasias hormonio-dependentes. Ciência Rural [periódico na internet] 2004 Mar-Abr, 34(2): 625-633 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cr/v34n2/a48v34n2.pdf 226 Castro M, Elias LL. Causas raras de pseudo-hermafroditismo feminino: quando suspeitar? [internet] Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia 2005 fev; 49(1) [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/abem/v49n1/a17v49n1.pdf 227 Amorim APA. O atendimento de pessoas trans na Atenção Primária à Saúde. 31 jan 2020. SBMFC [internet]
2020 jan 31 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/o-atendimento-de- pessoas-trans-na-atencao-primaria-a-saude/
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202 A lactação pode ocorrer espontaneamente em pessoas transmasculinas que mantêm o tecido glandular mamário após uma gestação, assim como pode ser induzida em pessoas com tecido glandular mamário desenvolvido. Para a indução da lactação para aleitamento por pessoas transmasculinas com tecido mamário, deve-se suspender uso de testosterona e utilizar protocolos habitualmente oferecidos para mulheres cisgênero - uso de estrógeno e progestágeno por pelo menos 3 meses e estímulo mecânico mamário por pelo menos um mês, junto ou não ao uso de galactogogos. Para a indução de lactação para aleitamento por pessoas transfemininas que já possuam tecido glandular mamário desenvolvido previamente, recomenda-se uso de progestágenos para o preparo do tecido glandular mamário e estrógenos em doses aumentadas gradualmente (até 400mg de progesterona e 8 a 12mg de estradiol ao dia. O uso de galactogogos (domperidona 10 a 20 mg, 3 vezes ao dia, durante 7 a 28 dias; metoclopramida 10 mg, 3 a 4 vezes ao dia, durante 7 a 14 dias) é eficaz, assim como estímulos mecânicos (ordenha manual ou bomba de sucção até 8 vezes ao dia, por pelo menos 5 minutos). Técnicas de translactação ou relactação podem ser utilizadas como parte do estímulo mecânico à produção de leite ou como forma eficaz de oferecer aleitamento. O uso de sonda nasogástrica no 4 ou 6 fixada junto ao mamilo e ligada a equipo, seringa ou copo contendo leite é um método comum e possível de ser apoiado pelos serviços de saúde. Os conhecimentos, crenças e atitudes sobre aleitamento próprios da pessoa gestante ou da pessoa que oferece o aleitamento, assim como suas experiências prévias, pode influenciar a experiência atual. Portanto é importante realizar abordagem das percepções individuais e oferecer espaços de diálogo abertos e livres de julgamentos. O suporte ao aleitamento deve ser oferecido por profissionais de saúde, mas também pode ser oriundo da participação de grupos de pessoas que vivenciam o aleitamento.228
228 Núcleo de Telessaúde Santa Catarina. Quais as orientações para o uso da técnica de relactação/translactação? 5 julho 2018, Segunda Opinião Formativa - SOF. [Internet] Disponível em:
https://aps-repo.bvs.br/aps/quais-as-orientacoes-para-o-uso-da-tecnica-de-relactacao- translactacao/
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Contracepção
Apesar de o uso de testosterona reduzir fertilidade e causar supressão do eixo hipotálamo-gonadal com atrofia endometrial e vaginal em pessoas transmasculinas, e o uso do estrógeno e antiandrógenos reduzir a qualidade e a concentração de espermatozoides no sêmen de mulheres trans e travestis pelo mesmo motivo, a hormonização em pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero não pode ser considerada como contracepção efetiva. 229
Caso a pessoa tenha práticas sexuais que possam resultar em gravidez indesejada, pode-se oferecer: ● Camisinha interna / Camisinha vaginal; ● Camisinha externa / Camisinha peniana; ● DIU (de cobre ou hormonal - o DIU com levonorgestrel pode ser solicitado através de fluxo específico, para inserção pelo serviço solicitante); ● Diafragma; ● Anticoncepcionais hormonais, a depender do uso de hormônios e seus efeitos colaterais (para pessoas transmasculinas em uso de testosterona, pode ser utilizada anticoncepção de emergência e outros progestágenos, considerando-se riscos e efeitos colaterais. O implante de etonogestrel pode ser solicitado através de fluxo específico, para que seja inserido no serviço solicitante. O uso de estrógenos pode ser considerado, porém deve-se atentar para o aumento do risco de eventos tromboembólicos e para possíveis efeitos corporais indesejados, como menstruação e turgecência mamária); ● Esterilização definitiva (vasectomia e laqueadura tubária).
229 Okano SHP, Pellicciotta GGM, Braga GC. Aconselhamento contraceptivo para o paciente transgênero designado mulher ao nascimento. FEMINA 2022;50(9):518-26. Disponível em: https://www.febrasgo.org.br/media/k2/attachments/Femina-9-2022-WEB.pdf
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Pessoas em situação de violência
A violência muitas vezes pode ser perpetrada de maneira não física, como abusos psicológicos, abusos verbais e a não garantia de acesso à serviços básicos. Quando falamos sobre pessoas trans, travestis e com variabilidade de gênero essas violências podem ser somadas a outros agravantes como o racismo, machismo, classismo e a xenofobia. Quando se analisam dossiês que mapeiam violências sofridas por essa população nota-se um crescente aumento no número de casos registrados. Isso pode não estar diretamente ligado com o aumento no número de casos, mas a um maior número de denúncias, haja vista que atualmente existe amparo legal para tipificação criminal das violências sofridas por essa população, também denominada como LGBTIA+fobia. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26) e a LGBTIA+fobia, que contempla atos de “discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”, foi criminalizada no Brasil, enquadrada nos termos da Lei de Racismo (no 7.716/89). LGBTIA+fobia é crime inafiançável e imprescritível. (ver Direitos) O Brasil segue há 14 anos consecutivos na liderança do ranking mundial de registro de assassinatos de pessoas trans no mundo em números absolutos. De 2008 a 2022, dos 4369 assassinatos registrados no mundo, 1741 (quase 40%) ocorreram no Brasil, com média de 124,4 assassinatos por ano no país.230,231 Dentro dessa população, encontra-se grande vulnerabilidade de profissionais do sexo: de acordo com o Mapeamento de Pessoas Trans no Município de São Paulo, das 74% pessoas que afirmaram que trabalham ou trabalharam como profissionais do sexo disseram já ter sofrido violências físicas durante o exercício de sua profissão, assim como no mínimo 54% das pessoas cujos assassinatos foram registrados em 2022 também eram trabalhadoras do sexo.232 A cor da pele é outro fator de vulnerabilidade à violência dessa população. Pessoas que sofrem violência sexual devem receber atenção e cuidado das equipes de saúde. A violência sexual tem um impacto profundo na saúde física e mental pois, além
230 TvT research project. “Transrespect versus Transphobia Worldwide”.Transgender Europe [internet]; 2022. [acesso em 2023 mar 19] Disponível em: <https://transrespect.org/en/map/trans-murder-monitoring/. 231 Benevides BG. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2022 [internet]. Brasília; ANTRA; 2023 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2023/01/dossieantra2023.pdf 232 Centro de Estudos de Cultura Contemporânea. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa [internet]. São Paulo: CEDEC; 2021 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/direitos_humanos/LGBT/AnexoB_Relatorio_Final_Ma peamento_Pessoas_Trans_Fase1.pdf
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205 de gerar consequências imediatas, ela é associada ao aumento no risco de problemas a longo prazo, relacionados à saúde sexual, reprodutiva e emocional. A saúde sexual e reprodutiva está intimamente relacionada a respeito, proteção e cumprimento de direitos humanos - como o direito a não sofrer violência e coerção, à não discriminação, à privacidade e à confidencialidade, assim como o direito pleno à educação, informação e acesso aos serviços de saúde - o que inclui contracepção e serviços seguros para abortamento. Neste contexto, torna-se essencial que os serviços de saúde atuem com acolhimento, respeito e sem julgamento, pois atos discriminatórios reduzem a probabilidade de busca aos serviços no futuro. A exclusão de qualquer pessoa do acesso a serviços de saúde necessários resulta em problemas de saúde evitáveis e constitui-se em violência. Pessoas em situação de rua possuem vulnerabilidade aumentada para violências, o que inclui as situações que podem fazer com que pessoa passe a viver em situação de rua. A LGBTIA+fobia estrutural pode gerar vulnerabilidades extremas e em muitos casos é motivo de quebra do vínculo familiar com consequente abandono pela família de origem e de exclusão social ampla. Essa mesma discriminação faz com que pessoas LGBTIA+ em situação de rua sejam mais propensas a sofrer violências de todos os tipos, inclusive sexuais. O distanciamento de serviços de saúde tende a ter múltiplas causas, que podem estar relacionadas com uma forma de autopreservação de violências institucionais.
Responsabilidades de serviços de saúde em relação às violências Ações propositivas na saúde podem se constituir de estratégias para atender às necessidades específicas dessa população. O atendimento deve considerar acolhimento, promoção à saúde, atendimento às demandas individuais, garantia de sigilo e confidencialidade, promoção de direitos, proteção da pessoa atendida e enfrentamento às situações de violências - inclusive aquelas que podem ocorrer dentro do serviço de saúde. Cabe aos serviços de saúde a implementação de políticas e práticas antidiscriminatórias, com finalidade de respeito aos direitos humanos reconhecidos nacionalmente e internacionalmente. Os Núcleos de Prevenção à Violência (NPV), foram instituídos em todos os serviços de saúde,233 nos diferentes níveis de atenção em saúde, para: • organizar fluxos de atendimento dentro unidade, • acompanhar os atendimentos, • sensibilizar e capacitar as equipes de trabalho, • articular e promover ações de promoção e prevenção para superação da violência. 233 Secretaria Municipal de Saúde (São Paulo). Portaria No 1300/2015-SMS.G – Institui os Núcleos de Prevenção a Violência (NPV) nos estabelecimentos de saúde do Município de São Paulo. São Paulo, 2015.
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206 Essas atribuições devem ser realizadas junto a Rede intra e intersetorial e de acordo com as diretrizes da Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência.234 Cada NPV deve ser composto por, no mínimo, quatro profissionais, formando uma equipe multiprofissional. É essencial que nas unidades onde o processo de hormonização é realizado, alguém dessa equipe de referência faça parte do NPV local para pautar e colaborar nas discussões sobre o tema. É importante enfatizar que toda a equipe da unidade de saúde é responsável pela identificação, acolhimento, notificação, atendimento específico e acompanhamento da violência. Pela complexidade envolvida nas situações de violência, os casos identificados devem ser assistidos sempre em Rede. O apoio das Redes intra e intersetoriais é de vital importância, tanto para as pessoas em situação de violência, quanto para profissionais que realizam o atendimento. Além do acolhimento, atendimento e encaminhamentos prestados à vítima (cuidados), todo caso de violência deve ser notificado no Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN).235 No Município de São Paulo, a notificação de toda violência ou suspeita de violência é obrigatória, o que inclui as violências sofridas por pessoas de todas as faixas etárias.236,237,238 Alguns campos da ficha de notificação de violência são especialmente importantes quando se trata da população LGBTIA+: • campo 33 – “Nome social”, • campo 36 - “Orientação sexual”, • campo 37 - “Identidade de Gênero”,
234 Hiraoka AH, Kitagawa BY, Aguiar BS, Leal CHS, Zeefried CR, Peres DDG et al. Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde da Pessoa em Situação de Violência [cartilha na internet]. São Paulo: SMS; 2015 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/baixacartilhaviolencia(1).pdf 235 NDANT/DVE/COVISA, Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). SINAN Violências - Instrutivo complementar para o município de São Paulo [internet]. São Paulo: SMS; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/instrutivo_sinan_violencia_2019.pdf 236 Governo Municipal (São Paulo). Lei Municipal no 13.671 de 26 de novembro de 2003 - Dispõe sobre a criação do Programa de Informações sobre Vítimas de Violência no Município de São Paulo e dá outras providências. Diário Oficial da Cidade de São Paulo: 27 nov 2003; ano 48 (no225). 237 Governo Municipal (São Paulo). Decreto Municipal no 48.421 de 06 de junho de 2007 - Regulamenta a Lei no 13.671, de 26 de novembro de 2003, que dispõe sobre a criação do Programa de Informações sobre Vítimas de Violência no Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo: 07 jun 2007; ano 52 (no104). 238 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G No 1.102 de 19 de junho de 2015 - Estabelece a notificação compulsória dos casos de violências e de acidentes, nos serviços de saúde públicos e privados, no Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo: 20 jun 2015; 60 (113):27.
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207 • campo 55 - “Essa violência foi motivada por”, especificamente a opção 2 – “Homofobia/Lesbofobia/Transfobia”. Esses campos estão destacados na figura a seguir.
Figura 8 – Ficha de notificação de violência, com destaque para campos 33, 36, 37 e 55.
Fonte: SINAN (Ministério da Saúde) – Ficha de notificação versão 5.1 Vale destacar que os campos 36 e 37 são direcionados para pessoas a partir de 10 anos de idade, conforme orientação do Ministério da Saúde, para crianças com idade menor de 10 anos, deve-se preencher estes campos com a opção 8 – não se aplica. Para saber como preencher corretamente a ficha de notificação, é importante consultar o instrutivo SINAN, pois a falta ou incorreto preenchimento pode comprometer o uso da informação (Referência - Instrutivo SINAN). Importante ressaltar que: notificar violência não é denunciar. A ficha de notificação SINAN é um instrumento de vigilância em saúde e não pode, em hipótese alguma, sair do Sistema de Saúde. Notificações não são enviadas ao Conselho Tutelar, Delegacias, Fóruns, serviços de outras secretarias, outras instâncias, etc. Portanto, a notificação não é suficiente em situações em que é necessário realizar contato com outros Órgãos e, nesses casos, profissionais de saúde devem realizar relatórios e/ou comunicados específicos para envio ao outro Órgão. Em caso de situações de violência contra criança ou adolescente, é necessário
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208 encaminhamento do caso ao conselho tutelar, e casos de violência contra o idoso, deve-se fazer encaminhamento para o Grande Conselho do Idoso.239 Em relação a todas as outras vítimas, vale lembrar que toda decisão de denunciar ou não, de onde denunciar e de que caminhos seguir é sempre da pessoa que sofreu a violência. Cabe a profissionais de saúde orientar, respeitar a decisão da pessoa e acompanhá-la! Os dados sobre violências notificadas no município de São Paulo podem ser acessados via TABNET. As tecnologias de Cultura de Paz enriquecem a elaboração de projetos de intervenção que podem gerar mudanças nas crenças e nas atitudes. A utilização dessas ferramentas contribui para a formação de uma visão mais integral do cuidado, bem como favorecem o empoderamento das pessoas em situação de violência. Entre elas destacamos:
As experiências que possibilitam mudança dependem da potência da experiência. Necessitam ter significado para o sujeito, estão a serviço da individuação e da singularização. São estruturadas a partir de um conjunto de fatores que envolvam relações e cuidados capazes de mobilizar os recursos necessários para gerar transformação. Esses fatores são: Não julgamento, afeto, encontro genuíno, vinculo, persistência estabilidade etc.
239 NDANT/DVE/COVISA, Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). SINAN Violências - Instrutivo complementar para o município de São Paulo [internet]. São Paulo: SMS; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/instrutivo_sinan_violencia_2019.pdf
Mediação de Conflito
Comunicação Não Violenta
Círculo Restaurativo
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Uso de substâncias
O uso recreativo de substâncias psicoativas não indicadas clinicamente pode ter a intenção de proporcionar experiências e resultados relacionados a convívio social, práticas sexuais, auto-percepção, alteração do estado vigil, estratégia de resiliência perante dificuldades, produtividade laboral, produtividade acadêmica, entre outras. São comuns: álcool, maconha, cocaína, poppers, LSD, psiciloscibina, MD, ayahuasca, metanfetamina, anfetaminas, benzodiazepínicos, estabilizadores de humor e antidepressivos, entre outras substâncias. O uso de anabolizantes e substâncias que aumentam o volume da massa muscular tende a se associar a práticas musculares anaeróbicas, com a finalidade de aumentar ou hipertrofiar a musculatura. Seu consumo pode ter a intenção de levar a pessoa a atender determinados padrões estéticos, atingir melhora da disposição física e ampliar a percepção. São comuns: testosteronas e substâncias precursoras, creatina, suplementações alimentares e medicações de origem farmacêutica. É importante oferecer espaço livre de julgamentos para que a pessoa atendida possa se sentir confortável para relatar sua experiência com uso de substâncias, seus objetivos e seus planos de consumo. Cabe a profissionais de saúde oferecerem apoio em casos de desejo de cessação de uso e, também, oferecerem cuidados e estratégias de redução de danos caso haja manutenção do uso.
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Redução de danos A Redução de Danos (RD) é uma ética de cuidado que visa minimizar os danos, tanto sociais quanto à saúde, relacionados ao uso de substâncias psicoativas. "A Redução de Danos é um conjunto de políticas, programas, serviços e ações que visam reduzir os danos a indivíduos, comunidades e à sociedade relacionados às drogas, incluindo a infecção pelo HIV". (OMS, 2018) Para a OMS, a redução de danos "é fundamental na prevenção da infecção pelo HIV entre as pessoas que injetam drogas e suas parcerias sexuais".240 Ainda que marcada pelas ações no campo da saúde, a RD nunca se limita apenas a essa esfera. Suas práticas são repensadas e construídas a todo tempo e buscam, ao invés de olhar para a substância utilizada, olhar para o sujeito, sua relação com a droga e com o mundo. Para isso, é preciso ampliar as ações de saúde para a esfera da cidadania e dos Direitos Humanos. Na RD, o próprio sujeito é visto como protagonista do cuidado com a sua saúde, da busca pela garantia e conquista de seus direitos. Portanto, a escolha por um tratamento ou uma estratégia de cuidado, assim como os objetivos, são delimitados pela pessoa usuária em conjunto com uma profissional da rede, podendo ou não visar a abstinência. Mesmo que a abstinência seja uma meta a ser atingida, diversas estratégias de RD podem ser usadas no caminho desta meta. Muitas vezes, as demandas urgentes da pessoa usuária estão em outros campos, como moradia ou trabalho, questões que podem ser determinantes para a organização do próprio uso da substância. Pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero que trabalham com sexo, por exemplo, por vezes têm seu uso atrelado à necessidade de trabalhar no período da noite e por uma longa jornada de horas. Além disso, situações de violência, cárcere privado e uso de substâncias por vezes não estão totalmente sob o controle dessas pessoas, colocando-as em maior vulnerabilidade à infecção pelo HIV e ao uso abusivo de substâncias psicoativas, muitas vezes omitidas quando em contato com um serviço de saúde ou assistência social, por medo e desconhecimento de seus direitos enquanto usuárias. Ao mesmo tempo, ao tentar acessar serviços de saúde e/ou de assistência social, ela se depara com inúmeras violências que se sobrepõem como: preconceito e discriminação em espaços
240 Word Health Organization. International Harm Reduction Development Program [Internet]. 2018.
Disponível em: http://www.euro.who.int/en/health-topics/communicablediseases/hivaids/policy/policy- guidance-for-areas-of-intervention/harm-reduction
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211 públicos, desrespeito ao seu nome social, discriminação por ser usuária de drogas oupor ser trabalhadora do sexo, entre muitas outras. O uso de determinadas drogas no Brasil não é um crime passível de prisão. O artigo 28 da Lei n°. 11.343/2006 também conhecida como “Lei de Drogas”, prevê penas restritivas de direitos para quem faz uso, com sanções administrativas, educativas ou penais. A RD é uma diretriz da Portaria MS no. 3.088/2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), e também é uma prática regulamentada, desde 2005, por meio da Portaria no 1.028/2005. Portanto, é um direito de todas as pessoas e uma estratégia mais humana e eficaz de lidar com o uso de drogas. Por ser interseccional, é responsabilidade de todas e todos que atuam na rede de atenção à saúde e assistência social atuarem de acordo com tais diretrizes, terem conhecimento sobre a lei e os direitos das pessoas que fazem uso de álcool, tabaco e outras drogas, para que possam ser vinculadas aos serviços e aderir aos tratamentos ou encaminhamentos adequados. Destacamos, por fim, que a estratégia de Redução de Danos fundamenta as práticas em Saúde Mental e deve atuar, prioritariamente em dirimir o sofrimento psíquico e a vulnerabilidade. A atuação deve ocorrer onde o indivíduo se encontra, ao que ele demanda e em seu determinado momento de vida. O uso de tabaco, álcool e outras drogas pode ser avaliado pelas equipes vinculadas às Unidades Básicas de Saúde (UBS) de forma contextual. É importante a diferenciação do uso esporádico ou recreativo, uso abusivo e dependência química. Tal avaliação poderá evidenciar a relação do sujeito com a substância em questão e como estão as demais relações desse sujeito com o mundo que o cerca, como as relações familiares, de amizades e laços sociais, com o mundo do trabalho, dentre outras. Quanto mais comprometidas forem as relações do sujeito com o mundo, em detrimento da relação com a droga, maiores são os prejuízos e a gravidade desse uso. Para o acolhimento e tratamento das demandas relacionadas ao uso problemático de álcool e outras drogas e à dependência química, contamos com o atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS AD) do município, que compõe a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ofertando atendimento multiprofissional sem necessidade de encaminhamento prévio. Há também os CAPS AD III, os quais possuem funcionamento 24h e dispõem de leitos de hospitalidade noturna para acolhimento de situações de crise a partir da intensificação do cuidado. Quando necessário,
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212 o atendimento de urgência e emergência deve ser realizado em serviços de pronto atendimento de hospital Geral, com internação de curta duração para desintoxicação. Há também Unidades de Acolhimento (UA), serviços residenciais de caráter transitório (com um tempo de permanência determinado) que compõem a RAPS, essencialmente vinculadas aos CAPS AD, e que têm como objetivo oferecer acolhimento e cuidados em saúde a usuárias que apresentem maior vulnerabilidade e fragilidade social decorrente do uso abusivo de substâncias psicoativas.
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213 Crianças e adolescentes com vivência de variabilidade de gênero
As UBS e os Serviços de Referência são responsáveis pelo acolhimento e acompanhamento das demandas que surgirem, tanto pessoais quanto de familiares de crianças e adolescentes trans, travestis ou com variabilidade de gênero, de maneira multiprofissional e intersetorial. Há muitas diferenças na abordagem a depender de em que idade a criança ou adolescente chega ao serviço de saúde. Este acolhimento deve ter como objetivo principal apoiar a criança no seu bem-estar emocional e na presença ou ausência de sua percepção quanto à questão de gênero, além de proporcionar apoio e orientações a familiares, responsáveis e instituições de ensino. O desenvolvimento da identidade de gênero faz parte do processo de desenvolvimento global da criança e adolescente. Tão logo as crianças começam a perceber sua identidade de gênero, o que pode ocorrer a partir dos 2 anos de idade, elas podem apresentar vivência de variabilidade de gênero com ou sem disforia corporal associada ao gênero (ver Saúde mental). Não são todas as crianças com variabilidade de gênero que se identificarão como pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero na idade adulta; porém uma disforia corporal associada a gênero mais intensa é provavelmente um preditor de a vivência de variabilidade de gênero persistirá. Da mesma forma, crianças que se sentem confortáveis com o gênero designado ao nascimento podem se identificar como pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero mais tarde, na adolescência ou na vida adulta. Crianças de 3 a 5 anos podem transitar sobre a sua autopercepção de identidade de gênero e o papel de profissionais de saúde é permitir que experienciem todas as facetas da sua identidade, sem forçá-las à congruência com o gênero designado ao nascimento ou com outro gênero. As crianças podem ser imaturas, mas muitas vezes estão muito inteiradas das situações. Quando a criança começa a falar e a se expressar, demonstra a identidade de gênero com a qual se identifica de diversas maneiras e é capaz de nomeá-la. Por volta dos 6 anos, já percebe que o gênero não muda de acordo com a roupa que usa.241 De qualquer maneira, é muito comum que a criança com variabilidade de gênero, assim como sua família, experimente ansiedade e sofrimentos decorrentes da dificuldade de compreensão do fenômeno e sua aceitação social. É importante que a criança e sua família recebam um acompanhamento multiprofissional. Na fase pré-puberal (estágio de 241 AMTIGOS – Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do IPq-HCFM/USPI : proposta de trabalho com crianças, adolescentes e adultos. BIS, Bol. Inst. Saúde (Impr.) ; 19(2): 86-97, Dez. 2018.
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214 desenvolvimento puberal Tanner 1), não há nenhuma intervenção corporal a ser realizada e o objetivo do acompanhamento é informar e preparar as pessoas responsáveis, assim como garantir que a criança cresça em um ambiente seguro e acolhedor, para que possa desenvolver-se de forma saudável, iniciando sua transição social se assim o desejar. É papel também de profissionais de saúde intervir junto a instituições como a escola ou casa de acolhida de forma a garantir um ambiente seguro para as crianças. Algumas crianças podem indicar a necessidade de uma transição social para o gênero com o qual se identificam, como, por exemplo, o uso de roupas, acessórios, estilo dos cabelos, assim como uso de pronome diferente ou de nome social utilizado. Cabe à equipe mediar o processo, para garantir direitos e ambientes seguros para a criança, o que poderá ser útil tanto para a criança entender melhor sua identidade de gênero quanto para a equipe acompanhá-la. Crianças e adolescentes que têm a percepção de que seu gênero identitário diverge do que é socialmente esperado para o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, geralmente experimentam ansiedade e certos graus de sofrimento em relação às transformações físicas da puberdade,242 o que para algumas pessoas pode ser considerado inuportável. Por isso, é apropriado intervir com o bloqueio da puberdade e, posteriormente, em alguns casos, introduzir a hormonização para desenvolvimento de características corporais que são desejadas por aquela pessoa. (ver Bloqueio puberal e hormonização em adolescentes) Considerando os comprovados benefícios em prevenir a disforia corporal associada a gênero e garantir melhores resultados físicos e psíquicos, quando comparado a jovens trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que iniciam acompanhamento somente após as primeiras fases da puberdade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) elaborou parecer técnico específico em 2013243 que recomendou o acompanhamento de adolescentes em centro dotado de estrutura que possibilite o cuidado adequado e a integralidade da atenção. Posteriormente, esse parecer foi substituído pela Resolução CFM 2.265/2019, que manteve essa recomendação. Essa assistência deve ocorrer o mais precocemente possível, e é extremamente recomendável a supressão da puberdade antes do desenvolvimento irreversível das características sexuais secundárias. (ver Bloqueio puberal e hormonização em adolescentes)
242 Sociedade Brasileira de Pediatria. Disforia de gênero - Guia Prático Atualização - Dep Científico Adolescência [Internet]. 2017; 4: 18. Disponível em: http://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/19706c-GP_-_Disforia_de_Genero.pdf 243 Silva LFG. Parecer CFM no 8/13 – Processo-consulta CFM n o 32/12. Terapia hormonal para adolescentes travestis e transexuais [Internet]. Conselho Federal de Medicina. 2013.
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215 Porém, comumente adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero já chegam à unidade de saúde com uma identidade de gênero bem definida e um desenvolvimento puberal mais avançado, às vezes já realizando hormonização por conta própria. Costumam apresentar uma elevada carga de sofrimento mental e social,244 muitas vezes com baixíssimo apoio familiar, e com frequente histórico de violência e de abandono escolar. Profissionais que realizarão o acolhimento devem entender suas histórias e evitar o julgamento. Adolescentes com 16 anos ou mais que manifestarem interesse podem receber acompanhamento para hormonização. Essas pessoas e suas famílias devem ser atendidas na UBS de referência de sua residência para orientação e encaminhamentos necessários. Identificada a demanda de transformação corporal, a UBS poderá encaminhar a pessoa adolescente e sua família para a unidade de referência de adolescentes na Rede SAMPA Trans (cada Coordenadoria Regional de Saúde - CRS tem sua referência com equipe capacitada). A unidade da Rede SAMPA Trans deverá acolher o caso, podendo encaminhar para o Centro de Referência de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais Janaina Lima (CR POP TT) por agenda regulada. A equipe da atenção básica tem um papel fundamental no atendimento de adolescentes e suas famílias (que podem experimentar sofrimento agudo) acolhendo e promovendo o respeito - sobretudo ao considerar-se que os serviços específicos para adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero ainda são escassos e de mais difícil acesso. É importante também oferecer serviços de saúde mental, pela própria UBS e em conjunto com equipamentos de saúde mental que atendam crianças e adolescentes. (Ver Saúde Mental) Independentemente da idade, entre as ações que a equipe poderá tomar junto a essas pessoas adolescentes estão: • criação de um ambiente acolhedor • respeito à identidade de gênero, ao pronome e ao nome social • diálogo franco com familiares e/ou as pessoas responsáveis, que nem sempre respeitam a identidade e também podem necessitar de suporte. A equipe de saúde poderá promover também com o apoio às estratégias individuais de afirmação de gênero, realizado de diversas formas como: observar e acompanhar as ações individuais relacionadas à afirmação de gênero com oferta de informações com boa evidência científica para que a pessoa possa realizar escolhas conscientes, realizar ofertas específicas relacionadas às transformações corporais (ver Transformações corporais) e 244 Connolly MD, Zervos MJ, Barone CJ 2nd, Johnson CC, Joseph CLM. The Mental Health of Transgender Youth: Advances in Understanding. J Adolesc Health. 2016 Nov; 59(5): 489–95.
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216 utilizar o nome social (quando a pessoa o tiver) no cartão do SUS, no prontuário, em exames e por toda a equipe. Muitas vezes o cartão do SUS será o primeiro documento com o nome desejado e a família deve ser orientada que este uso não implica em uma mudança legal; ao mesmo tempo em que caberá, muitas vezes, à equipe de saúde a primeira oportunidade de legitimação dessa estratégia de afirmação de gênero junto à família, frequentemente relutante ou confusa. Entre outras ações importantes da UBS estão: ● atuar junto a responsáveis, informando e orientando essas pessoas e ajudando-as no acolhimento familiar; ● ofertar serviços de saúde geral para adolescentes, de forma que sejam protagonistas de seu cuidado, como atendimentos de queixas agudas, dúvidas relacionadas ao corpo, preocupações específicas com a saúde, vivências de relacionamentos, socialização e rendimento no ambiente escolar, métodos contraceptivos, prevenção e cuidados de IST, etc.; ● aconselhamento em relação a uso de substâncias ou violências; ● ofertar redução de danos para o possível uso de hormonização por conta própria; ● intervenção junto à escola para trabalhar conjuntamente questões como bullying e outras violências, direito ao uso de nome social e direito ao uso de banheiros de acordo com seu gênero identitário; ● intervenção junto à justiça ou à assistência social.
No atendimento a adolescentes trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero com menos de 18 anos, devem ser respeitados os princípios de atendimento a adolescentes em geral. Uma avaliação deve ser feita por profissionais de saúde sobre sua capacidade de discernimento e autonomia para balizar a relação entre o serviço de saúde, profissional de saúde, adolescente e responsável – que devem ser informadas dos direitos de cada parte no atendimento. Os direitos de adolescentes incluem: • direito a atendimento desacompanhado em serviços de saúde; o direito a momentos privativos na consulta, sem presença de responsável; • direito ao sigilo, com exceção de casos de risco à vida; o sigilo deve ser respeitado sobretudo no início de vida sexual, uso de drogas ou infecção pelo HIV em adolescente que se mostra capaz de seguir seu acompanhamento, por exemplo. (ver Direitos, Infância e Adolescência)
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217 Deve ser explicado à(s) pessoa(s) responsável(is) que esses direitos ao sigilo são importantes para a preservação da saúde de adolescentes, já que podem abrir o único canal pelo qual questões importantes de saúde poderão ser resolvidas.245 Assim, na adolescência, também com relação à saúde sexual, profissionais de saúde devem verificar e realizar (caso não tenha sido feita) a vacinação de ISTs disponíveis no serviço: de HPV e de hepatite B. Também pode abordar a importância de aprendizado do uso de preservativo externo e interno e já oferecer esses insumos para utilização, tanto para as que mantenham relações sexuais quanto para as que ainda não iniciaram vida sexual ou alegam não possuir interesse sexual, de forma que possam treinar o seu uso para quando necessário, caso tenham esse desejo. (ver IST) Para adolescentes trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero que sejam sexualmente ativas com práticas penetrativas, é importante realizar ações de prevenção a doenças e de promoção à saúde, como o uso de lubrificantes a base de água e a oferta de testes rápidos de sífilis, hepatites virais e HIV. Também deve ser orientado o uso de materiais descartáveis, salientando o risco de infecções como o compartilhamento de giletes, lâminas e navalhas - que devem ter uso pessoal ou serem esterilizadas com hipoclorito.
245 Sociedade Brasileira de Pediatria [homepage na internet]. Manual de Orientação – Consulta do adolescente: abordagem clínica, orientações éticas e legais como instrumentos ao pediatra. 2019 jan 10. [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21512c-MO_-_ConsultaAdolescente_- _abordClinica_orientEticas.pdf
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Atribuições por categorias profissionais
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219 Todas as pessoas trabalhadoras de serviços de saúde, sejam contratadas através de concurso público, por Organizações Sociais de Saúde, por empresas terceirizadas ou sejam profissionais colaboradoras que prestam serviço voluntário em equipamentos de saúde, são responsáveis por zelar pelos direitos, pela segurança e pela assistência de saúde adequada das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. É imprescindível que os serviços se organizem para estruturar os fluxos de cuidado necessários para esse fim, com base nas informações trazidas por este documento e, preferencialmente, dentro da lógica de gestão participativa e de cogestão.246 Nesta seção, abordaremos ações que são específicas de cada setor estabelecido dentro das unidades de saúde e de cada categoria profissional envolvida no cuidado da população. O cuidado em assuntos relacionados à sexualidade deve ser oferecido a todas as pessoas e não somente às pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero. As ações relacionadas à sexualidade, que devem compor o cotidiano de profissionais que atuam na área da saúde, podem ser verificadas no Quadro 22. Aprofundamentos de temas e discussões de casos podem ocorrer em redes de serviços locais ou municipais. A SMS de São Paulo possui espaços de educação permanente multiprofissionais e também específicos de diversas categorias profissionais, que são divulgados e podem ser acessados através das interlocutoras de Saúde LGBTIA+ de cada Coordenadoria Regional de Saúde.
246 Ministério da Saúde (BR). Gestão participativa e cogestão [Internet]. Textos Básicos de Saúde. 2009: 56. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestao_participativa_cogestao.pdf%5Cnhttp://bvsm s.saude.gov.br/bvs/publicacoes/epub/gestao_participativa_cogestao.epub
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220 Quadro 22 – Ações necessárias para oferecer cuidados em relação à sexualidade 10 ações importantes e que devem fazer parte do trabalho de profissionais da Atenção Primária à Saúde
1. Não assuma que você sabe ou que consegue descobrir a orientação sexual, a identidade de gênero ou o desejo reprodutivo de uma pessoa. Pergunte sempre! Isso não é ofensivo e pode disparar uma boa conversa sobre preconceitos mesmo com quem não é LGBTIA+. 2. Durante uma consulta, ao abordar sexualidade, IST, reprodução e anticoncepção, pergunte sobre a existência e os tipos de práticas sexuais da pessoa. Mesmo para casais monogâmicos formados por mulher cisgênero e homem cisgênero, com práticas sexuais entre si, existem outras formas de transar além da penetração vaginal por um pênis. Saiba oferecer prevenção de IST direcionada a todas as práticas sexuais. 3. Pergunte sobre os termos que cada pessoa acredita definirem sua identidade de gênero, sua orientação afetivo-sexual, suas relações, seus comportamentos, suas práticas sexuais e seus grupos de convivência. Peça permissão para utilizar os mesmos termos, pois algumas expressões conhecidamente ofensivas podem ser utilizadas exclusivamente por alguns grupos como forma de enfrentar preconceitos e afirmar sua existência. 4. Garanta atendimento privativo e com sigilo das informações, mesmo em relação a demais membros da equipe (principalmente aqueles que não realizam consulta). O medo de violência pela família ou pela comunidade pode ser um motivo para a pessoa não conversar com profissionais. 5. A exclusão social e a violência são importantes causas diretas e indiretas de adoecimento de pessoas LGBTIA+ e, geralmente, são causas ignoradas e/ou negligenciadas por profissionais. O risco aumenta quando outras opressões se somam à LGBTIA+fobia, como machismo, racismo, etarismo, discriminações de classe socioeconômica e de formação familiar. Aborde e considere essas situações ao investigar um problema e ao propor uma estratégia de cuidado. Preencha os campos destinados à orientação sexual e identidade de gênero na ficha de notificação de violência. 6. A equipe deve oferecer ativamente o uso do nome social, no momento do cadastramento no serviço de saúde. O nome social deve ser utilizado sempre, por toda a equipe de profissionais e em todos os documentos do serviço. 7. Aprenda a acompanhar (e, no caso de profissionais da medicina, também a prescrever) a hormonização de pessoas transexuais e travestis que desejem transformações corporais. Além de ser uma necessidade para muitas dessas pessoas, o risco biológico do uso de hormônios está relacionado principalmente à automedicação com substâncias inadequadas e que costumam ser utilizadas de maneira errada. 8. Organize um ambiente de trabalho que acolha as diferenças e que possa enfrentar as violências sofridas pelas pessoas atendidas e por profissionais dentro do serviço de saúde, através de discussões nas reuniões de equipe, educação continuada e permanente, formação de núcleos de prevenção à violência, ouvidoria efetiva, espaço aberto e seguro para escuta ou outras estratégias. A violência institucional é uma realidade que não pode ser ignorada. 9. Conheça ou forme uma rede intersetorial para garantir acolhimento, atendimento e direitos para as pessoas LGBTIA+ no território que você atende. Informe-se dos direitos garantidos pelo seu município ou estado. 10. Converse sobre as percepções de gênero e aborde as expectativas de cada família para suas crianças. Mulheres e homens cisgênero heterossexuais também estão sujeitos a violências e adoecimentos por consequência dos papéis sociais e dos estereótipos de gênero, transmitidos cultural e historicamente. Fonte: Adaptação de Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (2018) – publicação do Grupo de Trabalho em Gênero, Sexualidade, Diversidade e Direitos
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Acolhimento e atendimento de demanda espontânea
A demanda que a pessoa traz deve ser acolhida, seja ela relacionada à identidade de gênero ou não. Paralelamente, deve-se oferecer à pessoa os cuidados específicos em relação à identidade de gênero, que incluem avaliação das vulnerabilidades individuais (pois nem todas as pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero passam pelas mesmas situações), explicações das disponibilidades do serviço local e do serviço de referência. Se o acolhimento for realizado por trabalhadora da equipe interprofissional, que não for da enfermagem ou da medicina, deve ser ofertado o agendamento para consultas com psicóloga e com enfermeira ou médica (considerando que, inicialmente, somente médicas solicitarão exames específicos para o início e acompanhamento da hormonização). Se o acolhimento for realizado por enfermeira, as demandas trazidas pela pessoa devem ser acolhidas e aproveita-se a oportunidade para oferecer cuidados gerais e específicos de saúde (vacinação, testes rápidos ou sorologias convencionais de acordo com desejo e/ou histórico de vulnerabilidade a IST/HIV/Aids, rastreamentos, transformações corporais seguras caso sejam planejadas pela pessoa etc.). Se o acolhimento for realizado por profissional da área médica, a oportunidade pode ser aproveitada para solicitação de exames que sejam necessários, assim como para a oferta de agendamento com profissional de referência da psicologia da Unidade e agendamento de retorno médico para avaliação dos exames. Nas unidades da Rede SAMPA Trans, o acolhimento deverá ser realizado por uma trabalhadora da equipe multiprofissional, que deverá acolher as demandas trazidas pela pessoa e dar todas as orientações necessárias para o acompanhamento relativo à identidade de gênero, assim como de transformação corporal caso seja de interesse da pessoa. Além disso, deverá aproveitar a oportunidade para oferecer cuidados gerais e específicos de saúde (vacinação, testes rápidos ou sorologias convencionais de acordo com desejo e/ou histórico de vulnerabilidade a IST/HIV/Aids, rastreamentos, etc.). Deverá ser ofertado também agendamento para consultas com outras profissionais que se fizerem necessárias de acordo com as demandas e projeto terapêutico estabelecido naquele momento, como por exemplo: assistente social, enfermeira, fonoaudióloga, nutricionista, médica de diferentes especialidades (considerando que, inicialmente, somente médicas solicitarão exames específicos para o início e acompanhamento da hormonização), psicóloga, e demais áreas de cuidado disponíveis no serviço.
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Profissionais da Recepção
Cadastro e Identificação Profissionais desse setor devem perguntar como a pessoa usuária do serviço de saúde deseja ser chamada por um nome social, independentemente de perceber discordância entre a expressão de gênero da pessoa e o nome que consta no documento de identidade. Pode ser utilizada a pergunta: “Como você quer que te chamem?” ou “Por qual nome prefere que lhe chamem?”. Se a pessoa declarar um nome diferente de seus documentos oficiais, a profissional da recepção deve cadastrar o nome social, imprimir o cartão SUS com seu nome social, sem o sexo e registrá-lo no prontuário, para que toda a equipe utilize esse nome. A Nota Técnica 18/2014 do Ministério da Saúde detalha sobre como imprimir o Cartão Nacional de Saúde com o nome social. Também cabe perguntar à pessoa com quais pronomes ela prefere ser tratada: femininos, masculinos ou neutros (ela/ele/elu, senhora/senhor/senhore, dela/dele/delu etc.). Considerando as determinações da 13a Conferência Nacional de Saúde247 acerca da inclusão da orientação sexual e da identidade de gênero na análise da determinação social da saúde, a Carta dos Direitos dos Usuários de Saúde (artigo 4o, inciso I) garante “identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir, em todo o documento do usuário e usuária, um campo para se registrar o nome social, independentemente do registro civil, sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença, ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas”. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais reforça esse direito e busca garantir o uso do nome social de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. A criação do campo “Nome Social” nas fichas de Coleta de Dados Simplificada visa assegurar à pessoa usuária o acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde do SUS, referido no Decreto no 7.508/2011,que dispõe sobre a organização do SUS e regulamenta a Lei no 8.080/1990. Portanto, a Ficha de Cadastro Individual no e-SUS Atenção Básica apresenta variáveis para atender a população de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero,248 conforme demonstrado na ‘Figura 8 – Destaque do campo “Nome Social” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS Atenção Básica’ e na ‘Figura 9 – Destaque do 247 Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Relatório Final da 13a Conferência Nacional de Saúde: Saúde e Qualidade de vida: políticas de estado e desenvolvimento/Ministério da Saúde (Série C. Projetos, Programas e Relatórios) [internet]. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2008 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/Relatorios/13cns_M.pdf 248 Ministério da Saúde. Sistema e-SUS Atenção Básica: Manual para preenchimento das Fichas de Coleta de Dados Simplificada -CDS (versão 3.0). Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/Manual_CDS_3_0.pdf
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223 campo “Deseja informar orientação sexual / identidade de gênero?” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS Atenção Básica’. A estratégia e-SUS AB faz referência ao processo de informatização qualificada do SUS em busca de um SUS eletrônico e com informações qualificadas. A SMS-SP está em fase de implantação do referido sistema no município de São Paulo. A inclusão de nome social no SIGA (Sistema Integrado de Gestão de Atendimento) gera atualização automática no sistema GSS (Gestão de Sistemas em Saúde) utilizado pela assistência farmacêutica, porém não gera atualização no sistema CROSS (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde) - que é de competência da Secretaria Estadual de Saúde. Portanto, assim que o nome social da pessoa for cadastrado por profissionais da recepção, o setor de regulação precisa ser informado para que o campo “Nome social” seja atualizado no sistema CROSS. Também deve ser oferecida uma nova carteira de vacinação com o seu nome social (ver Vacinação).
Figura 9 – Destaque do campo “Nome Social” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS Atenção Básica
Fonte: DAB/SAS/MS.
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Informações sociodemográficas Caso a pessoa aceite autodeclarar orientação sexual e/ou identidade de gênero, podem ser preenchidos os campos “Deseja informar orientação sexual?” e/ou “Deseja informar identidade de gênero?” de acordo com as possibilidades apresentadas (heterossexual, gay, lésbica, bissexual, travesti, transexual, outros).249 Figura 10 – Destaque do campo “Deseja informar orientação sexual / identidade de gênero?” na Ficha de Cadastro Individual e-SUS Atenção Básica
Fonte: DAB/SAS/MS.
Agendamento ginecológico para homens trans e pessoas transmasculinas O agendamento de homens trans e pessoas transmasculinas para consulta ginecológica e para coleta de papanicolau deve ser oferecido e realizado da mesma forma como são agendadas as mulheres cisgênero. Caso haja dificuldade em conseguir agendar
249 Ministério da Saúde. Sistema e-SUS Atenção Básica: Manual para preenchimento das Fichas de Coleta de Dados Simplificada -CDS (versão 3.0). Brasília: Ministério da Saúde; 2018 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/Manual_CDS_3_0.pdf
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225 consultas e procedimentos ginecológicos para pessoas que retificaram o “sexo” nos registros civis (e que tenham registro masculino no CNS), a Supervisão Técnica de Saúde e a Coordenadoria Regional de Saúde devem ser contatadas. Em unidades de Estratégia Saúde da Família, não deve ser necessário discriminar o tipo de consulta para o agendamento com médicas ou enfermeiras, já que as mesmas profissionais atendem diferentes demandas (ginecológicas ou não). Ambiência De acordo com o Decreto no. 58.228. um cartaz sobre o nome social deve estar visível na recepção, assim como o contato da ouvidoria do SUS. É possível imprimir cartazes disponíveis on-line elaborados pelo Ministério da Saúde, pela Assessoria de Comunicação da SMS ou a placa elaborada pelo Comitê Técnico de Saúde Integral LGBTIA+ da SMS. (ver anexo 1) Outras manifestações que informam ao público que a UBS é um local de acolhimento para a população LGBTIA+ podem incluir: ● Divulgação de leis específicas; ● Símbolos e sinais LGBTIA+ expostos na unidade; ● Sinalização de que os banheiros são utilizados de acordo com o gênero com o qual cada pessoa se identifica (em caso de banheiros separados por gênero); ● Divulgação de acolhimento e fluxos específicos para a população LGBTIA+ e para vítimas de violência.
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Agente Comunitária de Saúde (ACS)
Acolhimento extramuros É comum pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero não buscarem ou, até mesmo, evitarem os serviços de saúde por medo de sofrer violência, por experiências prévias de violências em serviços públicos, por constrangimento de expor-se a demais membros da comunidade, por privilegiar aspectos de sobrevivência em detrimento ao cuidado profissional com a saúde, ou mesmo por estarem sujeitas a subempregos e não conseguir comparecer à unidade durante o horário comercial. Independentemente aos motivos que possam afastar essas pessoas da sua UBS de referência, cabe às ACS identificar essas pessoas e cadastrá-las na unidade, elucidando as ofertas do serviço e criando condições para que a mesma possa ser cuidada integralmente. Acolher através de visita domiciliar uma pessoa em situação de vulnerabilidade, sem que ela precise adentrar a sede da UBS para matricular-se, é um passo fundamental para o acesso ao SUS, para os cuidados gerais e específicos e para todos os demais direitos em saúde.
Cadastro na UBS É muito importante perguntar, para todas as pessoas que realizam cadastro, se há desejo de ser chamada por um Nome social (nome pelo qual a pessoa deseja ser chamada, independentemente de seus documentos oficiais). Se sim, identificar a pessoa com seu nome social em todos os formulários e documentos utilizados pela equipe: prontuário individual e familiar, ficha de identificação do prontuário, cabeçalho do prontuário, Cartão Nacional de Saúde e demais formulários / impressos.
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Médica
Profissionais da categoria médica de diversas áreas e especialidades médicas podem realizar o cuidado a essa população. Na Atenção Primária à Saúde podem ser acessadas: médica de família e comunidade (MFC), médica generalista ou do “Programa Mais Médicos para o Brasil”, clínica geral, ginecologista ou pediatra, entre médicas de outras especialidades que possam estar presentes nas Unidades Básicas de Saúde. Em serviços de nível de atenção secundária ou terciária, médicas de outras especialidades focais também podem atuar: endocrinologista, ginecologista mastologista, ginecologista de serviço cirúrgico, obstetra, urologista, pediatra, hebiatra, cirurgiã plástica, psiquiatra, etc. O atendimento deve considerar demandas gerais e também as demandas específicas sobre a vivência da variabilidade de gênero. Na anamnese e no exame físico devem ser investigadas as questões gerais e também as relacionadas à transgeneridade/travestilidade, porém somente caso a pessoa tenha interesse e manifeste consentimento nessa abordagem. É necessário atenção à reprodução de violências normalizadas socialmente que tende a ocorrer também nos espaços de consulta médica, (ver Abordagem individual) ao mesmo tempo em que é importante ofertar investigação de vulnerabilidades individuais, sociais e programáticas,250 a partir do reconhecimento vulnerabilidades comuns. (ver Identidades e Diferentes momentos de vida) A solicitação e avaliação de exames deve seguir a lógica clínica, se houver indicações e de acordo com a necessidade observada, como rastreamentos e avaliação de riscos. Devido às possíveis vulnerabilidades vivenciadas e o seu impacto emocional, cabe oferta de avaliação em saúde mental durante a consulta e/ou encaminhamento para agendar com psicóloga disponível (ver Saúde mental e Psicologia). Os cuidados em saúde mental são responsabilidade de todas as profissionais de saúde e não precisam ser realizados exclusivamente por psiquiatras e psicólogas. A presença de problemas de saúde mental, a priori, não exclui o apoio às transformações corporais desejadas ou às mudanças no papel de gênero vivido, mas todas as questões devem ser acompanhadas conjuntamente, visando o bem estar geral, além de estabilidade emocional, preservação da capacidade cognitiva e da autonomia. Em uma UBS, a pessoa deve ser atendida integralmente e muitas das ações desenvolvidas por profissionais médicas no cuidado das pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero são compartilhadas e podem ser desenvolvidas por outros
250 Ayres J, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França Jr I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos G, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Jr M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Editora Fiocruz; 2006: 375-417.
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228 membros da equipe. As especificidades médicas se encontram principalmente na prescrição de hormônios e na avaliação das condições relacionadas à hormonização (ver Transformações corporais por meio de hormonização), assim como diagnósticos clínicos e encaminhamentos pertinentes. Ao atender uma pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero com mais de 16 anos que apresenta a demanda de hormonização, deve-se oferecer espaço individual para que ela relate sua história de vida, suas vivências de gênero, suas intenções com a hormonização e quais transformações corporais são desejadas ou indesejadas. (ver Abordagem individual) É importante dialogar sobre as percepções e crenças da pessoa, assim como oferecer informações sobre os efeitos esperados de cada hormônio, as disponibilidades dessas substâncias dentro dos serviços de saúde e sobre outros métodos de transformações corporais além da hormonização. Caso a pessoa não possua contraindicações absolutas para o planejamento da hormonização e compreenda que essa é a estratégia de transformação corporal que deseja adotar, podem ser solicitados exames basais (ver Acompanhamento de hormonização). O termo de consentimento pode ser entregue por qualquer profissional da equipe multiprofissional no momento em que decide-se pela hormonização, para que a pessoa possa lê-lo calmamente no seu ambiente domiciliar e refletir sobre riscos e benefícios pretendidos, assim como listar dúvidas. A consulta posterior a esse momento pode incluir novo diálogo sobre desejos e compreensões sobre os efeitos das estratégias de hormonização, espaço para manifestação de decisão da pessoa atendida, assinatura do termo de consentimento a ser anexado ao prontuário, oferta de realização de aferições corporais que poderão ser úteis durante a hormonização e início do esquema de hormonização escolhido de maneira compartilhada. Apesar de muitas transformações corporais se iniciarem meses após o início da hormonização, é útil agendar retorno em um mês após o início da hormonização, ou antes, com a intenção de abordar o impacto da alteração da sensação de energia na saúde mental, o conforto ou a ansiedade com a espera pelas transformações corporais e oferecer espaço para diálogos gerais. A partir desse momento, os retornos podem seguir a periodicidade necessária para abordar as questões identificadas, o fornecimento de receitas e a necessidade de investigação de sinais e sintomas - habitualmente, aos 3 meses, 6 meses e 1 ano de hormonização (se não houver sinais de alerta) e, a partir de então, podem ser realizadas anualmente se houver estabilização do quadro, se não houver necessidade de fornecimento mais frequente de receitas e na ausência de sinais de alerta. Segundo a Resolução CFM 2.265/2019, a hormonização cruzada pode ser iniciada a partir dos 16 anos de idade; entretanto, o bloqueio puberal para crianças e adolescentes com vivências de variabilidade de gênero (a partir de Tanner II) foi considerado experimental a
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229 partir desta resolução e aquelas que demonstrem essa necessidade ou desejo devem ser acompanhadas por equipes específicas, que ofereçam cuidados em um ambiente de pesquisa. Um relatório médico direcionado aos serviços de Atenção Especializada será necessário, caso a pessoa com mais de 21 anos opte pela realização de cirurgias (ver Quadro 26). Esse documento deve ser elaborado, preferencialmente, em conjunto com demais profissionais que acompanham a pessoa no serviço de saúde (enfermeira, psicóloga, fonoaudióloga etc.). As ações que envolvem transformações corporais são detalhadas no próximo capítulo. (ver Transformações corporais) Pessoas adultas e crianças Intersexo não necessariamente são pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero, mas merecem atenção especial em relação ao risco de patologização de seus corpos e cabem ações de cuidado específicas. Casos de genitália atípica (diferentes de vulva típica ou pênis típico) devem ser notificados no Sistema de Informação de Nascidos Vivos (SINASC), no qual há campo relativo às anomalias congênitas (campo número 34), para gerar indicadores estatísticos e incentivar políticas públicas.
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Enfermeira
Acolhimento Se o acolhimento for realizado por enfermeira, a profissional deve acolher as demandas trazidas pela pessoa e aproveitar a oportunidade para oferecer cuidados gerais e específicos de saúde (vacinação, testes rápidos ou sorologias convencionais de acordo com desejo e vulnerabilidade à IST/HIV/Aids, rastreamentos, transformações corporais seguras em caso de planejamento da pessoa etc.). Manutenção da saúde e encaminhamentos O cuidado deve ser sempre centrado na pessoa atendida, portanto suas percepções, necessidades e desejos devem ser compreendidos e a construção do plano terapêutico precisa ser compartilhada com essa pessoa. Cuidados gerais em saúde, como a atualização da situação vacinal (ver Vacinações), devem ser ofertados. Caso haja interesse em transformações corporais, orientar quanto às ofertas dentro do SUS e informar sobre a possibilidade de hormonização e cirurgias, elucidar dúvidas e agendar consulta médica. A vulnerabilidade social à qual pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero estão sujeitas é um fator de risco para sofrimentos e adoecimentos mentais (ver Saúde mental e Psicologia), portanto deve-se oferecer abordagem em saúde mental, assim como oferecer agendamento com psicóloga de referência da Unidade (equipe NASF, psicóloga da UBS ou rede de referência em saúde mental do território). A abordagem e o cuidado a situações de sofrimento emocional e de adoecimentos relacionados à saúde mental são responsabilidade de todas as profissionais de saúde e não precisam ser realizados exclusivamente por psiquiatras e psicólogas.
Acompanhamento do uso de medicações O cuidado longitudinal inclui a compreensão de crenças individuais em relação à medicação, avaliação do uso das medicações receitadas, identificação de dificuldades percebidas em seguir as orientações de cuidados, realização de entrevista motivacional (em caso de dificuldade de adesão) e trabalho interprofissional com demais membros da equipe que possam contribuir com o plano terapêutico estabelecido de maneira compartilhada com a usuária. É responsabilidade da enfermeira a decisão sobre a região corporal mais apropriada para administração de medicação intramuscular caso a pessoa possua prótese de silicone ou
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231 tenha realizado aplicação de silicone industrial. (ver Administração de medicação intramuscular) Verificação de transformações corporais As transformações corporais obtidas com hormonização são variáveis, portanto, cada pessoa pode desenvolver características desejadas e indesejadas em diferentes tempos e intensidades, que dependem de sua herança genética, características corporais prévias, dose e tempo de uso de hormônios etc. A ansiedade em obter transformações desejadas pode motivar a pessoa a aumentar a dose recomendada ou fazer uso de medicações adicionais à prescrição ou recorrer a procedimentos clandestinos como aplicação de silicone industrial, aumentando riscos. Dialogar com a pessoa sobre as transformações esperadas (ver Transformações corporais) e oferecer verificá-las em consultório de maneira adequada tem o potencial de identificar sofrimentos emocionais relacionados a essas transformações e a vivências relacionadas ao corpo, além de trazer informações sobre a efetividade da hormonização que nortearão o plano de cuidado singularizado. Exames laboratoriais não são utilizados como indicativo determinante de efetividade da hormonização para transformações corporais, mas alguns parâmetros precisam ser observados para garantia de segurança ou para complementação do raciocínio clínico. Esse acompanhamento pode ser realizado por enfermeiras ou médicas. (ver Transformações corporais por meio de hormonização) Outras técnicas de transformação corporal utilizadas, além da hormonização, também podem ser acompanhadas. A aplicação de silicone industrial para transformações corporais é uma prática comum entre mulheres trans e travestis, porém clandestina e insalubre, que pode acarretar diversos efeitos colaterais e complicações; portanto, pessoas que se submeteram à aplicação de silicone industrial precisam ser acompanhadas periodicamente. Recomenda-se observar e registrar em prontuário o local de inserção do silicone, a cada seis meses, para avaliar migrações, edemas e lesões que necessitem de intervenção. Rastreamentos oncológicos e de agentes infecciosos Deve-se oferecer coleta de colpocitologia oncótica a todas as pessoas que possuam colo uterino, de acordo com o protocolo do Ministério da Saúde. A mamografia é outro exame de rastreamento a ser considerado. (ver Rastreamentos) Como para todas as pessoas atendidas nos serviços, durante a entrevista deve-se abordar histórico de vulnerabilidade e pode-se oferecer avaliação dos riscos referente às
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232 IST/HIV/Aids. A oferta pode incluir testes rápidos ou sorologias convencionais de HIV, Sífilis, Hepatites B e C. Orientar sobre a Profilaxia Pós-exposição (PEP) ao HIV e a sobre Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ao HIV são possibilidades que não devem ser esquecidas, assim como encaminhar para os serviços específicos, se necessário. Pessoas em vulnerabilidade social possuem risco aumentado de Tuberculose. A identificação de pessoas sintomáticas respiratórias (tosse há mais de três semanas), assim como a oferta de exame de escarro para aquelas que estiverem com sintomas, é fundamental para o estabelecimento precoce do tratamento e do controle epidemiológico da doença.
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Técnica e Auxiliar de Enfermagem
Administração de medicação intramuscular As formulações preparadas para aplicação intramuscular, como a testosterona injetável e os métodos anticoncepcionais hormonais injetáveis, não devem ser depositadas no tecido subcutâneo. A aplicação externa ao tecido muscular diminui a eficácia do fármaco e aumenta riscos de transformações corporais indesejadas, de riscos cardiovasculares, de tromboembolismo e inclusive de hepatotoxicidade. Portanto, a área que receberá a injeção deve ser avaliada e escolhida antes da aplicação, para verificação de espessura do tecido subcutâneo (gordura) e escolha de agulha com comprimento adequado para que o depósito seja realmente realizado no tecido muscular. A técnica de aplicação das substâncias injetáveis intramusculares devem garantir: privacidade da pessoa usuária, posicionamento confortável que não gere contração da musculatura que receberá o depósito de substância, assepsia, escolha da melhor região do quadrante superior lateral do glúteo, escolha de agulha com comprimento suficiente, verificação de melhor direção do bizel da agulha (de acordo com o direcionamento das fibras musculares do local da aplicação), retificação da pele que será perfurada (não deve ser realizado pinçamento pelo risco de afastar a região distal da agulha em relação à região muscular), elevação da pele a ser perfurada (com intenção de autotamponamento após a aplicação), interrupção e reavaliação do procedimento em caso de dor aguda, orientações de sinais de alerta, registro do procedimento em prontuário e/ou em receita e orientações de retorno. A testosterona injetável é considerada medicação anabolizante pela Lei no 9.965/2000, submetida a controle especial pela Resolução RDC no 98/2000, e deve ser administrada no serviço em que elas são dispensadas. Por esse motivo, a unidade deve elaborar fluxo em que a equipe de enfermagem acesse diretamente a medicação dispensada pela farmácia para realizar sua aplicação, de forma que a medicação não seja entregue à pessoa usuária do serviço de saúde. As diversas formulações de testosterona são diluídas em óleos vegetais (de amendoim ou rícino). É importante questionar, antes da aplicação, se a pessoa possui alergia ou hipersensibilidade ao excipiente da fórmula. Pessoas com próteses de silicone ou que tenham realizado aplicação de silicone industrial precisam ser identificadas e essa informação deve ser registrada em seu prontuário, pois essas regiões não podem ser perfuradas. Caso a pessoa tenha próteses de silicone na região glútea e vasto lateral da coxa, o Conselho Federal de Enfermagem indica a região ventroglútea (Técnica de Rochester) como segura para aplicação de até cinco mililitros (5 mL)
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234 de medicação intramuscular (inclusive “benzetacil”).251 Caso essa região esteja comprometida, o músculo vasto lateral da coxa poderá ser considerado como local de aplicação. Caso a pessoa tenha injetado silicone industrial na região dorso glútea, não é possível assegurar que essa substância não tenha migrado para os membros inferiores, e neste caso não há como garantir segurança na administração na coxa. O Conselho Regional de Enfermagem não recomenda o músculo deltóide como alternativa à aplicação intramuscular, por recomendar somente aplicações de pequenos volumes nesse músculo. 252,253 A decisão de localização da administração deverá ser tomada por profissional de enfermagem responsável, que avaliará a localização da prótese ou do acúmulo de silicone industrial, o qual pode ter extravasado para áreas adjacentes ao local aplicado. Em caso de dúvidas, a enfermeira compartilhará a decisão com demais membros da equipe em relação ao local de aplicação, em relação à possibilidade de outra via de administração ou mesmo para considerar a troca da medicação prescrita junto à médica responsável. Segundo o PCDT IST de 2022, pessoas em uso de silicone industrial ou prótese de silicone que impossibilite a aplicação da “benzetacil” nos locais preconizados a indicação é administrar as medicações alternativas, como a Doxiciclina via oral para tratar sífilis.254 A entrevista, o exame físico, as decisões de local de administração e o procedimento devem ser registrados em prontuário.
Vacinações A equipe de enfermagem deve orientar e atualizar a carteira vacinal de acordo com as recomendações do Programa Estadual de Imunizações de São Paulo, descritas na Norma Técnica publicada em 2021 ou outra que a substitua. Após apontarem para o serviço seu nome social ou após retificarem seu nome na certidão de nascimento, pessoas que alteram o seu nome no CNS devem receber uma nova carteira de vacinação com seu atual nome e com a transcrição das vacinas já recebidas ao longo da vida. 251 Conselho Federal de Enfermagem. Parecer de Câmara Técnica no 09/2016 – PAD no 0303/2016. Sobre a administração de medicamentos por via IM em pacientes que usam prótese de silicone [internet]. Brasília:
COFEN; 2016 mai 06 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/parecer- no092016ctascofen_42147.html
252 Conselho Regional de Enfermagem (SP). Parecer no 10/2020 - administração de medicamento via
intramuscular [internet]. São Paulo: COREN; 2020 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://portal.coren- sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/Parecer-010.2020-Administra%C3%A7%C3%A3o-de-medicamento-via- intramuscular.pdf
253 Secretaria Municipal de Saúde (Campinas). Nota Técnica 001/2017 – Protocolo de uso de Penicilina Benzatina associada a lidocaína para gestantes com sífilis e parceiros. Campinas: SMS; 2017; Junho. 254 Conselho Regional de Enfermagem (São Paulo). Parecer Coren-SP CAT no 20/2009 - Aplicação de injeção intramuscular em pacientes com silicone em glúteo. São Paulo: COREN; 2009. Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/wp-content/uploads/2013/07/parecer_coren_sp_2009_20.pdf.
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235 Na época da publicação deste protocolo, o esquema de vacinação para pessoas adultas a partir de 20 anos, não gestantes, é o seguinte: • Dupla uso adulto contra difteria e tétano (dT): 3 doses e reforço a cada 10 anos por toda a vida. Na profilaxia do tétano após alguns tipos de ferimentos, deve-se reduzir esse intervalo de reforço para 5 anos. • Hepatite B: 3 doses básicas. • Sarampo, Caxumba e Rubéola (SCR): para pessoas de 20 a 29 anos de idade recomenda-se 2 doses da vacina SCR. Pessoas nascidas a partir de 1960, devem ter pelo menos uma dose da vacina. A vacina também está disponível para pessoas no puerpério. • Febre amarela: dose única. Caso a pessoa tenha recebido apenas uma dose da vacina febre amarela antes de completar 5 anos de idade, deverá receber uma dose adicional.” Para pessoas a partir de 60 anos, o serviço de saúde deverá avaliar doenças prévias (comorbidades), doenças autoimunes, tratamentos específicos ou uso contínuo de medicamentos que contra indiquem a aplicação da vacina nessa faixa etária. • Hepatite A: A Secretaria Municipal de Saúde, em consonância com as recomendações do Ministério da Saúde, está oferecendo a vacina Hepatite A para pessoas que pratiquem sexo de risco por contaminação por fezes, ou seja, prática oral/anal (com priorização de gays e homens que fazem sexo com homens - HSH). Essa vacina está disponível nos Serviços de Assistência Especializada em DST/Aids.255 • Influenza: disponível durante as campanhas anuais. Indicada para pessoas a partir de 60 anos de idade, pessoas com doenças crônicas não transmissíveis ou com outras condições clínicas especiais. Coleta de exames Os exames colhidos nas unidades de saúde devem ser registrados exclusivamente com o nome social, caso a pessoa atendida o possua (ver Nome social e Cadastro e Identificação), associado ao seu número de CPF. Caso a pessoa tenha realizado retificação de seu registro civil (prenome e/ou "sexo"/gênero), esses novos dados devem ser adotados na solicitação do exame. 255 Ministério da Saúde (Brasil). Nota Informativa no 10/2018 – COVIG/CGVP/.DIAHV/SVS/MS. Ampliação da indicação da vacina de Hepatite A para pessoas que tenham prática sexual com contato oral-anal (com priorização de gays e homens que fazem sexo com homens (HSH) [Internet]. 2018 [acesso em 11 abr 2023].
Disponível em: https://www.gov.br/aids/pt-br/centrais-de-conteudo/notas- informativas/2018/nota_informativa_no_10_2018_ampliacao_da_indicacao_do_uso_da_vacina_de_hepatite.pdf/
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236 Caso a pessoa não tenha realizado a retificação de registro civil, os laboratórios responsáveis pela análise dos materiais entregarão os laudos dos exames com o nome social e CPF referidos na solicitação. Os valores de referência divulgados manterão o padrão nacional (com valores diferentes por “sexo” descritos junto ao resultado) e caberá à profissional de saúde, que interpreta os resultados, analisar quais valores devem ser adotados em cada caso.
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Psicóloga
Profissionais da psicologia podem atuar no cuidado em saúde mental de pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero em muitos contextos, como avaliação e acompanhamento de casos graves, atenção a sofrimentos específicos relacionados ou não à identidade de gênero, apoio matricial e confecção de relatórios específicos caso sejam necessários. A saúde mental é um aspecto fundamental para o bem-estar geral de qualquer pessoa e deve ser abordado pela equipe multiprofissional, e não apenas pela psicóloga, no acompanhamento de pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero. Essas pessoas sofrem muitas restrições, carências e violações de direitos humanos e são constantemente expostas aos mais diversos tipos de violências, tanto em contextos públicos quanto privados. Estigmas, discriminações e transfobias (inclusive institucionais) vulnerabilizam ao sofrimento psíquico, o que inclui estresse de minoria, dependência de tabaco, álcool e outras drogas, insônia e problemas do sono,256,257
transtornos ansiosos (ansiedade generalizada, fobia social, etc), autolesão, depressão, ideação e tentativas de suicídio.258 As pessoas buscam profissionais e serviços de saúde para questões relacionadas à identidade de gênero em diversas idades e fases da vida, e também em diferentes momentos da vivência de gênero. Podem precisar e/ou desejar atendimento de uma ou mais áreas de especialidade ou, às vezes, de todos os recursos que o serviço de equipe multiprofissional possa oferecer e disponibilizar. Vale ressaltar que as pessoas têm demandas das mais variadas ao buscar o atendimento profissional (o que inclui, mas não se restringe à psicologia), ou seja, o preceito básico de que cada pessoa é uma pessoa deve ser seguido e o plano de cuidado deve ser singularizado, sem generalizações. Embora as transformações corporais (hormonização, cirurgias e outros procedimentos) sejam uma demanda frequente, é importante considerar que nem todas as pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero 256 Belloir JA, Sworkin JD, Bockting WO. Examining the role of problematic drug use in the relationship between discrimination and sleep disturbance in transgender and nonbinary individuals. Addict Behav 2022 Dec; 135: 107459. 257 Eom YJ, Lee H, Kim R, Choo S, Yi H. Kim SS. Discrimination keeps transgender people awake at night: A nationwide cross-sectional survey of 583 transgender adults in South Korea. Sleep Health 2022 Dec; 8(6): 580- 586. 258 Pellicane MJ, Ciesla JA. Associations between minority stress, depression, and suicidal ideation and attempts in transgender and gender diverse (TGD) individuals: Systematic review and meta-analysis. Clin Psychol Rev 2022 Feb; 91: 102113.
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238 desejam ou sentem que precisam de transformações corporais para se reconhecer conforme sua identidade de gênero. A hormonização, assim como outros procedimentos de transformação corporal que estejam disponíveis, devem ser ofertados para quem assim o desejar desde que não haja contraindicação absoluta (ver Transformações corporais por meio de hormonização), mas o cuidado pelas equipes de saúde não deve se pautar na hormonização. É importante salientar que procedimentos cirúrgicos não devem estar condicionados à hormonização, salvo exceções em que a hormonização é um pré-requisito para viabilização e sucesso de resultado cirúrgico (por exemplo, na neofaloplastia). As pessoas podem buscar o serviço por razões e por atendimentos diversos. São alguns exemplos de motivos para buscar serviços de saúde: querer acompanhamento multiprofissional desde o início do processo de afirmação de gênero; já ter iniciado hormonização por conta própria e desejar acompanhamento para não comprometer a saúde; somente agora ter acesso a serviços e/ou a esse tipo de acompanhamento; iniciar transformações corporais; manter transformações corporais já adquiridas; acompanhar complicações de saúde devido a procedimentos previamente realizados; ou apenas para conseguir encaminhamento para procedimentos cirúrgicos. São alguns exemplos de motivações para buscar atendimento psicológico: estar em processo de descoberta e questionamento sobre si; se sentir fragilizada e buscar atendimento psicológico para melhorar a autoestima e desenvolver estratégias de enfrentamento; buscar terapia breve para questões pontuais; realizar processo psicoterapêutico para autoconhecimento e demandas não relacionadas à identidade de gênero; ou para obter relatório para procedimentos cirúrgicos e, assim, consultar-se com profissional de saúde mental (psicóloga ou psiquiatra) com a ideia pré-concebida de que é um atendimento obrigatório para encaminhamento para cirurgia, e não exatamente, um atendimento desejado por demanda espontânea. É importante ressaltar que o papel da psicologia é acolher, cuidar e promover a saúde mental, o bem-estar geral e a qualidade de vida. O processo inclui o autoconhecimento, com reconhecimento de talentos e dificuldades; o auxílio no desenvolvimento de estratégias de empoderamento, habilidades sociais e enfrentamentos; o fortalecimento do exercício da autonomia do sujeito; assim como ampliação da rede de apoio. Devido às vulnerabilidades, deve-se ter o cuidado ao abordar temas como a percepção de transfobia, vivência de violências, dependência de substâncias, prejuízos e sofrimentos emocionais graves. Se houver necessidade, pode ser ofertado acompanhamento psicológico individual ou em grupo. Algumas situações graves requerem máxima atenção em saúde mental pela profissional da psicologia, como violência autoprovocada, ideação suicida ou quadros que denotem urgência. Pessoas em uso abusivo de álcool e/ou drogas, com saúde mental comprometida ou com presença de sofrimento psíquico moderado ou grave, devem receber
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239 oferta de avaliação de outras profissionais da rede de cuidados em saúde mental e pode-se considerar encaminhamento de demandas específicas para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Qualquer que seja a situação, o atendimento deve sempre ser respeitoso, acolhedor, empático e sem julgamento, para que a pessoa se sinta confortável para expressar de forma livre e associativa seus anseios, dúvidas e demandas. Sempre que pertinente, devem ser contempladas e discutidas informações sobre o uso de hormônios e procedimentos cirúrgicos, explorando as expectativas sobre transformações corporais e a compreensão sobre os prós e contras dos acompanhamentos e procedimentos pretendidos. A profissional deve reconhecer e legitimar a autodeterminação das pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero em relação à identidade de gênero, sendo essa também uma diretriz do Conselho Federal de Psicologia.259 Quaisquer sofrimentos da saúde mental existentes precisam ser avaliados e discutidos com as demais profissionais envolvidas no cuidado integral e/ou no processo de hormonização e transformações corporais. A presença de problemas de saúde mental, a priori, não exclui o apoio às transformações corporais desejadas ou às mudanças no papel de gênero vivido, mas todas as questões devem ser acompanhadas conjuntamente, visando o bem-estar geral, além de estabilidade emocional e preservação da capacidade cognitiva e exercício da autonomia. Caso o acompanhamento em saúde mental se realize em serviço diferente da UBS de referência do indivíduo, as equipes profissionais envolvidas devem realizar ações de matriciamento e manter atualizado o projeto terapêutico singular, através de registro em prontuário, contrarreferências, relatórios ou reuniões. O matriciamento representa de forma prática o encontro dos diversos saberes e tem como meta o aumento das possibilidades de ação das equipes nos casos mais complexos. Quando pactuado de forma sistemática entre os diferentes equipamentos da rede favorece a qualidade dos encaminhamentos, a adesão terapêutica e a continuidade do tratamento. Suas premissas destacam o papel de protagonista da Atenção Básica no cuidado em saúde mental. Recursos a serem articulados nas reuniões de matriciamento: ● Elaboração ou revisão do PTS; ● Interconsultas; ● Atendimentos compartilhados; ● Visitas domiciliares;
259 Conselho Federal de Psicologia. Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de
assistência às pessoas trans [Internet]. 2013 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- content/uploads/2013/09/Nota-t%C3%A9cnica-processo-Trans.pdf
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● Teleatendimentos; ● Educação permanente. Espaços de apoio matricial potentes exigem disponibilidade, planejamento e criatividade. O matriciamento pressupõe uma relação de horizontalidade que deve favorecer a circulação dos saberes, revezando de forma dinâmica em cada caso a função de apoio entre a AB e as equipes de Atenção Especializada. Segundo a portaria intitulada “Processo Transexualizador no SUS”, o encaminhamento de pessoas trans, travestis e com vivências de variabilidade de gênero à Atenção Especializada para que realizem algum dos procedimentos cirúrgicos oferecidos, se assim desejarem, assim como acompanhamentos pré e pós-operatórios, requer a elaboração de um relatório multiprofissional (ver Encaminhamento para cirurgia). Psicólogas são profissionais que podem contribuir com a confecção de relatórios para a equipe cirúrgica, construindo-o conjuntamente com outras categorias profissionais ou individualmente (ver Relatórios). Relatórios confeccionados por profissionais da psicologia devem ser baseados nas recomendações do CFP.260,261
260 Conselho Federal de Psicologia. Resolução no 6, de 29 de março de 2019 - Institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP no 15/1996, a Resolução CFP no 07/2003 e a Resolução CFP no 04/2019 [internet]. Brasília: CFP; 2019 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-6-2019-
i%20nstitui-regras-para-a-elaboracao-de-documentos-escritos-produzidos-pela-o-psicologa-o-no-exercicio- profissional-e-revoga-a-resolucao-cfp-no-15-1996-a-resolucao-cfp-no-07-2003-e-a-resolucao-cfp-no-04-
2019?q=006/2019 261 Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP 06/2019 comentada - Orientações sobre elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional [internet]. Brasília: CFP; 2019
[acesso em 10 out 2022]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- content/uploads/2019/09/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n-06-2019-comentada.pdf
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Assistente Social
Considerando a Lei no 8.662/1993, que regulamenta a profissão, e a Resolução CFESS no 845/2018, que dispõe sobre atuação profissional de serviço social em relação ao “Processo Transexualizador no SUS”, assistentes sociais devem atuar nas diferentes perspectivas detalhadas a seguir.262 Atendimento Social Visa realizar o acolhimento e escuta necessários, considerando as especificidades das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero em acompanhamento no serviço e, à luz dos princípios do código de ética, emitir opinião técnica quando necessário, bem como encaminhar providências e prestar orientação social, no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos. Através desse atendimento, assistentes sociais realizam avaliação e intervenção, quando pertinente, nos casos em que as vulnerabilidades sociais possam dificultar ou inviabilizar de alguma maneira o acesso ao acompanhamento multiprofissional, hormonização e/ou outros procedimentos de transformação corporal. Com o objetivo de que as pessoas atendidas acessem as informações necessárias e tenham autonomia nas decisões que envolvem as transformações corporais, compete ao Serviço Social a orientação sobre as possibilidades de benefícios ou agravos à saúde propiciados pela hormonização. Assistentes sociais não detém de maneira exclusiva essa responsabilidade, mas a possui por ser uma das áreas envolvidas no cuidado específico de saúde das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero.
Trabalho com grupos e/ou famílias O trabalho visa encaminhar providências, prestar orientação social com objetivo de contribuir para sensibilização do núcleo sobre a portaria intitulada “Processo Transexualizador no SUS”, buscando apresentar e refletir sobre políticas, programas, serviços e benefícios sociais destinados à população LGBTIA+; apresentar e/ou referenciar o grupo e/ou família na rede socioassistencial e em outros setores que se fizerem necessários; e ofertar espaços de reflexão sobre temas correlatos ao campo dos cuidados de saúde integral LGBTIA+.
262 Conselho Federal de Serviço Social. Resolução CFESS no 845, de 26 de fevereiro de 2018. Atuação profissional do/a assistente social em relação ao processo transexualizador [Internet]. Brasília: CFESS; 2018 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/ResolucaoCfess845-2018.pdf
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Trabalho em rede Ao interagir com demais instituições e profissionais, cabe estímulo e contribuição com as reflexões acerca da diversidade de orientações sexuais e da variabilidade de gênero, visando a ampla garantia e respeito à pessoa usuária e seus direitos de acesso aos serviços sem discriminação. É importante atuar no campo da defesa de direitos, no tocante à garantia do nome social, do tratamento adequado, considerando as especificidades de identidade de gênero, e outros. Para tanto, faz-se necessária articulação contínua com a rede de serviços socioassistenciais, rede intersetorial, em especial os órgãos do sistema de justiça, tais como: a) Defensoria Pública, principalmente para assistência jurídica e suporte no acesso à medicação de alto custo e outros; b) Se residente no município: CRAS e CREAS para eventuais benefícios assistenciais e/ou acompanhamento de acordo com as vulnerabilidades apresentadas; c) Se pessoa em situação de rua: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) para eventuais benefícios assistenciais e/ou acompanhamento; d) Centro de Cidadania LGBTI, entre outros. (ver Intersetorialidade)
Equipe multi / interdisciplinar Profissionais do Serviço Social devem compor as equipes multi/interdisciplinares, contribuindo em sua área do conhecimento e especificidades para a defesa de promoção e garantia de direitos, sob a perspectiva da autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais, garantindo o cumprimento do direito e dever do sigilo profissional no que diz respeito ao compartilhamento de informações, seja verbal ou por escrito, em reuniões, discussão/estudo de caso, na emissão de documentos e preenchimento de sistemas informatizados, mantendo a socialização de informações somente do que for estritamente necessário para o trabalho em equipe.
Autodesenvolvimento As profissionais precisam buscar constantemente aperfeiçoamento profissional, considerando os avanços do movimento LGBTIA+ no acesso e defesa de seus direitos sociais e humanos, bem como no acesso a programas, serviços e benefícios sociais; certificar-se e acompanhar eventuais atualizações de leis, políticas, benefícios, programas assistenciais de defesa da população LGBTIA+.
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Farmacêutica, Técnica e Auxiliar em Farmácia
A farmácia pode ser a etapa final na linha de cuidado das pessoas durante sua visita ao serviço, uma vez que após atendimento médico, pode ocorrer a dispensação dos hormônios (e/ou demais medicamentos prescritos) e a partir de então, no caso de estrógenos e/ou antiandrógenos, a pessoa segue a farmacoterapia de forma autônoma, até que ocorra o próximo contato com as profissionais da equipe, que poderão esclarecer suas dúvidas ou modificar a conduta, conforme avaliação de cada caso. A dispensação não é apenas o ato de aviar a prescrição, pois é nesse momento que se pode orientar a pessoa sobre o uso correto, seguro e racional de medicamentos, dando ênfase à dosagem, possíveis interações (com medicamentos, álcool e outras substâncias psicoativas e/ou alimentos), reações adversas potenciais e condições de conservação dos medicamentos.263 A equipe da farmácia da unidade deve estar sempre à disposição para auxiliar nas demandas individuais trazidas pelas pessoas atendidas diariamente, realizando um atendimento personalizado sempre que necessário. Conforme estabelecido pela Portaria no 1.918/2016, que “institui os cuidado farmacêutico no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde”, destaca-se que o Cuidado Farmacêutico é um modelo de prática, em que a farmacêutica atua de forma integrada com a equipe de saúde, centrada na pessoa usuária, para promoção, proteção, e recuperação da saúde e prevenção de agravos. Visa à educação em saúde e à promoção do uso racional de medicamentos prescritos e não prescritos, de terapias alternativas e complementares, por meio dos serviços clínicos farmacêuticos e das atividades técnico-pedagógicas voltadas ao indivíduo, à família, à comunidade e à equipe de saúde. Vários procedimentos previstos na legislação visam o controle dos medicamentos preconizados pelo programa. A seguir, são apresentados alguns procedimentos a serem seguidos pelas equipes de farmácia, que visam facilitar e organizar os fluxos internos dos serviços.
Nome social (SIGA x GSS) O sistema de informação utilizado nas farmácias públicas municipais é o GSS (Gestão de Sistemas de Saúde), que tem por objetivo fazer o Controle de Estoques de Materiais dos estabelecimentos e serviços da SMS-SP de forma informatizada.
263 Conselho Regional de Farmácia (Estado de São Paulo). Manual de orientação ao farmacêutico: aspectos legais da dispensação [Internet]. São Paulo: CRF; 2017 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.crfsp.org.br/documentos/materiaistecnicos/Aspectos_Legais_da_Dispensacao.pdf
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244 O sistema GSS permite a atualização automática do nome social que já foi inserido no SIGA, em que a pessoa pode já ter o nome social registrado (ver Nome social). Nos casos em que a pessoa possuir nome social, ela não deve ser chamada pelo seu nome de registro (com o qual ela não se identifica). Sobretudo, a falta do nome social no sistema e/ou divergência do cartão do SUS retificado com o sistema GSS, não impede que a pessoa usuária retire ou realize aplicação de qualquer medicamento solicitado.
Registro das movimentações dos medicamentos no GSS Toda a movimentação (entradas, saídas e transferências) dos medicamentos exclusivos para hormonização de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero deve ser realizada no GSS, sendo responsabilidade da farmácia o controle de estoque dos mesmos. No Quadro 3, estão descritos os medicamentos de dispensação exclusivos para pessoas usuárias do programa de hormonização acompanhadas na rede pública municipal de saúde, sendo estes adquiridos pela SMS-SP e disponibilizados para a referida população através dos serviços de referência que constituem a rede de atenção à saúde municipal.264
Quadro 23 – Medicamentos de dispensação exclusiva para receitas de pessoas prescritoras autorizadas da rede pública municipal de saúde
Descrição dos medicamentos Grupo farmacológico ciproterona 50 mg comprimido antiandrógeno estradiol valerato 2 mg comprimido estrógeno testosterona undecanoato 250 mg/mL solução injetável
andrógeno
Fonte: REMUME - Município de São Paulo Dispensação de ciproterona e estradiol Os insumos do programa de hormonização somente serão dispensados em farmácias de referência definidas pelas Coordenadorias Regionais de Saúde, mediante apresentação de prescrição médica de pessoas usuárias acompanhadas na rede municipal, desde que a
264 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Relação Municipal de Medicamentos – Remume [internet]. São Paulo: SMS; 2013 abr 04 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/assist_farmaceutica/index.php?p=218750
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245 prescrição atenda os critérios estabelecidos pela legislação municipal (Portaria SMS.G no 82/2015, pela Portaria SMS.G no 2190/2015 ou outra que venha a substituí-la):265,266 ● Conter identificação do Serviço de Saúde com nome, endereço e telefone. ● Ser individual, escrita em caligrafia legível, à tinta ou digitada, sem rasuras e/ou emendas; observadas a nomenclatura e o sistema de pesos e medidas oficiais, indicando a forma farmacêutica, a concentração, a dose, o modo de uso (via de administração e intervalo) e a duração do tratamento. ● Conter o nome completo da pessoa atendida (deve ser o nome social, ou o de preferência da pessoa, caso ela não tenha realizado a retificação de prenome nos documentos de registro). ● Conter a Denominação Comum Brasileira (DCB) ou a denominação genérica do medicamento sendo vedado o uso de abreviaturas ou códigos. ● Ser apresentada em uma única via, com exceção das prescrições de medicamentos sujeitos a controle especial que deverão ser apresentadas em duas vias para atender à legislação específica; ● Conter a data de sua emissão e identificação da prescritora (carimbo ou nome completo e CRM legíveis e assinatura), que deve estar cadastrada como prescritora de hormonização na unidade de saúde ou coordenadoria de saúde em que atua. ● É facultado à profissional que prescreve utilizar os dizeres “uso contínuo” ou determinar a quantidade de medicamento suficiente para o período de tratamento. No caso de “uso contínuo”, a prescrição tem validade de seis meses. Observação: A primeira retirada de medicamento na farmácia com a prescrição deve ocorrer em até 30 dias, contados a partir de sua emissão.
Após observação de todas as exigências, a pessoa apresentará, juntamente com a receita, o número do cartão do SUS, que será registrado no sistema GSS para dispensação e controle dos medicamentos prescritos.
265 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G no 82/2015-SMS.G, de 05 de dezembro de 2015. Normatiza a prescrição e a dispensa de medicamentos, no âmbito das unidades pertencentes ao Sistema Único de Saúde (SUS) sob gestão municipal. Diário Oficial da Cidade de São Paulo 05 dez 2015; 60 (226): 29 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/1%20-%20PORTARIA%20N%2082-2015- SMS_G(2).pdf 266 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G no 2190/2015, de 10 de dezembro de 2015. Institui diretrizes para a dispensa de medicamentos sob condições específicas no âmbito da rede de serviços da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo 11 dez 2015; 60 (230): 27 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/2%20-%20PORTARIA%20N%202190- SMS_G.pdf
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246 Nos casos de prescrição de uso contínuo, a quantidade dispensada deverá ser suficiente para 30 dias de seguimento ou a quantidade mais próxima possível, orientando a pessoa sobre a data para a próxima retirada com a mesma receita. A receita será utilizada mensalmente para retirada do medicamento, até que se esgote o prazo de validade da mesma. No ato da dispensação devem ser registrados na prescrição: 1. Identificação da Unidade Dispensadora. 2. Data da dispensação. 3. Quantidade aviada de cada medicamento. 4. Nome legível da pessoa dispensadora. Por regulamentação, não é permitida a dispensação de medicações diretamente para pessoas menores de 14 anos, exceto em situações previstas na Portaria no 82/2015 ou outra que venha a substituir.267 Somente prescrições provenientes dos serviços municipais de saúde do SUS (do Município de São Paulo) poderão ser aviadas, conforme Portaria no. 2.190/2015 ou outra que venha a substituir.268 Só serão dispensadas medicações receitadas por médicas autorizadas como prescritoras de hormonização naquela região. O processo de autorização como prescritora é organizado dentro de cada Supervisão Técnica de Saúde ou Coordenação Regional de Saúde.
Dispensação de testosterona Testosterona é medicamento de controle especial, pertencente à lista C5 da Portaria no 344/98,
269 atualizada pela Resolução RDC no 98, de 20/11/2000.
270 Para atendimento das
267 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G no 82/2015-SMS.G, de 05 de dezembro de 2015. Normatiza a prescrição e a dispensa de medicamentos, no âmbito das unidades pertencentes ao Sistema Único de Saúde (SUS) sob gestão municipal. Diário Oficial da Cidade de São Paulo 05 dez 2015; 60 (226): 29 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/1%20-%20PORTARIA%20N%2082-2015- SMS_G(2).pdf 268 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G no 2190/2015, de 10 de dezembro de 2015. Institui diretrizes para a dispensa de medicamentos sob condições específicas no âmbito da rede de serviços da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São Paulo 11 dez 2015; 60 (230): 27 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/2%20-%20PORTARIA%20N%202190- SMS_G.pdf 269 Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. Portaria no 344, de 12 de maio de 1998, que aprova o regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial [internet]. Brasília: MS; 1998 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html 270 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Resolução da Diretoria Colegiada no 98, de 20 de novembro de 2000, que publica a atualização das listas de substâncias sujeitas a controle especial [internet].
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247 receitas nas farmácias referenciadas para o fornecimento da hormonização na rede municipal, são exigidas as seguintes informações (Lei no 9.965, de 27/04/2000):271 ● Identificação da emitente: contendo o nome e endereço da unidade; ● Identificação da pessoa usuária: nome (deve ser o nome social, ou o de preferência da pessoa, caso não tenha realizado a retificação de prenome nos documentos de registro) e endereço completo; ● Nome da Denominação Comum Brasileira (DCB), dosagem ou concentração, forma farmacêutica, quantidade e posologia; ● Identificação da prescritora, que deve estar cadastrada como prescritora de hormonização na unidade de saúde ou coordenadoria de saúde em que atua: carimbo ou nome completo e CRM legíveis, assinatura e Número do Cadastro da Pessoa Física (CPF); ● Código da CID; ● Data de sua emissão, ● A prescrição deve ser legível, sem rasuras ou emendas e apresentada em duas vias.
Além do preenchimento pela farmácia do campo “Identificação do paciente ou responsável”, no ato da dispensação devem ser registrados também na via da pessoa usuária: 1. Identificação da Unidade Dispensadora. 2. Data da dispensação. 3. Quantidade aviada de cada medicamento. 4. Nome legível da pessoa dispensadora. Registrar na primeira via, que deve ser retida na farmácia: 1. Data da dispensação. 2. Quantidade aviada de cada medicamento, com o respectivo lote e validade. 3. Nome legível da pessoa dispensadora.
Após a observação de todas as exigências, a pessoa deverá se apresentar, juntamente com a prescrição, documento de identificação com foto e número do cartão do SUS na farmácia, para retirada do medicamento e registro da dispensação no sistema GSS.
Brasília: ANVISA; 2000 [acesso em 11 abr 2023].Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2000/rdc0098_20_11_2000.html 271 Presidência da República. Lei no 9.965, de 27 de abril de 2000, que restringe a venda de esteroides ou peptídeos anabolizantes e dá outras providências [internet]. Brasília: Casa Civil; 2000 [acesso em 11 abr 2023]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9965.htm
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248 É importante salientar que a apresentação de documento oficial com foto é obrigatória por lei para medicamentos da Portaria no 344/1998, porém a retificação legal do prenome no documento de identidade não é pré-requisito para retirada do medicamento, portanto o uso do nome social não configura impedimento para a retirada do medicamento. A receita tem validade de 30 dias a partir da data de emissão, conforme Portaria no 344/1998. Esse medicamento é retirado pela equipe de enfermagem na farmácia da unidade para administração do mesmo na sala de medicação. Não é permitido o atendimento de receitas para pessoas com menos de 18 anos, exceto se a pessoa for emancipada até o momento, porém a resolução CFM no 2.265/2019, reconhece a possibilidade de prescrição para adolescentes a partir de 16 anos.272 Todos os procedimentos que envolvem o controle de estoque, guarda e dispensação da testosterona, exigem a presença da farmacêutica responsável, conforme Portaria no 344/1998. Só serão dispensadas medicações receitadas por médicas autorizadas como prescritoras de hormonização naquela região. O processo de autorização como prescritora é organizado dentro de cada Supervisão Técnica de Saúde ou Coordenação Regional de Saúde.
Acompanhamento clínico farmacoterapêutico É necessário que os serviços de referência organizem a oferta do acompanhamento farmacoterapêutico, com o intuito de prevenir, identificar e resolver problemas relacionados à farmacoterapia, como interações medicamentosas, eventos adversos, posologias inadequadas, dentre outros, possibilitando a realização de intervenções que melhorem a farmacoterapia e a qualidade de vida das pessoas usuárias.273 Além disso, o acompanhamento individual e personalizado permite a prática da educação em saúde e a criação de vínculo entre pessoas atendidas e profissionais de saúde.274 A operacionalização se dá por meio da realização de consultas farmacêuticas, em ambiente privativo e com registro em prontuário, nas quais podem ser realizados de acordo com as necessidades das pessoas atendidas, os serviços clínicos, como: revisão da
272 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.265, de 20 de setembro de 2019. Cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Brasília: Diário Oficial da União; 2020 Janeiro 9: 1(6). 273 Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Instrumento de referência de serviços
farmacêuticos na Atenção Básica. 2021. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp- content/uploads/2021/09/Instrumento-de-referencia-serv-farmaceuticos.pdf
274 Secretaria Municipal da Saúde (São Paulo). Portaria SMS.G no 1.918, de 26 de outubro de 2016, que institui o Cuidado Farmacêutico no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde. Disponível em:
http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-da-saude-secretaria-municipal-da-saude- 1918-de-27-de-outubro-de-2016
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249 farmacoterapia, reconciliação medicamentosa, rastreamento em saúde, acompanhamento farmacoterapêutico, dentre outros.275 A oferta de serviços clínicos para pessoas em hormonização ocorre de acordo com a disponibilidade em cada unidade. Destaca-se o acompanhamento farmacêutico, como um seguimento longitudinal por parte da farmacêutica integrada à equipe de saúde, a partir de encontros sucessivos, a fim de avaliar e acompanhar a evolução das metas farmacoterapêuticas definidas no plano de cuidado proposto, com vistas ao alcance de melhores resultados em saúde e respostas positivas relacionados à farmacoterapia.
275 Conselho Regional de Farmácia (Estado de São Paulo). Manual de orientação ao farmacêutico: aspectos legais da dispensação [Internet]. 2017. Disponível em: http://www.crfsp.org.br/documentos/materiaistecnicos/Aspectos_Legais_da_Dispensacao.pdf
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Nutricionista
A alimentação e nutrição possuem um papel fundamental na garantia de promoção, prevenção e recuperação de saúde. E deve ser pensada dentro do contexto tanto social quanto individual de cada pessoa acompanhada. A população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero não é uma população hegemônica, mas a atenção para alguns aspectos que a perpassam é imprescindível em um acompanhamento em nutrição. Nutrição e hormonização A hormonização pode ser uma possibilidade para pessoas que a desejam, e é segura e efetiva. No entanto, a partir da redistribuição de gordura corporal e suas ações no organismo, como a elevação de citocinas inflamatórias e resistência à insulina, podem ser potencializadas por algumas questões sociais como: renda flutuante, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal, baixa escolaridade, insegurança alimentar e nutricional. Portanto, alguns parâmetros em saúde devem ser acompanhados para reduzir os riscos para hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e outros riscos cardiovasculares associados. Quadro 24 – Efeitos sistêmicos de interesse da nutrição ao uso hormonização com estrógenos e/ou antiandrógenos e com testosterona PESSOAS TRANSFEMININAS EM UTILIZAÇÃO DE ANTI ANDRÓGENOS E/OU ESTRÓGENOS
PESSOAS TRANSMASCULINAS EM UTILIZAÇÃO DE TESTOSTERONA
Elevação do Índice de Massa Corporal a médio/longo prazo
Elevação do Índice de Massa Corporal
Aumento do percentual de gordura corporal e redução da massa muscular
Aumento da massa magra e redução do tecido adiposo
Elevação da gordura visceral e aumento da gordura subcutânea
Possibilidade de elevação de apetite
Aumento de HDL-c e redução de LDL-c Aumento da oleosidade da pele, aparecimento ou
piora da acne
Possível elevação de triglicérides Aumento de eritropoietina e possível eritrocitose3 Elevação de marcadores inflamatórios Aumento de Hemoglobinas e Hematócrito Resistência à insulina Elevação dos níveis de triglicerídeos Presença de riscos para elevação da pressão arterial
Elevação de LDL-c e redução de HDL-c Possibilidade de elevação de apetite Presença de risco para Hipertensão Arterial
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251 Pequena redução da Pressão sanguínea Pequena elevação na pressão sanguínea Aumento da massa mineral óssea, mas com redução do turnover ósseo
Risco aumentado para Dislipidemias Risco de redução da massa óssea1 Redução de Adiponectina e Leptina Tromboembolismo, aterosclerose e outros eventos cardiovasculares2
Possibilidade de elevação de homocisteína e marcadores inflamatórios em longo prazo
Redução de Hemoglobina e Hematócrito --- 1. Se utilização de alguns bloqueadores de testosterona, como Acetato de Ciproterona ou Agonistas GnRH, isolados. 2. Se utilização de estrogênio equino conjugado (principalmente) ou etinilestradiol e/ou utilização de cigarros concomitante a hormonização. 3. Se elevação crítica dos níveis de testosterona, sendo necessário revisão da dose pelo médico especialista do acompanhamento do paciente. Fonte: Gois I, 2022.276 Avaliação e Diagnóstico Nutricional Em uma avaliação nutricional, seis parâmetros devem ser levados em conta: 1. Antropométrico 2. Bioquímico 3. Clínico e Dietético 4. Socioeconômico 5. Comportamental No entanto, a saúde é perpassada pelo cissexismo e os parâmetros em saúde são muitas das vezes enviesados por uma lógica binária de corpos, que exclui pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero em hormonização. Desta forma, para essas pessoas, a antropometria torna-se um parâmetro mais limitado em uma avaliação nutricional, pois suas classificações foram estruturadas em corpos cis. Ao realizar uma avaliação e um diagnóstico nutricional é imprescindível a aplicação destes de forma integral, ou seja, levando em consideração todos os parâmetros que os compõem: antropométrico, bioquímico, clínico e dietético; além dos aspectos socioculturais e comportamentais incisivos na saúde ou na determinação desta. E a limitação relacionada à antropometria, em alguns casos, não deve ser um impedimento ou uma limitação no cuidado em saúde e nutrição de pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero. Avaliação Antropométrica Como citado anteriormente, a aferição antropométrica é necessária para realizar um diagnóstico nutricional individualizado, no entanto suas classificações possuem limitações em 276 Gois, I (org.). Guia ambulatorial de acolhimento e cuidado nutricional de pessoas trans e travestis adultas. 2021. No prelo.
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252 razão de serem pensadas para corpos endossexo e cisgênero. Além de outras limitações, como a utilização de géis ou prótese de silicone e pessoas que vivem com HIV em terapia antirretroviral.277 , 278 Para pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero que não utilizam a hormonização ou que a estejam iniciando (menos de 1 ano), a antropometria pode ser utilizada livremente e classificada de acordo com o gênero designado ao nascimento. No entanto, para pessoas em hormonização há mais de 1 ano e/ou que realizaram procedimento cirúrgico com gonadectomia (ooforectomia ou orquiectomia bilateral) a antropometria deve ser utilizada de forma cautelosa, levando em consideração a compleição física da paciente, tempo de hormonização e procedimentos cirúrgicos realizados. Fergusson et al (2018) indicam a utilização de fórmulas de estimativa de percentual de gordura corporal quando necessárias de acordo com o gênero designado ao nascimento para acompanhamento individual apenas, assim como a utilização de calorimetria indireta para estimativa da taxa metabólica basal; no entanto, esta última não está disponível na maioria dos serviços de saúde. Com isso, Lima et al. (2021) indicam a estimativa da European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN): Hipocalórica: 20 a 25 kcal/kg de peso Normocalórica: 25 a 30 kcal/kg de peso Hipercalórica: 30 a 35 kcal/kg de peso279,280,281 A utilização do Índice de Massa Corporal pode ser utilizada como parte da avaliação nutricional livremente. É importante despertar a sensibilidade para compreender a nova realidade da população e repensar formas de avaliação individualizadas que se adaptem melhor às pessoas que são atendidas diariamente em consultórios, hospitais e centros de pesquisa.282
277 Gonçalves JL, et al. Composição corporal em mulheres transgênero vivendo com HIV/Aids: uma discussão das transformações que interferem na avaliação do estado nutricional. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde 2016 nov; 11(S1): 1213-1223. 278 Fergusson P, Greenspan N, Maitland L, Huberdeau R. Towards Providing Culturally Aware Nutritional Care for Transgender People: Key Issues and Considerations. Canadian Journal of Dietetic Practice and Research 2018; 79. 279 Gois, I (org.). Guia ambulatorial de acolhimento e cuidado nutricional de pessoas trans e travestis adultas. 2021. No prelo. 280 Lima LM, Trindade IO, Gois I, Rodrigues FB, Gomes S, Reis, T (ORG). Guia de cuidado e atenção nutricional à população LGBTQIA+ [recurso eletrônico]. Natal: Insecta Editora. p.38. 281 Kreymann KG, Berger MM, Deutz NE, Hiesmayr M, Jolliet P, Kazandjiev G, et al. ESPEN guidelines on enteral nutrition: intensive care. Clin Nutr. 2006; 25: 210-23. 282 Gonçalves JL, et al. Composição corporal em mulheres transgênero vivendo com HIV/Aids: uma discussão das transformações que interferem na avaliação do estado nutricional. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde 2016 nov; 11(S1): 1213-1223.
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Avaliação Bioquímica Esta avaliação pode ser parte do acompanhamento nutricional, principalmente para pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero que realizaram procedimentos cirúrgicos que afetam o metabolismo. Para que não haja medicalização da vida, é importante considerar a real necessidade da solicitação de exames laboratoriais, a partir de evidências científicas que demonstrem benefícios específicos. Avaliação Clínica e Dietética As avaliações dietéticas e clínicas, com utilização da semiologia, devem ser realizadas como de forma usual. A avaliação dietética deve contar com ferramentas como o Recordatório de 24 horas (R24h) e/ou Dia Alimentar Habitual (DAH) e Diário Alimentar (DA) associado a sentimentos, de forma cumulativa ou não durante o acompanhamento nutricional. A utilização do DA associado a sentimentos permite avaliar concomitante o consumo alimentar quali e quantitativo por mais dias e a presença de sentimentos associados à refeição em diferentes ambientes e horários, auxiliando na avaliação de comportamento alimentar. Com relação a avaliação clínica, alguns aspectos do cuidado nutricional de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero devem ser evidenciados para um diagnóstico completo e fidedigno.
Quadro 25 – Aspectos da avaliação clínica nutricional e possíveis condições associadas Aspecto Clínico Possível Condição Associada
Causas Observações
Cabelo com queda ou fios quebradiços
Deficiência de micronutrientes: ferro, zinco, vitaminas do complexo B e D
Restrição alimentar; Insegurança Alimentar; Alimentação Monótona e/ou com baixo teor de alimentos fontes; demais.
Pessoas Transmasculinas em hormonização com testosterona também podem apresentar queda de cabelo por alopécia androgênica.
Unhas com manchas ou quebradiças
Deficiência de micronutrientes: selênio, zinco, ferro e vitaminas do Complexo B
Restrição alimentar; Insegurança Alimentar; Alimentação Monótona e/ou com baixo teor de alimentos fontes; demais.
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Lábios ressecados, baixa produção de saliva e/ou xerostomia
Desidratação; Baixo consumo de água e líquidos; Elevação do fluxo urinário em pessoas em hormonização com espironolactona.
Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem apresentar quadros de desidratação e problemas renais por motivos de dificuldade de acessos à banheiros públicos; A xerostomia pode estar presente em
pessoas com pré- diabetes e diabetes
mellitus;
Pele oleosa e/ou acnéica
Elevação da oleosidade da pele; Elevação de inflamação;
Consumo elevado de alimentos ricos em gordura, principalmente saturada; Baixo consumo de fibras alimentares e água; Consumo elevado de alimentos processados e ultraprocessados; Alteração hormonal.
Pode ocorrer principalmente em pessoas em hormonização com testosterona;
Atrofia dos músculos da face e/ou Bola Gordurosa de Bichat
Câncer; Transtorno Alimentar; Restrição Alimentar; HIV
Déficit calórico; Elevação de catabolismo; Depleção da massa muscular;
Cefaleia frequente, vertigens e/ou fadiga
Anemias; Deficiência de micronutrientes: ferro, vitamina D, Vitamina B e demais; Eritrocitose; Consumo deficiente de calorias;
Insegurança alimentar; Restrição e/ou Transtorno Alimentar; Elevação dos níveis eritrócitos (eritrocitose); Alimentação Monótona.
Pessoas em hormonização com testosterona podem apresentar eritrocitose.
Fonte: Isis Gois
Avaliação Socioeconômica Durante a primeira consulta e a aplicação da anamnese nutricional, a compreensão do perfil da pessoa atendida e sua condição socioeconômica são imprescindíveis para a elaboração de condutas e orientações alimentares viáveis. Portanto, as questões abaixo devem estar presentes na anamnese nutricional:
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255 Figura 11 – Representação da avaliação socioeconômica na Anamnese Nutricional
Fonte: Gois, 2021283 Comportamento Alimentar A alimentação é compreendida, no imaginário social, não só como promotora de saúde, mas também como modeladora da estrutura corporal. Portanto, pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidades de gênero podem estar mais predispostas a alterações críticas no comportamento alimentar e em risco elevado para desenvolvimento de um transtorno alimentar. Em consequência de iniquidades em saúde nas quais possam estar inseridas: risco de insegurança alimentar e nutricional (renda mensal flutuante ou em situação de rua), alteração no apetite modulada por hormônios (privação do sono e hormonização), experiências de discriminação e estigma social e familiar.284 Na adolescência, durante o desenvolvimento puberal, é normal haver estranhamentos com as mudanças corporais e desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários. No entanto, para pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidades de gênero, a fase
283 Gois, I (org.). Guia ambulatorial de acolhimento e cuidado nutricional de pessoas trans e travestis adultas. 2021. No prelo. 284 Gois, I (org.). Guia ambulatorial de acolhimento e cuidado nutricional de pessoas trans e travestis adultas. 2021. No prelo.
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256 púbere pode ser marcada por sofrimento permeado por essas alterações, associadas à possível dificuldade da família e amizades compreenderem suas identidades de gênero.285 , 286 Alterações no comportamento alimentar podem estar presentes nesta fase, como também na vida adulta, na busca pela atenuação ou redução das mudanças corporais puberais. Alguns estudos indicam presença de transtorno de compulsão alimentar, bulimia nervosa e anorexia nervosa.287 , 288
Pessoas transfemininas podem se envolver em formas não saudáveis de controle do peso, como jejuns, restrições alimentares, purgações e comportamentos compensatórios, pois os ideais de feminilidade ocidentais estão associados a estes comportamentos e a um corpo magro.289 Os ideais de corpos masculinos ocidentais têm apresentado características de compleição grande e musculosa com baixa composição de gordura corporal. Pessoas transmasculinas podem estar em risco de anorexia e bulimia nervosa durante a fase puberal, a fim de restringir o ganho de mamas e curvas, como também reduzir os ciclos menstruais.290 A hormonização, para as pessoas que a desejam, é um dos aspectos para o cuidado das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidades de gênero com comportamentos alimentares alterados ou com um transtorno alimentar já estabilizado. No entanto, como a hormonizacão pode aumentar o apetite e o ganho de peso em pessoas transfemininas, o que pode levar a desenvolverem uma relação ambígua com a hormonização.291 Nutricionistas sem formação específica para o cuidado de pessoas com comer transtornado e/ou transtornos alimentares deverão fazer encaminhamentos a serviços e/ou profissionais habilitadas, como nutricionistas especialistas, psicólogas e psiquiatras da rede de cuidado.
285 Gordon AR, Austin SB, Krieger N, Hughto JM; Reisner SL. “I have to constantly prove to myself, to people, that I fit the bill”: Perspectives on weight and shape control behaviors among low-income, ethnically diverse young transgender women. Social Science & Medicine 2016; 165: 141-149. ISSN 0277-9536. 286 Diemer EW, Grant JD, Munn-Chernoff MA, Patterson DA & Duncan AE. Gender Identity, Sexual Orientation, and Eating-Related Pathology in 17 a National Sample of College Students. The Journal of adolescent health 2015; 57(2): 144-149. 287 Diemer EW, Grant JD, Munn-Chernoff MA, Patterson DA & Duncan AE. Gender Identity, Sexual Orientation, and Eating-Related Pathology in 17 a National Sample of College Students. The Journal of adolescent health 2015; 57(2): 144-149. 288 McClain Z, Peebles R. Body image and eating disorders among lesbian, gay, bisexual, and transgender youth. Pediatr Clin N Am. 2016; 63:1079-90. 289 Gois Í & Faria AL. A cultura da magreza como fator social na etiologia de transtornos alimentares em mulheres: uma revisão narrativa da literatura. Revista Ibero-Americana De Humanidades, Ciências E Educação 2021; 7(1): 18. doi.org/10.29327/217514.7.1-12 290 Gois Í. Os Transtornos Alimentares em Indivíduos Transgêneros. Associação Brasileira de Transtornos Alimentares [homepate na internet]; 2021. 291 Gordon AR, Austin SB, Krieger N, Hughto JM; Reisner SL. “I have to constantly prove to myself, to people, that I fit the bill”: Perspectives on weight and shape control behaviors among low-income, ethnically diverse young transgender women. Social Science & Medicine 2016; 165: 141-149. ISSN 0277-9536.
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Vínculo e abordagens recomendadas O binômio nutricionista-pessoa atendida deve ser pensado a partir da criação de um vínculo, de uma atenção à saúde não julgadora, entendimento dos determinantes sociais da saúde e promotora de saúde integral. Não utilizar: metas de perda/ganho de peso, contagem de calorias e nem dietas restritivas.292 , 293 Buscar uma melhor adequação em saúde, cuidado nutricional para atenuação/prevenção dos efeitos da hormonização e/ou de comportamento alimentar com base no Guia Alimentar para a População Brasileira294 e utilizando aspectos das abordagens como a Nutrição Comportamental, Health At Every Size (Saúde para Todos os Tamanhos) e Método Clínico Centrado na Pessoa. Sempre levando em consideração a condição socioeconômica da pessoa e fazendo associação a demais serviços como o Serviço Social, em casos de risco ou presença de insegurança alimentar nutricional ou violação do Direito Humano à Alimentação Adequada, e a Psicologia, em casos de transtornos alimentares.295,296 Também se recomenda a formação de grupos de educação alimentar e nutricional com pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidades de gênero na atenção primária para discussão dos cuidados em saúde e alimentação que perpassam as demandas
da comunidade atendida, como por exemplo hormonização e seus efeitos, cuidados pré- cirúrgicos, infecções urinárias e complicações renais.
292 Morley C, Morley R. Toward trans-friendly and respectful dietetic practice. Can J Diet Pract Res. 2017; 78(3): 162-3. 293 Fergusson P, Greenspan N, Maitland L, Huberdeau R. Towards Providing Culturally Aware Nutritional Care for Transgender People: Key Issues and Considerations. Can J Diet Pract Res. 2018; 79. 294 Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde (Brasil). Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2014. 295 Fergusson P, Greenspan N, Maitland L, Huberdeau R. Towards Providing Culturally Aware Nutritional Care for Transgender People: Key Issues and Considerations. Can J Diet Pract Res. 2018; 79. 296 Gois, I (org.). Guia ambulatorial de acolhimento e cuidado nutricional de pessoas trans e travestis adultas. 2021. No prelo.
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Educadora Física
Definição de atividade física e exercício físico A OMS define atividade física como qualquer movimento corporal que produz contração muscular e gasto calórico. Sendo assim, todo movimento voluntário do corpo pode ser considerado como atividade física. Exercício é como deve se chamar uma rotina de atividade física planejada, estruturada e repetida com o objetivo de manter, melhorar ou adquirir condicionamento físico. O exercício físico pode ser subdividido em aeróbico e anaeróbico: ● Exercício aeróbico: exercício que requer maior consumo de oxigênio, pois as moléculas de oxigênio servem como combustível para a queima de gordura - todo exercício de longa duração (com pouca pausa ou nenhuma pausa) é considerado exercício aeróbico. ● Exercício anaeróbico: exercícios que ao serem realizados não necessitam de oxigênio em grande quantidade, são exercícios de alta intensidade (maior contração muscular) e curta duração (os movimentos são executados em segundos com intensidades e amplitudes diferentes, onde se faz necessária uma pausa para recuperação muscular). Pensando nos inúmeros benefícios que a atividade física traz para a saúde, a OMS recomenda que se pratique, pelo menos, 150 minutos de exercício físico por semana. Comparado a medicamentos, o exercício físico é menos medicalizador para ser incorporado à rotina diária e pode trazer muitos benefícios para a saúde física e mental. Por ser de baixo custo, baixo risco e poder diminuir a necessidade de intervenção com medicamentos, o exercício físico pode ser recomendado para a maioria das pessoas.297
Por que é necessário abordar a saúde da população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero dentro da educação física? Levando em consideração a interseccionalidade, a população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero, sofre diversos impactos negativos em sua saúde integral também em decorrência da dificuldade de acesso a acompanhamentos e cuidados em saúde para além de biotecnologias para modificações corporais. Como já citado, há associação entre o estresse de minoria e a saúde; uso de tabaco, álcool e outras drogas, 297 Organização Mundial da Saúde. WHO guidelines on physical activity and sedentary behaviour: at a glance. Geneva: WHO; 2020.
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259 insegurança alimentar e nutricional, menores níveis de prática de atividade física; além de presença de risco cardiovascular, hipertensão arterial e dislipidemia, mesmo no início da vida adulta, sem acompanhamento específico.298 O estresse é uma resposta fisiológica a situações diversas na qual é requerido; no entanto, quando apresenta-se de maneira crônica pode trazer malefícios à saúde, pois a
elevação de hormônios estressores, como o cortisol, alteram a homeostase endócrino- metabólica.299
Além de contribuir para elevação do tecido adiposo, com ênfase no percentual de gordura corporal, o cortisol também está relacionado ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis associadas à síndrome metabólica.300 Além disso, alguns recursos de alteração corporal, como a hormonização cruzada, associada a esses fatores ambientais, podem impactar na condição de alterações endócrino-metabólicas de risco cardiovascular. Desta forma, é necessário incentivar a prática de exercícios físicos e hábitos de alimentação saudável e balanceada para auxílio da manutenção de níveis adequados de cortisol no organismo, assim como atenuar essas alterações, como uma maneira de prevenção à síndrome metabólica nesta população.
Benefícios do exercício físico para saúde física e mental Aumento na produção dos hormônios do bem-estar Os exercícios aeróbicos e cardiovasculares de longa duração elevam os níveis de endorfina de duas a cinco vezes no organismo. Com isso, a endorfina em interação com outros hormônios, como noradrenalina, a serotonina e a dopamina, estimulam o centro de recompensa do cérebro. Em testes com animais e humanos saudáveis, pode-se observar que com a prática frequente houve elevação dos níveis periféricos de beta-endorfinas com influência no sistema serotoninérgico, aumento da atividade simpática e melhora da qualidade do sono.301
Metabolismo Tanto os exercícios aeróbicos quanto os anaeróbicos exercem um papel importante no estímulo do bom funcionamento do metabolismo levando o corpo a usar a gordura como
298 Denby KJ, Cho L, Toljan K, Patil M, Ferrando CA. Assessment of Cardiovascular Risk in Transgender Patients Presenting for Gender-Affirming Care. Am J Med. 2021 Aug; 134(8): 1002-1008. 299 Faccini AM, Silveira BM, Rangel RT. Influência do estresse na imunidade: revisão bibliográfica. Revista Científica da FMC 2020; 15(3). 300 Pereira AF, Conceição DR, Souza IS, Cavalcante LA, Brito AP. Relação entre o hormônio cortisol e a síndrome metabólica. XVII SEPA - Seminário Estudantil de Produção Acadêmica - UNIFACS; 2018. 301 Cruz JR, Alberto PC, Hakamada EM. Benefícios da endorfina através da atividade física no combate a depressão e ansiedade. EFDeportes 2013 Abr; 18(179).
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260 fonte de energia. Reduzir o percentual de gordura corporal, não tem como objetivo encaixar os corpos das pessoas em um padrão estético, mas sim prevenir morbidades e agravos. Estudos apontam que o tecido adiposo torna o corpo mais suscetível a infecções, visto que a gordura é altamente inflamatória. Ter profissionais de educação física em uma equipe interdisciplinar é importante para prescrever, orientar e monitorar a prática consciente de uma rotina de exercícios físicos para melhor condicionamento físico e qualidade de saúde física e mental; incluindo prevenção e controle de doenças metabólicas, auxiliando também o preparo e a melhoria de condições físicas para quem pretende se submeter a procedimentos cirúrgicos, especialmente para reduzir complicações peri e pós-operatórias, e facilitar a recuperação no pós-cirúrgico.302 Exercício físico, hormonização e trasnsformações corporais É sabido que a prática constante de exercícios físicos traz mudanças na composição corporal. A diminuição de tecido adiposo e o aumento de massa muscular costumam ser os principais motivos pelo qual muitas pessoas procuram se exercitar. No entanto, a pessoa profissional de educação física tem como principal função deixar claro que exercícios físicos contribuem muito para um bom funcionamento do nosso organismo, estimulam a produção de hormônios importantes para o nosso bem-estar e esse deve ser o principal objetivo quando se inicia uma rotina de exercícios físicos, tendo as mudanças corporais como consequência de um estilo de vida mais saudável.
Principais buscas por transformações corporais: ● Pessoas que recorrem ao uso da testosterona para alcançar características tidas como masculinas, tendem a ter como objetivo a hipertrofia muscular. É importante explicar que para que a hipertrofia muscular ocorra é necessária uma rotina de exercícios com carga, que sejam bem orientados, revisados e trocados periodicamente. Também é importante a elucidação de que esse processo costuma demorar pelo menos 90 dias para que se consiga observar algum resultado. ● Pessoas que recorrem ao uso de estrogênio e progesterona para alcançar características tidas como femininas geralmente evitam exercícios que estimulam a hipertrofia muscular, pois culturalmente corpos musculosos são atribuídos ao gênero masculino. É fundamental indicar que com a diminuição dos níveis de testosterona no 302 Cazzo E, Machado R, Chaim EA. Preparo Pré-Operatório para Cirurgia Bariátrica: Experiência do Ambulatório de Gastrocirurgia do Hospital de Clínicas da Unicamp. In: Aquino JLB, Andreollo N., Martinez CAR (edit.). Atualidades em Clínica Cirúrgica - Intergastro e Trauma. Atheneu: 2013 Jan [acesso em 22 nov 2021].
Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/261797387_Preparo_Pre- Operatorio_para_Cirurgia_Bariatrica_Experiencia_do_Ambulatorio_de_Gastrocirurgia_do_Hospital_de_Clinicas_
da_Unicamp?channel=doi&linkId=546289ec0cf2837efdaffc60&showFulltext=true
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261 organismo, os exercícios que estimulam a contração muscular são indispensáveis para se preservar a força e tônus muscular e que estes exercícios serão prescritos visando manutenção de massa muscular e prevenção de problemas de saúde. ● Redistribuição de composição corporal (diminuição de gordura em peitoral, diminuição de gordura em quadril, aumento de volume em glúteos, etc) ocorre quando os exercícios são prescritos com foco em cada grupo muscular. Os exercícios devem ser prescritos levando em consideração o perfil de cada pessoa, assim como o histórico, pois a amplitude de movimentos e as cargas devem respeitar as limitações individuais e evoluir gradualmente, conforme a pessoa ganha mais força e consciência corporal para realizar os exercícios com segurança. Sobrecargas Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem utilizar a prática de atividades físicas de maneira auxiliar às transformações corporais desejadas como estratégia de afirmação da identidade de gênero. Desta forma, é importante uma orientação adequada para que a prática de atividade física seja intuitiva e complementar a biotecnologias de modificação corporal, quando desejadas, assim como auxiliar no aprimoramento da saúde física e mental, com melhora da disposição e do ciclo de sono. Além de esta orientação poder prevenir erros e exageros na prática de exercícios, pois mesmo com baixos níveis de atividade física no dia a dia, algumas pessoas acabam praticando exercícios por períodos muito prolongados ou com carga acima do seu condicionamento com o intuito de que as mudanças ocorram mais rapidamente, o que pode levar a lesões.
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Fonoaudióloga
O acolhimento em saúde é mediado pela comunicação; assim, o cuidado com a comunicação em saúde é essencial para garantir a formação de vínculo, o acesso à saúde e a adesão aos tratamentos. Frente à uma comunicação ineficiente, as orientações não são compreendidas, os tratamentos são abandonados e, como consequência, há um distanciamento das usuárias.303 A comunicação oral é uma habilidade que pode ser aprimorada e eventuais limites, encontrados em qualquer pessoa, podem ser desenvolvidos e aperfeiçoados, assim como outros recursos que possibilitam uma satisfatória expressão de gênero à maneira como cada pessoa se identifica. Assim, o atendimento fonoaudiológico com uma abordagem adequada e crítica quanto às questões sociais e subjetivas relacionadas à expressão, e que considere os aspectos subjetivos da comunicação e da voz, tem grande potencial para a promoção da saúde das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero.304 A voz é uma das ferramentas primárias que o ser humano dispõe para interagir com a sociedade e, por esse meio, também podem ser expressos traços de personalidade, bem como sentimentos e emoções.305 Está entre os fatores que influenciam a qualidade de vida de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, por ser um fator significativo na percepção do gênero, sendo que a não conformidade da voz com o gênero, um fator que pode gerar sentimentos de inadequação. Na perspectiva da promoção da saúde integral às pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, devem ser considerados os aspectos relativos ao papel da voz e da comunicação, de modo geral, na expressão de gênero.306 Profissionais de fonoaudiologia devem considerar a perspectiva de uma produção vocal saudável e uma comunicação global eficiente. A pluralidade da voz é trazida por uma ação multidisciplinar, onde diferentes profissionais podem contribuir na construção de uma nova imagem vocal para essa população.
303 Souza, MS. Qualidade da comunicação da equipe de saúde no atendimento à população de travestis e transexuais. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FCMSCSP; , 2019. 304 Barros AD, Cavadinha ET, Mendonça AVM.. A percepção de homens trans sobre a relação entre voz e expressão de gênero em suas interações sociais. Tempus – Actas De Saúde Coletiva 2018; 11(4): 09-24. https://doi.org/10.18569/tempus.v11i4.2361 305 Davies S, Papp VG, Antoni C. Voice and Communication Change for Gender Nonconforming Individuals: Giving Voice to the Person Inside. International Journal of Transgenderism. 2015; 16(3): 117-159. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/15532739.2015.1075931 306 Coleman, E, Bockting, W, Botzer, M, Cohen-Kettenis, P, DeCuypere, G, Feldman, J, et al. Standards of Care for the Health of Transsexual, Transgender, and Gender-Nonconforming People. International Journal of Transgenderism 2012 July; 13(4): 165-232.
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263 A terapia de voz, ou treinamento vocal, refere-se a qualquer técnica não-cirúrgica utilizada para melhorar ou modificar a voz humana.307 Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem desejar a terapia vocal como parte do processo de afirmação de gênero, a fim de fazer suas vozes soarem mais condizentes com o gênero de identificação e reconhecimento social dentro dos padrões atribuídos ao mesmo.308 Dentre os aspectos trabalhados na comunicação de pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero estão incluídos: qualidade vocal, entonação, intensidade, fadiga, ressonância, articulação, velocidade de fala, linguagem e comunicação não verbal. É possível realizar atendimento individual e/ou em grupo nas unidades referenciadas. O acolhimento será agendado e poderá ser feito individual ou grupalmente, de modo a realizar escuta qualificada em relação às demandas de interferência da comunicação oral na percepção de identidade de gênero. A avaliação deverá ser realizada por fonoaudióloga, que poderá sugerir terapia para auxiliar nas mudanças de voz e na comunicação para adequação à identidade de gênero. O atendimento usualmente se dá de forma semanal por um período aproximado de três a seis meses, podendo ser estendido por até um ano, ou sofrer intervalos na frequência das sessões cada vez maiores, conforme a evolução de cada caso. No entanto, os homens trans e pessoas transmasculinas, geralmente ficam mais satisfeitos com a frequência mais grave da voz resultante do uso da testosterona. Havendo suspeita de alterações vocais não funcionais, ou seja, não decorrentes dos ajustes vocais utilizados, a pessoa deverá ser avaliada por profissionais da área médica e, caso necessário, encaminhada para avaliação otorrinolaringológica na rede de atendimento. Do mesmo modo, se a estrutura anatômica laríngea não permitir o ajuste vocal desejado, ou se a terapia fonoaudiológica isolada não for suficiente na obtenção dos resultados pretendidos, a pessoa poderá ser encaminhada para serviço onde possa ser realizada a modificação cirúrgica do arcabouço laríngeo, caso exista essa possibilidade (situação mais frequente entre mulheres trans e travestis que podem apresentar dificuldade em manter uma emissão aguda confortável). A cirurgia geralmente é realizada como última alternativa, sendo que, na maioria dos casos, a sua necessidade é irrelevante, haja vista que, com a fonoterapia e intervenção
307 Gelfer MP, Schofield KJ, Metrics P. Comparison of acoustic and perceptual measures of voice in male-to- female transsexuals perceived as female versus those perceived as male. J Voice [Internet]. 2000; 14(1): 22–33.
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10764114 308 Hancock A, Colton L, Douglas F. Intonation and gender perception: applications for transgender speakers. Author information MeSH terms LinkOut-more resources. J Voice [Internet]. 2014; 28(2): 203–12. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24094799
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264 hormonal, os resultados podem ser significativos e satisfatórios para as pessoas atendidas. Em todos os casos, sempre o desejo da pessoa deverá ser considerado.
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Terapeuta ocupacional
Terapia ocupacional e combate a LGBTIA+fobia O combate à LGBTIA+fobia é fundamental para garantir o acesso aos serviços e a qualidade de atenção, capacitando profissionais de saúde em relação à competência cultural, incluindo aspectos sociais, ocupacionais, estilo de vida, vulnerabilidades e práticas sexuais de pessoas LGBTIA+, para que adotem os cuidados condizentes com as reais necessidades dessa população. É nesse contexto que se insere a terapia ocupacional, uma profissão comprometida com as complexidades que envolvem os diferentes modelos de vida, hábitos e atividades cotidianas dos sujeitos, além das vulnerabilidades das populações que passam por déficits de inserção e participação social.309 A terapeuta ocupacional deve investigar esses processos políticos, sociais, culturais e econômicos, que torna-se um desafio diante da capacidade de compreender os fenômenos sociais em sua complexidade e dinamismo.310 A terapia ocupacional, como profissão das áreas de saúde, educação e social, pode proporcionar ganhos nas áreas de ocupação e desempenho desses indivíduos, pois atua com olhar e ações articuladores entre sua saúde, tanto física e mental, sua educação e ainda nos processos de convívio social nos quais essa população se insere, promovendo, assim, potencialidades na vivência em sociedade como um todo.311
Terapia Ocupacional como promotora de inserção social A terapia ocupacional no campo social tem pensado nas práticas cotidianas, na promoção de espaços de acesso a bens de serviços e em como eles podem construir e reconstruir redes relacionais e de sociabilidade, compreendendo como essas vidas acontecem sobre concepções normativas.312 É essencial investir em possibilidades de criação e apoio a diferentes formas de resistência individual e coletiva à desumanização, combatendo a desigualdade e construindo pontes de acesso a direitos para emancipação pessoal.313 Para Melo (2016), a terapia ocupacional atuando no campo social é embasada
309 Leite Jr. JD. Travestilidade, transexualidade e demandas para a formação de terapeutas ocupacionais. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional 2017; 25(3). 310 Mello L, Britto W, Maroja D. Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu 2012 jul; 39(1): 403-129. 311 Murasaki AK, Galheigo SM. Juventude, homossexualidade e diversidade: um estudo sobre o processo de sair do armário usando mapas corporais. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional 2016; 24(1): 53-68. 312 Melo KMM. Terapia Ocupacional Social, pessoas trans e Teoria Queer: (re)pensando concepções normativas baseadas no gênero e na sexualidade. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar 2016; 24(1). 313 Natarelli et al. O impacto da homofobia na saúde do adolescente. Esc. Anna Nery 2015 Oct-Dec; 19(4).
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266 em direitos de cidadania, autonomia e de independência do sujeito, possibilitando que os desejos e suas necessidades sejam alcançadas, bem como que suas vivências sejam ampliadas e melhoradas. Para Sachs (2007) o desemprego e o subemprego, retenção e evasão escolar, analfabetismo, rompimento com vínculos familiares, discriminações e preconceitos em seus diversos tipos são fatores que limitam a liberdade, por consequência, interferem no desenvolvimento humano. De acordo com dados da ANTRA, foi estimado em levantamentos informais que 90% de travestis e de mulheres trans vivem unicamente da prostituição, o que pode ser considerada uma forma de aprisionamento social. Outro dado importante provém de estudo realizado pela secretaria de educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexos (ABGLT) divulgado em dezembro de 2016, que mostra que 73 de estudantes que não se declaram heterossexuais no Brasil já tinham sofrido agressão verbal na escola, e 1 a cada 4 (25%) sofreram agressões físicas. Das 1.016 pessoas jovens ouvidas na pesquisa, 55% afirmaram ter ouvido, ao longo do ano anterior, comentários negativos especificamente a respeito de pessoas trans no ambiente escolar, 45% disseram se sentirem inseguras devido a sua identidade/expressão de gênero.314 Todos estes dados são de extrema importância para a profissional de terapia ocupacional que irá atender a população LGBTIA+, já que as áreas de desempenho ocupacional são afetadas por essas sucessivas discriminações. Partindo para o campo social, a terapia ocupacional tem como parte dos sujeitos de intervenção pessoas que sofreram ou sofrem processos de exclusão social, por exemplo, populações que vivem ou viveram encarceradas em hospitais psiquiátricos e prisões, além de indivíduos que devido às transformações sociais estão expostos a ruptura de redes sociais de suporte.315
Terapia ocupacional e os Direitos sexuais e reprodutivos A terapia ocupacional tem como prática norteadora o trabalho com a autonomia, sendo assim, é função dessa profissional contribuir para o desenvolvimento de ações que facilitem, criem ou possibilitem a integração e a inserção, a participação na vida social e democrática. E garantir esse propósito requer um cuidado profissional constituído de um
314 Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT; 2016. Disponível em: https://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2016/03/IAE-Brasil-Web-3- 1.pdf 315 Baros DD, Ghirardi MIG, Lopes RE. Terapia Ocupacional Social. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo 2002; 13(3): 95-103.
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267 conjunto de ações técnicas, políticas e éticas, transcritas em intervenções sociais complexas, voltadas a diminuir o sofrimento e o isolamento cotidiano, os quais, simultaneamente, levam à deterioração de laços sociais e em percursos individuais que conduzem a lugares sociais periféricos.316 Além do mais, a terapia no campo social é embasada em direitos de cidadania, autonomia e de independência do sujeito, possibilitando que seus desejos e suas necessidades sejam alcançados, bem como que suas vivências sociais sejam ampliadas e melhoradas. Os direitos sexuais e reprodutivos abrangem os direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos, em outros documentos consensuais, os quais se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Também inclui seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, além de direitos sobre decisões sobre seu corpo, que envolvem a integridade física, liberdade individual, que dizem respeito à liberdade sexual, autonomia, integridade e segurança, privacidade, prazer, escolhas livres e responsáveis, informação e exercício às formas de expressão sexual, de maneira segura e livre de pressões, todos amparados pela constituição de 1988.
316 Malfitano APS. Contexto social e atuação social: generalizações e especificidades na terapia ocupacional. In: Lopes RE, Malfitano APS (ed.). Terapia ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EDUFSCar; 2016: 117-134.
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Fisioterapeuta
O corpo possui memória e identidade. A imagem corporal é um ponto fundamental para a construção da identidade pessoal. Isto porque, a comparação entre a imagem corporal ideal e a imagem corporal real do sujeito é bastante significativa para a concepção que este possui de si mesmo.317 Algumas pessoas estudiosas do assunto nos levam a compreender que a imagem corporal é uma construção que engloba as percepções do indivíduo sobre si e sobre a relação que ele mantém com os outros. Sendo assim, esse caminho depende das suas vivências e experiências desde o nascimento.318 A construção e reconstrução da imagem corporal é cíclica e acontece nas diferentes etapas da vida, pois nosso corpo passa por alterações biológicas, hormonais, físicas e psíquicas. Além disso, a cultura do local em que estamos inseridos interfere diretamente na noção que temos do nosso corpo e no processo de consciência e construção da imagem corporal.319 Todas as transformações biológicas, físicas, hormonais e psíquicas, somadas ao enfrentamento desse processo crítico e importante de formação da imagem corporal, exige que tenhamos uma estrutura emocional forte, que nos acompanhe nessa dinâmica.320 O corpo é consumido como uma imagem a ser mostrada e vendida. Esse consumo se torna uma atividade de conquista e não uma necessidade.321 Além disso, os meios midiáticos, como a televisão, revistas, jornais, outdoors e redes sociais, contribuem para a produção e propagação desse consumo. A mídia aponta o caminho a ser traçado e o consumo é a falsa ilusão do alcance desse objeto de desejo.322 Quando observamos a juventude trans, nos deparamos com aspectos ainda mais profundos. Esses jovens que desejam adequar seus corpos à sua identidade, também consomem o padrão de beleza da sociedade. No estudo com mulheres trans realizado por Rocon et al (2017), cada entrevistada parece traçar seu ideal de mulher associado a uma perspectiva de beleza, que ora se aproxima das normas de gênero, ora foge delas. A idealização em alguns discursos, no que se refere à vontade de injetar silicone industrial no
317 Aguiar, 2014. 318 Frois E, Moreira J, Stengel M. Mídias e a imagem corporal na adolescência: o corpo em discussão. Psicologia em Estudo. Maringá, 16(1): 71-7, jan./mar. 2011. 319 Lopes AF, Mendonça ES. Ser Jovem, Ser Belo: A Juventude sob Holofotes na Sociedade Contemporânea. Revista Subjetividades. Fortaleza, 16(2): 20-33, agosto, 2016. 320 Frois E, Moreira J, Stengel M. Mídias e a imagem corporal na adolescência: o corpo em discussão. Psicologia em Estudo. Maringá, 16(1): 71-7, jan./mar. 2011. 321 Damico JGS. Como olhar e pensar o corpo jovem. Cad. Cedes, Campinas. 32(87): 153- 63, mai.-ago. 2012. 322 Lopes AF, Mendonça ES. Ser Jovem, Ser Belo: A Juventude sob Holofotes na Sociedade Contemporânea. Revista Subjetividades. Fortaleza, 16(2): 20-33, agosto, 2016.
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269 corpo para produzir outros traços e formas, transita entre o corpo bem-feito, o corpo belo, e o corpo rentável – aquele que ganha dinheiro na pista.323 Porém, para elas, a produção corporal apresentar resultados desejados, não garante por si só que o corpo será belo, dependendo da relação social com os clientes, com as outras pessoas transfemininas e com os diversos olhares, inclusive o próprio. Por outro lado, a transformação indesejada pode corresponder diretamente à avaliação negativa da beleza. Ou seja, não se sabe se um corpo bem feito será um corpo bonito, mas com certeza, uma transformação mal sucedida significará a perda da beleza.324 Nossos corpos, embora silenciosos, gritam a todo momento, emitindo mensagens acerca das suas emoções, sentimentos, preconceitos, agrados e desagrados, expectativas, medos, inseguranças. Eles revelam uma construção singular mas que, muitas vezes, perde sua identidade, por serem condenados a uma padronização.325 No entanto, estes corpos reagem, demons-trando, na sua expressão facial todos esses sentimentos e podem, através da postura, mostrar sua aceitação ou negação, tornando-se retraídos ou abertos. Podem, também, pelo olhar, demonstrar sua insegurança, seu desejo de afeto, de ser tocado ou não, de receber mais atenção, se está concordando ou não com a situação. Nossas expressões faciais e corporais são carregadas de significados específicos dentro do contexto, do tempo e do espaço em que acontecem.326 Nesse contexto, surge a fisioterapeuta, que será fundamental na equipe multiprofissional, trazendo o olhar e o cuidado para as questões musculoesqueléticas dessa população, acolhendo aquele corpo, adequado ou não à identidade de gênero, e promovendo funcionalidade.
Coluna vertebral, abdome e postura No aumento da cifose torácica, lordose lombar e/ou outras alterações posturais, deve ser realizada a reabilitação da musculatura envolvida, no sentido de relaxar o músculo que se encontra encurtado e fortalecer o músculo que encontra-se enfraquecido. A ativação da musculatura estabilizadora de coluna: multífidos, transverso profundo do abdome, diafragma respiratório e diafragma pélvico, faz parte do trabalho de reeducação postural, visto que fornece melhor suporte da pelve e coluna, aliviando dores causadas pela
323 Rocon PC, Zamboni J, Sodré F, Rodrigues A, Roseiro MCFB. (Trans)formações corporais: reflexões sobre saúde e beleza. Saúde Soc. São Paulo. 26(2): 521-32, 2017. 324 Rocon PC, Zamboni J, Sodré F, Rodrigues A, Roseiro MCFB. (Trans)formações corporais: reflexões sobre saúde e beleza. Saúde Soc. São Paulo. 26(2): 521-32, 2017. 325 Ressel LB, Silva MJP. Reflexões sobre a sexualidade velada no silêncio dos corpos. Disponível em: http://www.ee.usp.br/reeusp/upload/html/580/body/v35n2a08.htm 326 Frois E, Moreira J, Stengel M. Mídias e a imagem corporal na adolescência: o corpo em discussão. Psicologia em Estudo. Maringá, 16(1): 71-7, jan./mar. 2011.
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270 diminuição do espaço intervertebral e/ou compressão de nervos que costuma acontecer na manutenção prolongada de posturas inadequadas, como a hipercifose torácica e hiperlordose lombar. Quando facilitamos o melhor suporte da coluna, com a ativação dessa musculatura, o resultado é a diminuição da sobrecarga exercida na coluna constantemente. As vértebras tendem a ganhar seu espaço novamente. Na realização de exercício respiratório com correta ativação muscular e movimento da caixa torácica na inspiração e expiração preservam a estabilidade da região. É importante lembrar, que, qualquer que seja a alteração postural, haverá reflexo dos prejuízos em outras áreas do corpo.
Pelve e assoalho pélvico A pelve é formada pelos ossos ílio, ísquio e púbis, que se fundem para formar os quadris e posteriormente encontra-se o sacro, fundido ao cóccix, que possui quatro vértebras unidas e uma individual terminal. A cintura pélvica consiste então dos ossos do quadril e do sacro, e sua função é a de transmitir o peso da parte superior do corpo para os membros inferiores, ao mesmo tempo em que permite o movimento e equilíbrio do corpo. Dentro da cavidade pélvica encontram-se os órgãos abdomino-pélvicos a saber: bexiga, útero (quando houver) e intestino. Tais órgãos, possuem seus orifícios externos, sendo eles, uretra, vagina (quando houver) e ânus, respectivamente. Esses orifícios atravessam o assoalho da pelve, que é uma estrutura composta por músculos, fáscias e ligamentos, chamada de assoalho pélvico e que tem como função preencher inferiormente a cavidade pélvica, fazendo o suporte desses órgãos. Suas outras funções serão descritas mais adiante. A falta de mobilidade e consciência corporal é um aspecto encontrado com grande frequência nos consultórios. Um corpo que se movimenta em bloco não possui dissociação de cinturas, o que resulta em pelve e músculos pélvico-perineais rígidos, com má circulação, e consequentemente, má funcionalidade. Os músculos do assoalho pélvico apresentam um tônus basal, que deve manter a sustentação adequada dos órgãos abdominais e pélvicos, durante nossas atividades de vida diária. Porém, durante uma situação de esforço, como tosse, espirro ou agachar-se, o assoalho pélvico deve ser capaz de realizar uma contração máxima, com o objetivo de resistir ao aumento dessa pressão intra-abdominal e portanto, evitar perdas de urina, fezes, flatos, ou simplesmente evitar a descida de órgãos. Um músculo fraco e/ou flácido não será capaz de contrair suficientemente forte, podendo ocorrer perda de urina, fezes, flatos ou a descida de órgãos.
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271 Em contrapartida, existem situações em que essa musculatura deve relaxar completamente, como por exemplo na micção e/ou defecação. E quando isso não acontece, como por exemplo nos casos em que a musculatura se encontra rígida, pode haver sintomas relacionados à dificuldade no esvaziamento vesical, como dificuldade para urinar, evacuar, e também em ser penetrado(a), tanto por pênis, quanto por dedos, brinquedos ou durante exames médicos. A falta de saúde desses músculos pode acontecer por hábitos de vida ruins, como a falta de mobilidade, falta de dissociação de cinturas, posturas inadequadas e algumas adaptações realizadas ao longo da vida, buscando a adequação do corpo à identidade de gênero. Assoalho pélvico e postura na expressão de gênero A ocultação das mamas com a utilização do binder, quando feita com compressões exacerbadas e posicionados equivocados pode levar a problemas na coluna e dificuldade respiratória. A ocultação de pênis e testículos, pode gerar contratura muscular nessa região, além da impossibilidade de urinar enquanto a técnica está sendo utilizada, fazendo com que a pessoa diminua a ingesta hídrica e postergue a micção, podendo causar dificuldade para urinar e outros sintomas relacionados Pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero, também podem apresentar disfunção do assoalho pélvico não-relacionada à expressão de gênero.
Avaliação fisioterapêutica A avaliação é iniciada com anamnese verificando história médica, história cirúrgica pregressa, alergias, medicamentos, função urinária, função intestinal, função sexual e dor. Aplicação de testes e questionários validados, seguido do exame físico que verifica a integridade da região lombo-pélvica, do quadril e estruturas, articulações, músculos, nervos e ligamentos relacionados. Sobre a função urinária, tem que se questionar sobre a frequência miccional diurna, intervalo entre as micções, sintomas de urgência, incontinência e/ou dificuldade no esvaziamento vesical. Na função intestinal, verificar a presença de constipação, esforço durante a evacuação e capacidade de realizar o esvaziamento vesical completo. A respeito da função sexual, se a pessoa se sentir confortável em compartilhar informações na primeira consulta, as perguntas devem ser relacionadas ao ciclo de resposta sexual, capacidade de participar da relação com satisfação, desejo sexual, excitação e orgasmo, bem como a presença ou não de parceria fixa e as práticas de relação sexual
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272 utilizadas. Caso haja dor na relação, a fisioterapeuta deve identificar as possíveis fontes de dor, como dor à penetração, ejaculação ou posicionamento. A avaliação sobre a dor pélvica consiste em identificar a localização, início, intensidade e fatores agravantes e atenuantes.327 O exame físico inclui avaliação externa, com inspeção e palpação dos músculos do assoalho pélvico e lombopélvicos, seguido da avaliação interna dos músculos do assoalho pélvico. Na inspeção, verifica-se as características da pele, coloração, trofismo, presença de cicatriz, edema, aberturas, distâncias ano-vulvar/ano-escrotal, mobilidade e presença de resíduos urinários e fecais. A avaliação dos músculos do assoalho pélvico é realizada com uma palpação interna, vaginal ou retal, verificando a qualidade do tônus muscular, presença ou não de espasmo muscular, ponto-gatilho ou outros achados, e a prova de função muscular é feita utilizando a ferramenta conhecida como PERFECT328 que avalia, entre outros fatores, a contração voluntária máxima, resistência muscular e a capacidade de contrair adequada e rapidamente. Esta avaliação é útil na população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero que deseja fazer intervenção cirúrgica, pois o desempenho muscular pode ser prejudicado após o procedimento. A utilização de testes e questionários sensíveis, confiáveis e validados na população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero podem incluir a quantificação de prolapso de órgão pélvico - Pelvic Organ Prolapse Quantification System (POP-Q)329 teste neurológico de sensibilidade ao toque em diferentes dermátomos perineais e teste dos reflexos bulbocavernoso, cutâneo-anal e cremastérico,330 questionários de sintomas urinários como International Consultation on Incontinence Questionnaire – Urinary Incontinence Short Form (ICIQ-UI SF)331 e Overactive Bladder Questionnarie (OAB-q, V8).332 Questionários de função sexual como Female Sexual Function Index (FSFI)333 e International Index of Erectile
327 Nikolavsky D, Blakely SA. (Ed.). Urological Care for the Transgender Patient: A Comprehensive Guide. Springer Nature, 2021. 328 Laycock JO, Jerwood D. Pelvic floor muscle assessment: the PERFECT scheme. Physiotherapy. 87(12): 631-42, 2001. 329 Bump RC, Mattiasson A, Bø K, Brubaker LP, DeLancey JO, Klarskov P, Shull BL, Smith AR. The standardization of terminology of female pelvic organ prolapse and pelvic floor dysfunction. Am J Obstet Gynecol. 175(1): 10-7, 1996. 330 Baracho E. Fisioterapia aplicada à saúde da mulher. 5. ed. - Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2014. p. 596-597. 331 Klovning A. Comparison of two questionnaires for assessing the severity of urinary incontinence: The ICIQ‐UI SF versus the incontinence severity index. Neurourol Urodyn. 28 (5): 411-15, 2009. 332 Pereira SB, Thiel RRC, Riccetto C, Silva JM, Pereira LC, Herrmann V, Palma P. Validação do International Consultation on Incontinence Questionnaire Overactive Bladder (ICIQ-OAB) para a língua portuguesa. Rev Bras Ginecol Obstet. 32 (6): 273-8, 2010. 333 Hentschel H. Validação do Female Sexual Function Index (FSFI) para uso em língua portuguesa. Rev HCPA. Porto Alegre. 27(1): 10-4, 2007.
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273 Function (IIEF).334 Verificação da dor com Escala Visual Analógica (EVA) e Vulvar Pain Functional Questionnaire (V-Q)335 e da qualidade de vida com World Health Organization Quality of Life-bref (WHOQOL-Bref). 336
Intervenções fisioterapêuticas O atendimento fisioterapêutico na população trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero inicia com diversas orientações sobre as questões musculoesqueléticas e orientações comportamentais sobre o uso de dilatadores, cintas e roupas de compressão. As intervenções são aplicadas com base na queixa principal e nos dados da avaliação e do exame físico. As principais intervenções incluem os alongamentos, exercícios respiratórios, exercícios de mobilidade e dissociação pélvica, educação neuromuscular, postural e de consciência corporal, bem como o treino dos músculos do assoalho pélvico. Para tanto, utilizam-se principalmente as técnicas de terapia manual, eletrotermofototerapia, equipamentos de biofeedback manométrico, eletromiográfico ou outros, além de recursos específicos para determinados casos, como os dilatadores vaginais. O atendimento no pré-operatório é focado em realizar orientações gerais, introduzir os exercícios globais e pélvicos, verificar os sintomas presentes, preparar para a cirurgia e definir as expectativas. No pós-operatório é realizada novamente avaliação e são feitas as orientações específicas. Dentre as orientações comportamentais estão a uroterapia e o treinamento intestinal, que incluem técnicas adequadas de esvaziamento vesical, como o posicionamento correto para urinar e evacuar e a micção programada, além de orientações sobre a ingesta hídrica adequada, hábitos alimentares saudáveis e atividade física. As pessoas transfemininas que optarem por realizar a cirurgia de neovagina, serão orientadas a utilizar os dilatadores vaginais após o procedimento. Os dilatadores são uma ferramenta para alongar e manter o comprimento do tecido após a intervenção cirúrgica. A dilatação é realizada posicionando suavemente o dilatador no introito vaginal e introduzindo lentamente em um leve ângulo em direção à parte inferior das costas. Assim que o dilatador estiver na posição correta, ele deve ser deixado no local por cerca de 20 minutos. Não se deve empurrar ou forçar o dilatador para criar mais profundidade, pois isso pode resultar em
334 Gomes ALQ, Nobre P. The International Index of Erectile Function (IIEF‐15): Psychometric properties of the Portuguese version. J Sex Med. 9(1): 180-7, 2012. 335 Dargie E, Holden RR, Pukall CF. The vulvar pain assessment questionnaire inventory. Pain. 157(12): 2672-86, 2016. 336 Kluthcovsky ACGC, Kluthcovsky FA. O WHOQOL-bref, um instrumento para avaliar qualidade de vida: uma revisão sistemática. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul. 31(3): 0-0, 2009.
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uma laceração ou fístula. Exemplo de cronograma de dilatação da neovagina pós- operatória:337
● Dia 1: Dilate 5 vezes por dia ● Dia 2-30: Dilate 4 vezes por dia ● Dia 31-90: Dilate 3 vezes por dia ● Após 3 meses: Dilate 2 vezes por dia ● Após 1 ano: Dilate 1 vez por dia Os dilatadores devem ser rígidos e com a curvatura adequada, para moldar corretamente a neovagina. Na fisioterapia, além de orientarmos o uso dos dilatadores, também utilizamos recursos de analgesia local e cicatrização de fissuras na mucosa, caso haja necessidade. É realizado ainda o treino de sensibilidade da região com diferentes texturas, temperaturas e pressões.
337 Nikolavsky D, Blakely SA. (Ed.). Urological Care for the Transgender Patient: A Comprehensive Guide. Springer Nature, 2021.
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Profissionais da limpeza
A função da equipe de limpeza é zelar pela higiene dos ambientes dos serviços de saúde, evitando a propagação de doenças. Nesse sentido, a equipe de limpeza deve ser incentivada a participar das discussões sobre a recepção realizada por profissionais e sobre o acolhimento de usuárias do serviço de saúde, de forma a conhecer os fluxos, visto que muitas vezes essa equipe é abordada por pessoas que circulam no serviço e desejam informações sobre o funcionamento dele. Dentro dessa abordagem, a equipe de limpeza precisa atuar com receptividade e cuidado, tratando toda a população com respeito, independentemente do tipo de público que adentra o serviço. Ainda, é importante que não manifeste nenhum tipo de preconceito quanto à aparência física, apresentação pessoal ou forma de agir das pessoas, de forma a evitar constrangimento e afastamento desses do serviço de saúde. Essa postura deve ser cuidada também no trato de pessoas que se mostrem LGBTIA+, evitando posturas ou comentários ou atitudes que possam ofender sua dignidade e que sejam orientadas a sempre utilizar o pronome (ela / ele / elu) de acordo com a identidade de gênero apresentada pela pessoa, já sabendo que a incorporação desta atitude e o nome social será adotado no serviço pelas pessoas funcionárias, bem como nas documentações e exames. Qualquer caso de mal-entendido observado pela equipe de limpeza do serviço de saúde, entre usuárias, deve ser reportado às profissionais de saúde próximas.
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Profissionais da segurança
A função da equipe de segurança dos serviços de saúde é manter a proteção das pessoas, trabalhadoras e usuárias do serviço, e do patrimônio físico do serviço. Nesse sentido, a Segurança deve ser incentivada a participar das discussões sobre a recepção e profissionais e acolhimento de usuárias de forma a conhecer os fluxos, visto que muitas vezes é abordada por pessoas que desejam informações, quando chegam ao serviço. Com relação à ser essa “imagem de entrada do serviço”, seguranças devem atuar com receptividade e amabilidade, tratando a população com respeito, independentemente do tipo de público que adentra ao serviço. Ainda, é importante que não manifeste nenhum tipo de preconceito quanto à aparência física, apresentação pessoal ou forma de agir das pessoas, de forma a evitar constrangimento e afastamento dessas do serviço de saúde. Essa postura deve ser cuidada também no trato de pessoas que se mostrem LGBT, evitando posturas ou comentários ou atitudes que possam ofender sua dignidade e que sejam orientadas a sempre utilizar o gênero (ele / ela / elu) de acordo com a identidade de gênero apresentada pela pessoa, já sabendo que a incorporação desta atitude e o nome social será adotado no serviço por todas as pessoas funcionárias, bem como nas documentações e exames. Qualquer caso de mal-entendido observado pela equipe de segurança no serviço de saúde, entre pessoas usuárias entre si ou entre usuárias e profissionais de saúde, deve-se ter uma postura de mediação, apaziguamento e ser de encaminhamento para conversa com a gerência do serviço ou outra pessoa responsável pelo acolhimento, caso se façam necessárias elucidações e ações.
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Regulação
As Coordenadorias Regionais de Saúde devem organizar os serviços de seu território que ofertarão acompanhamento de pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero. A prescrição de hormônios é apenas uma das estratégias de modificação corporal e poderá ser ofertada. Os serviços disponíveis para esse acompanhamento compõem a Rede SAMPA Trans no município de São Paulo e podem ser consultados on-line.
Para garantir as vagas específicas na agenda regulada, pode-se utilizar o código CID- 10: F 64.0 (que será substituído, assim que a CID-11 entrar em vigor no Brasil, pelo código
HA60). Se no território de moradia não houver unidade de referência do acompanhamento relacionado vivência de variabilidade de gênero, a pessoa interessada em acompanhamento relacionado à vivência de gênero deve passar pelo Acolhimento do seu Serviço de Saúde, que irá identificar a demanda e encaminhá-la para uma unidade da Rede SAMPA Trans da sua região, através da agenda regulada do Sistema SIGA. O setor de regulação do serviço de saúde da atenção básica ou especializada deve receber o encaminhamento de referência e contrarreferência da médica solicitante, que deve conter resumo clínico e, preferencialmente, as demais informações descritas no ‘Quadro Recomendação de informações a serem descritas na ficha de referência e contrarreferência’. A Unidade Básica de Saúde solicitante é a responsável em comunicar a pessoa usuária sobre o agendamento. O encaminhamento para cirurgias de transformações corporais oferecidas pelo SUS não é mediado pelo serviço de regulação, deve seguir o fluxo descrito no capítulo específico (ver Encaminhamento para Cirurgias).
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Gerente local
A gestão das Unidades de Saúde assume a responsabilidade pública de atuar na garantia da continuidade e consolidação de políticas de saúde de acordo com as diretrizes constitucionais e legais do SUS. É necessário que as gestoras aperfeiçoem e busquem novas alternativas de atuação, com propostas estruturantes que garantam a eficiência de suas ações, fortalecendo os vínculos entre os serviços e a população, promovendo o acesso, a qualificação necessária para o acolhimento e o cuidado das usuárias das Unidades de Saúde. O cuidado ofertado pelas Unidades de Saúde tem relação com a qualidade das práticas profissionais, organização e fluxo interno dos serviços de saúde e a organização sistêmica. A qualificação da gestora exige mecanismos adequados de gestão que reflitam em cada uma dessas dimensões.338 A gestora é a coordenadora da gestão do cuidado e dos processos de trabalho de forma humanizada respeitando a inclusão das diferenças nesses processos. Essas mudanças são construídas de forma coletiva e compartilhadas visando estimular a produção de novos modos de cuidar e novas formas de organizar o trabalho. A gestão deve estimular as trabalhadoras para que reinventem seus processos de trabalho e sejam agentes ativas das mudanças no serviço de saúde. Deve também estimular a participação das usuárias e suas redes sociofamiliares nos processos de cuidado. A participação da trabalhadora é fundamental para a efetividade e eficiência do cuidado. A trabalhadora é sujeita e agente transformadora de seu ambiente e o trabalho é realizado através do processo de trocas, de criatividade e coparticipação, de enriquecimento e comprometimento mútuos.339 As reuniões de equipe devem ser institucionalizadas, periódicas e ter horário e espaço garantidos para este fim. As reuniões têm como objetivo discutir os processos de trabalho, educação permanente, construção de projetos terapêuticos e identificação de problemas e propostas de solução.340 É fundamental a estruturação de conselhos gestores em cada Unidade de Saúde com incentivo à participação das usuárias no seu cotidiano. 338 CONASEMS; COSEMS-RJ; LAPPIS/IMS/UERJ. Manual do(a) Gestor(a) Municipal do SUS: “Diálogos no Cotidiano”. 2.ed. Rio de Janeiro: CEPESQ, 2019 339 Diretrizes para Implementação da Rede de Cuidados em IST/HIV/AIDS. Manual Gestão da Rede e dos Serviços de Saúde, CRT – DST/AIDS, 2017 e Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - PNH. 1a edição. Brasília - DF, 2013 340 Diretrizes para Implementação da Rede de Cuidados em IST/HIV/AIDS. Manual Gestão da Rede e dos Serviços de Saúde, CRT – DST/AIDS, 2017
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279 A Política Nacional de Humanização deve estar inserida em todas as políticas e programas do SUS.341 Tendo em vista as premissas acima descritas, seguem abaixo as principais atividades e ações que a gestora das Unidades de Saúde deve realizar:
Identificar profissionais, em especial, médicas com perfil para o atendimento das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero nas Unidades da Rede Sampa Trans. As consultas médicas podem ser realizadas por profissional da categoria médica de diversas áreas de especialidade: médica residente, médica clínica, médica de família e comunidade, médica sanitarista, médica da estratégia de saúde da família, médica endocrinologista e metabologista, médica ginecologista e obstetra, médica urologista ou mesmo generalista. Esse é o primeiro passo para a implantação para o atendimento de hormonização. A médica deve ter perfil para realizar esse atendimento. Também é importante identificar profissionais da equipe multiprofissional (enfermeira, psicóloga, assistente social, farmacêutica, entre outras) que são fundamentais para realizar o acolhimento, as orientações e o atendimento relacionado à identidade de gênero.
Garantir e estimular a sensibilização e capacitação sobre o tema LGBTIA+ para toda a equipe da Unidade da Rede Sampa Trans. Os Centros de Cidadania LGBTI (CCLGBTI) da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) são parceiros fundamentais para a saúde LGBTIA+. Os CCLGBTI realizam sensibilização para o acolhimento adequado e o respeito às pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero para as profissionais das Unidades de Saúde. É fundamental a capacitação e a sensibilização de todas as profissionais da Unidade de Saúde. A gestora deve estimular a participação das profissionais em atividades de educação permanente promovidas pela SMS – EAD / sensibilização, capacitações, grupos de discussão de casos, reuniões periódicas por categoria, encontros dos Serviços da Rede Sampa Trans, reuniões do Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas LGBTIA+ da SMS, etc.
Garantir o respeito e o uso do Nome Social por toda a equipe da Unidade de Saúde.
341 Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - PNH. 1a edição. Brasília - DF, 2013
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280 Para que a população seja acolhida em todas as Unidades de Saúde é fundamental a consolidação do uso do nome social na rotina de todas as Unidades de Saúde, conforme Decreto no 58.228/2018 da Prefeitura do Município de São Paulo.342 É um direito das pessoas usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, é dever de todas as equipes de profissionais e de todos os setores de uma Unidade de Saúde tratar a pessoa com o nome e com os pronomes (masculinos, femininos ou neutros) que ela escolher. O nome social deve constar em todos os registros do serviço de saúde, como cartão do SUS, documentos, receitas e quaisquer formulários utilizados, com garantia de que a pessoa não seja constrangida ao ter seu nome social confrontado com o nome de registro civil. O nome civil não deve ser tornado público.
Manter o cartaz com o nome social de forma visível na Recepção da Unidade de Saúde De acordo com o Decreto no. 58.228 o cartaz sobre o nome social deve estar visível na recepção, assim como o contato da ouvidoria do SUS. A visibilidade do cartaz reforça para a população o respeito e a legalidade do uso do nome social pela Unidade de Saúde.343
Acolhimento das pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero nas Unidades de Saúde Habitualmente, as pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero não acessam os Serviços de Saúde da Atenção Básica por não se sentirem acolhidas. É preciso garantir que essa população se sinta confortável em acessar os serviços, em especial na atenção básica, que é a coordenadora do cuidado e do acompanhamento longitudinal da população. As Unidades de Saúde devem manter espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis, que respeitem a privacidade, propiciem mudanças no processo de trabalho e sejam lugares de encontro entre as pessoas.344 O acolhimento das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero tem início na recepção da Unidade com respeito ao uso do nome social, pronome e identidade de gênero. Também pode ser iniciado pela visita da ACS nas Unidades com a Estratégia de Saúde da Família.
342 Governo Municipal (São Paulo). Decreto no 58.228, de 16 de maio de 2018. Uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero de travestis, mulheres transexuais e homens trans em todos os órgãos da Administração Pública Municipal. São Paulo: Casa Civil; 2018 343 Decreto no 58.228, de 16 de maio de 2018. Uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero de travestis, mulheres transexuais e homens trans em todos os órgãos da Administração Pública Municipal. São Paulo: Casa Civil; 2018 344 Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - PNH. 1a edição. Brasília - DF, 2013
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281 Acolher é reconhecer o que a pessoa traz como legítima e singular necessidade de saúde. O acolhimento deve ser a base das relações entre profissionais de saúde e as usuárias. O acolhimento é construído de forma coletiva, a partir da análise dos processos de trabalho e tem como objetivo a construção de relações de confiança, compromisso e vínculo entre as equipes/serviços, trabalhadora/equipes e usuária com sua rede socioafetiva. As trabalhadoras devem oferecer uma escuta qualificada às necessidades das usuárias garantindo o acesso oportuno das usuárias às suas necessidades, ampliando a efetividade das práticas de saúde. Garantindo que todas sejam atendidas com prioridades a partir da avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco.345 O atendimento deve ser realizado em espaço seguro e reservado, respeitando sua privacidade e dignidade, garantindo a confidencialidade e o sigilo.
Estabelecer o fluxo de atendimento das pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero na Unidade. A recepção da Unidade de Saúde é a referência inicial do atendimento e normalmente é o primeiro contato da usuária com a Unidade. Tem grande relevância na formação da imagem positiva ou negativa que a usuária faz do serviço. Para isso, é essencial que as profissionais da recepção estejam bem informadas sobre os serviços prestados pela Unidade.346 A usuária que chegar espontaneamente à Unidade deve ser atendida pelo acolhimento que irá identificar a demanda que a pessoa traz, seja ela relacionada à identidade de gênero ou não. Devem-se oferecer à pessoa os cuidados específicos em relação à identidade de gênero, que incluem avaliação das vulnerabilidades individuais, orientar e oferecer todas as disponibilidades de cuidado que a Unidade tem a oferecer e do serviço de referência. Ou seja, dependendo da necessidade a profissional do acolhimento encaminhará para as demais profissionais da Unidade.
Direito ao uso de banheiros de acordo com gênero Caso o banheiro seja separado por gênero, eles devem ser utilizados de acordo com o gênero com o qual a usuária se identifica. A gerência deve discutir com toda a equipe para que todas as profissionais fiquem cientes e entendam a escolha da usuária. Sugerimos que a Unidade de Saúde reflita sobre a necessidade de estabelecer separação de gênero na utilização de banheiros e que se proponha a ter banheiro(s) sem gênero definido.
345 Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - PNH. 1a edição. Brasília - DF, 2013 346 Diretrizes para Implementação da Rede de Cuidados em IST/HIV/AIDS. Manual Gestão da Rede e dos Serviços de Saúde, CRT – DST/AIDS. CCD. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2017
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282 Atendimento de homens trans e pessoas transmasculinas por ginecologista, obstetra ou obstetriz. É fundamental atuar pelo conforto da pessoa que inclui criar ambiente e sala de espera acolhedores (preferencialmente que não gere constrangimento pela crença de ser voltado somente para mulheres ou por ser LGBTIA+fóbico), explicar o procedimento antes de realizá-lo, elucidar dúvidas, garantir o direito de ter uma pessoa acompanhante e compreender quais termos são mais bem aceitos pela pessoa para tratar de partes do seu corpo (por exemplo, algumas pessoas transmasculinas sentem-se mal em falar “vagina” e preferem referir-se à “frente” ou utilizar outro termo). Caso a pessoa recuse o exame especular e o exame ginecológico seja indicado, a inspeção vulvar e o toque bimanual podem ser oferecidos e também podem servir como estratégia de adaptação e de estabelecimento de vínculo de confiança com a profissional de saúde, pois uma experiência positiva pode levar a reconsiderações futuras sobre a realização desse e de outros exames.347
Fortalecer a rede de atenção à saúde da pessoa trans, travesti ou com vivências de variabilidade de gênero de forma mais ampliada no território. Estabelecer articulações de forma intersetorial no território visando ampliar as discussões do tema e possibilidades de parcerias. As Unidades da Rede Sampa Trans devem manter contínua articulação com diferentes pontos da rede do Sistema Único de Saúde visando responder com maior resolutividade às demandas apresentadas pelas usuárias trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero. Todos os serviços da rede de atenção em saúde devem compartilhar o cuidado das usuárias. A organização sistemática de ações conjuntas com instituições não vinculadas diretamente à saúde e com organizações não governamentais favorece as intervenções do serviço e amplia sua resolutividade.348
Promover a Intersetorialidade Desenvolver estratégias de cuidado interinstitucionais e formar redes de cuidado a pessoas vítimas de LGBTIA+fobia são algumas das necessidades para coordenação do cuidado e atendimento longitudinal dessa população.
347 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 348 Diretrizes para Implementação da Rede de Cuidados em IST/HIV/AIDS. Manual Gestão da Rede e dos Serviços de Saúde, CRT – DST/AIDS. CCD. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 2017
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283
Transformações corporais
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284 Pessoas trans,travestis ou com vivências de variabilidade de gênero podem ter interesse em transformar partes do seu corpo, visando conforto com a sua imagem corporal, reconhecimento social dentro dos padrões atribuídos ao gênero com o qual se identifica ou até mesmo menor exposição à violência LGBTIA+fóbica. Quaisquer que sejam as motivações da pessoa para transformações corporais, é importante que profissionais de saúde legitimem essa demanda e ofereçam acompanhamento. É necessário oferecer espaço de diálogo sobre os desejos de transformação corporal e suas possibilidades dentro de uma perspectiva realísta, para que a pessoa possa decidir conscientemente, considerando inclusive a irreversibilidade e riscos de algumas das técnicas. A seguir, serão abordadas as transformações corporais mais conhecidas e utilizadas pelas pessoas trans, travestis ou com vivências de variabilidade de gênero.
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Transformações corporais transitórias
Ocultação das mamas O uso de compressão elástica específica (binder), enfaixamento ou esparadrapagem das mamas são técnicas comumente utilizadas para gerar a diminuição temporária do volume mamário. Não há evidência de câncer de mama associado à prática, porém deve-se tomar cuidado com a formação de lesões na pele, desconforto respiratório por compressão torácica e dores musculares por compressão, má ergonomia ou atrofia muscular. Alterações posturais também são frequentemente adotadas com esse intuito, como a projeção anterior dos ombros e hipercifose torácica. Essa prática pode causar dores musculares.
Ocultação de pênis e testículos Habitualmente, realiza-se a tração do pênis posteriormente, junto ao saco escrotal, acompanhada ou não de roupa íntima compressiva ou esparadrapagem (ato conhecido como “aquendar”). Uma variação dessa técnica inclui elevar os testículos ao canal inguinal, para manter o saco escrotal vazio e mais facilmente ocultável. É frequente ocorrer lesões de pele devido ao uso de adesivos ou dores musculares devido à ergonomia adotada. Outro problema é a impossibilidade de urinar enquanto essa técnica é utilizada, gerando postergação do ato de urinar, diminuição de ingesta hídrica deliberadamente e demais problemas relacionados. Alterações posturais, como hiperlordose, são comuns em pessoas que se incomodam em expor o volume genital.
Ocultação de volumes corporais Com a intenção de diminuir a exposição de alguns volumes do corpo, é comum o uso de cintas, espartilhos, coletes ou elásticos. Deve-se atentar para circulação sanguínea, lesão de nervos periféricos, lesões em pele e higiene local.
Próteses externas Sutiãs de silicone em formato de mamas, roupas íntimas com enchimento em silicone ou tecidos, balões preenchidos por gel, diversas camadas de roupas ou cintas modeladoras
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286 são algumas estratégias que modificam a silhueta localmente e temporariamente, mas podem trazer conforto com a aparência. Packer é uma prótese que comumente tem o formato de pênis e/ou saco escrotal, utilizada principalmente com a intenção de aumentar o volume na região pubiana, mas pode também oferecer funcionalidades adicionais (como uma perfuração central que permite urinar em pé, uma “vértebra” semirrígida que mantém a prótese ereta e possibilita penetração sexual ou estimuladores de clitóris para proporcionar prazer sexual). O uso rotineiro de packer pode levar a condições que propiciam dermatite por contato com urina, candidíase vulvar ou lesões por atrito. Ele pode ser mantido junto ao corpo através de cintas ou de roupa íntima, mas algumas pessoas aderem o packer ao corpo com produtos adesivos ou colas (como as direcionadas para colar cílios ou unhas), o que também pode acarretar lesões e outros problemas dermatológicos. Prolongador de clitóris é uma prótese de silicone, normalmente com formato de pênis, que adere ao clitóris hipertrofiado através de pequeno vácuo. Além de ter fins estéticos, também pode ser utilizado para penetração. Não é seguro para ser utilizado por muitos minutos sob o risco teórico de hipoperfusão local, hematoma e edema.
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287 Transformações corporais independentes de serviços de saúde
Algumas estratégias são utilizadas deliberadamente por pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero, de maneira exclusiva ou associada a outras técnicas disponíveis: • Hipertrofia muscular de regiões específicas através de exercícios físicos (glúteos, coxas, peitoral, bíceps, trapézio etc.); • Ganho ou perda de gordura corporal para ocultar ou destacar características reconhecidas como marcadoras de gênero (como contorno da mandíbula, largura de ombros e quadris, volume pubiano etc.); • Minoxidil 5% (medicamento não disponível no SUS): solução tópica aplicada, 1 ou 2 vezes ao dia (preferencialmente com massagem local e antes de dormir), nas regiões em que se pretende aumentar pilificação; • Depilação temporária ou definitiva; • Tratamentos cosméticos, visando transformar linhas de expressão ou alterar a textura da pele, também possuem potencial de atender a demandas específicas; • Uso de Pump: uma bomba de sucção que pode ser comprada, mas também costuma ser artesanalmente construída cortando-se a região distal de uma seringa calibrosa e utilizando-se o êmbolo para produzir vácuo. É utilizada no clitóris com a intenção de aumentar seu volume através da sucção (que gera congestão local e edema) e hipertrofiá-lo com seu uso rotineiro (embora não existam evidências de transformações permanentes geradas com seu uso). Sua utilização frequentemente gera dor, lesões, equimoses e sangramentos locais e não deve ser recomendada.
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288 Transformações da expressão de gênero com alterações posturais
A depender de objetivos individuais e da percepção de cada pessoa sobre quais características considera como masculinas / femininas da postura corporal, são possibilidades: • Observação postural; • Treinamento ergonômico; • Treinamento funcional. A oferta de diálogo e de treinamento específico pode ser realizada por diversas categorias profissionais, desde que a profissional de saúde possua competência técnica ou rede de apoio técnico para tanto. (ver profissional da educação física, fisioterapeuta)
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289 Transformações da expressão de gênero com alterações da voz
Terapias da voz e de comunicação podem ser utilizadas como estratégia para desenvolvimento de habilidades de comunicação, verbais e não verbais, relacionadas à percepção de gênero. (ver Fonoaudiologia)
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Transformações corporais cirúrgicas
A Portaria 2803/2013 dispõe que pessoas trans e travestis, a partir de 21 anos de idade, podem ser encaminhadas para cirurgias de transformações corporais, se assim desejarem, após tempo mínimo de dois anos de acompanhamento multiprofissional.349 A resolução CFM no 2.265/2019, reconhece a possibilidade de realização de cirurgia a partir de 18 anos de idade, após um tempo mínimo de 1 ano de acompanhamento por equipe multiprofissional,350 porém, até o momento da publicação deste protocolo, o município de São Paulo segue as recomendações da Portaria 2803/2013. É importante salientar que procedimentos cirúrgicos não devem estar condicionados à hormonização cruzada prévia, salvo exceções em que a hormonização possa ser recomendável para viabilização e melhor resultado cirúrgico (por exemplo, na metoidioplastia), assim como para adaptação aos hormônios para as pessoas que realizarão gonadectomia e portanto, dependerão de uso contínuo de hormônio exógeno a partir da realização da respectiva cirurgia. Caso a pessoa tenha contraindicação ou impossibilidade de realizar a hormonização, o caso deverá ser discutido individualmente com a equipe cirúrgica. A hormonização prévia pode melhorar a qualidade do resultado de mamoplastias masculinizadoras, embora não seja um pré-requisito para a realização do procedimento. Os serviços de cirurgia que realizam esses procedimentos solicitam relatórios clínicos que comprovem o acompanhamento e a indicação da necessidade de procedimento cirúrgico. (ver Consulta médica) Entende-se como indicação para as cirurgias de transformações corporais: autoidentificação como pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero somada a um sofrimento continuado com a característica corporal específica a ser transformada e a um desejo sustentado de determinada transformação corporal permanente. A avaliação pré-cirúrgica deve considerar a compreensão plena sobre os riscos cirúrgicos e a existência de suporte pós-cirúrgico, assim como a compreensão individual sobre seu próprio corpo. Contraindicações devem ser avaliadas e descritas nos relatórios, tanto clínicas (devido a riscos cirúrgicos) quanto de saúde mental (ausência de domínio pleno de suas próprias faculdades mentais ou em vigência de distorções da sua percepção de realidade, como em quadros psicóticos agudizados). A indicação cirúrgica é um alinhamento do desejo da pessoa
349 Ministério da Saúde (BR). Portaria no 2.803, de 19 de novembro de 2013. Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Gabinete do Ministro; 2013. 350 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.265, de 20 de setembro de 2019. Cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Brasília: Diário Oficial da União 2020 Janeiro; (9): 1(6).
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291 com a sua compreensão dos procedimentos cirúrgicos e seus riscos com a compreensão da equipe sobre benefícios.
Procedimentos cirúrgicos O “Processo Transexualizador no SUS” contempla a possibilidade de realização dos seguintes procedimentos: • Redesignação genital em mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas: Orquiectomia com amputação do pênis, neocolpoplastia e cirurgias complementares (construção da neovagina, meatotomia, meatoplastia, construção dos lábios vulvares, construção de clitóris, tratamento de deiscências e fistulectomia); • Redesignação genital em homens trans e pessoas transmasculinas – em caráter experimental:351 vaginectomia/colpectomia, neofaloplastia, implante de próteses penianas e testiculares e clitoroplastia. Apesar de essas cirurgias ainda serem realizadas somente sob protocolos de pesquisa no Brasil, alguns serviços podem oferecer procedimentos específicos que não contemplem transformações completas da genitália, como metoidioplastia; • Mamoplastia masculinizadora: ressecção de glândulas mamárias, reposicionamento do complexo aréolo mamilar e ajuste do revestimento cutâneo para pessoas transmasculinas; • Histerectomia com (ou sem) anexectomia e colpectomia: ressecção de útero, colo uterino, com ou sem retirada de ovários, e retirada do segmento da vagina para pessoas transmasculinas; • Plástica mamária bilateral: implantes mamários de silicone para mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas – não ofertada atualmente; • Condrotireoidoplastia: redução da cartilagem tireóide (saliência conhecida como “Pomo de Adão”, ou “gogó”) e/ou tensionamento das cordas vocais com vistas à agudização da voz, para mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas – não ofertada atualmente.
Além dessas intervenções listadas na Portaria 2.803/2013 para realização pelo SUS (importante ressaltar que nem todas as listadas na Portaria estão disponíveis ou são
351 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 1652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM no 1.482/97. [Internet]. 2002; 2010. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm
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292 realizadas na rede do município de São Paulo), existem outras cirurgias plásticas e procedimentos estéticos disponíveis somente em serviços particulares: • “Feminização facial” (modificação do contorno facial com redução de proeminências ósseas de mandíbula/osso frontal, enxerto ou extração de gordura subcutânea, alteração da arcada dentária, diminuição do lábio superior, rinoplastia, frontoplastia etc.); • Implante capilar; • Lipoaspiração corporal; • Próteses de silicone ou enxerto de gordura em regiões específicas (região glútea quadril, coxa, tórax, mento etc.).
Cuidados pré-cirúrgicos Além de compensação do quadro clínico dos problemas de saúde pré-existentes e da avaliação padrão de risco cirúrgico, é prudente atentar a situações que podem impactar na segurança da pessoa e no resultado pretendido. Algumas questões mais frequentes são listadas a seguir, de acordo com a cirurgia planejada: • Qualquer cirurgia: compensar quadros clínicos e considerar, junto à equipe cirúrgica, a necessidade de suspensão de estrógenos (principalmente os que não são bioidênticos) e progestágenos, assim como a suspensão do consumo de tabaco, álcool e outras drogas, quatro semanas antes do procedimento devido a riscos (por exemplo, de trombose venosa profunda e necrose dos tecidos manipulados). • Redesignação genital em mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas, com a técnica de inversão peniana ou com enxerto de pele: orientar realização de depilação definitiva (epilação) na pele (haste peniana) a ser utilizada (procedimento que não é oferecido pelo SUS), pois os folículos pilosos podem prejudicar o aspecto final da vulva ou da vagina, aumentar o risco de complicações e dificultar a higienização da neovagina. • Mamoplastia masculinizadora: O índice de massa corporal (IMC) é um fator excludente para a realização adequada da cirurgia, portanto pessoas com IMC>27 não podem ser encaminhadas para a cirurgia, de acordo com os fluxos atualmente existentes. Dessa forma, pessoas com IMC acima de 27 devem ser orientadas pela equipe que realiza acompanhamento clínico sobre a impossibilidade de cirurgia e cabe realizar abordagem de peso corporal e possibilidade de cuidados relacionados à alimentação às pessoas com sobrepeso e obesidade.
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293 • Redesignação genital em homens trans e pessoas transmasculinas: a metoidioplastia depende de hipertrofia de clitóris prévia, obtida com uso de andrógenos. A faloplastia depende de avaliação dos tecidos que serão utilizados para a construção do neofalo. • Condrotireoidoplastia (“redução do pomo de adão”): há necessidade de atentar para a possível limitação da quantidade de cartilagem a ser retirada cirurgicamente, dada a proximidade da região manipulada com o ligamento das pregas vocais. O acompanhamento fonoaudiológico é necessário quando for associada glotoplastia ou tensionamento das pregas vocais.
Cuidados pós-cirúrgicos Para oferecer cuidado pós-cirúrgico, é importante compreender os princípios dos procedimentos realizados. As técnicas cirúrgicas a serem utilizadas dependem do protocolo institucional, do treinamento da equipe cirúrgica, da disponibilidade de recursos no serviço e da viabilidade dos tecidos a serem utilizados. A seguir, estão descritas as técnicas mais frequentemente utilizadas nas cirurgias genitais, suas complicações e alguns cuidados específicos. • Vulvoplastia: a neovulva é construída com tecidos do pênis e do escroto, com encurtamento e reposicionamento da uretra. Na vulvoplastia isolada não há criação de canal vaginal, embora possa ser estruturada uma depressão rasa no local. Diferentes porções da glande podem ser utilizadas para construção de clitóris e/ou locada no fundo de canal vaginal e os corpos cavernosos podem ser posicionados para formar os lábios mas, em alguns casos, esses tecidos são removidos. A orquiectomia é realizada em todos os casos, o que reduz bruscamente a produção de testosterona e torna desnecessário o uso de antiandrógenos. Porém é recomendado o uso de hormônio esteroide para manutenção do metabolismo ósseo. • Vaginoplastia: a maior diferença entre as diferentes técnicas é o tecido utilizado para revestir o canal vaginal criado na pelve. Após a cirurgia são mantidos drenos, sonda uretral e molde vaginal, que é substituído por dilatadores vaginais com aumento progressivo de seus tamanhos para manter e aumentar a forma, a profundidade e a largura da vagina. O uso de dilatador varia de acordo com a técnica cirúrgica utilizada, mas costuma ser recomendado com uso de lubrificante à base de água três vezes por dia até a estabilização cicatricial. Após esse período, pode ser desnecessário ou ser utilizado apenas algumas vezes por semana. A higiene, o repouso pós-cirúrgico e o uso de dilatadores devem ser orientados e acompanhados pela equipe cirúrgica. Após a
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294 estabilização da neovagina, as consultas de acompanhamento podem ser anuais e devem incluir investigação de dispareunia, sangramento, corrimento e sintomas urinários. Dor ou dificuldade de progressão da penetração vaginal podem significar fissuras, estreitamentos, estenoses ou prolapso, assim como podem sinalizar algum grau de disfunção do assoalho pélvico que mereça avaliação especializada. Sinais de infecções urinárias, da pele, da mucosa ou IST precisam ser avaliados. Sangramentos e corrimentos devem ser investigados com exame físico pélvico completo, pois além de hematoma pós-cirúrgico, necrose de enxerto, deiscências e tecido de granulação, podem ser sinais de lesão por trauma, fístula, infecção ou neoplasia. O anuscópio pode ser mais apropriado para o exame das paredes da neovagina do que o espéculo vaginal tradicional. Caso seja necessário avaliar a próstata, pode-se palpá-la também através de toque vaginal.352 , 353
• Vaginoplastia com inversão peniana é a técnica mais realizada, em que a pele da haste peniana e do saco escrotal passa a revestir a (neo)vagina, mas pode-se somar também um segmento da uretra retificado para criar autolubrificação vaginal. Por não possuir mucosa ou pH reduzido, recomenda-se higiene interna com água e sabonete em duchas vaginais, diariamente nos primeiros meses e duas a três vezes por semana quando as dilatações deixam de ser necessárias frequentemente. A flora da (neo)vagina é aquela esperada para a pele utilizada somada a algumas espécies da flora vaginal habitual, porém sem cândida e com raros lactobacilos, sendo pouco frequente a ocorrência de vaginose bacteriana ou candidíase. Desequilíbrios da flora podem ser cuidados com a substituição das duchas por uma solução de vinagre ou iodo a 25% em água, durante 2 ou 3 dias. Em caso de persistência de corrimento e odor, é razoável utilizar empiricamente metronidazol vaginal por 5 dias. As causas da maioria dos corrimentos e odores são: secreção sebácea, descamação epitelial, lubrificante ou
sêmen retido (após prática de penetração peniana). Caso o odor seja persistente, deve- se investigar outras causas.354
• Vaginoplastia intestinal é uma técnica útil quando não há pele peniana suficiente para inversão ou quando é necessária a reabordagem cirúrgica. Um segmento de 15 a 20 cm do íleo ou do colo sigmóide revestem o canal vaginal. A vagina construída tende 352 Oelschlager AAM, Kirby A, Breech L. Evaluation and management of vaginoplasty complications. Current Opinion in Obstetrics and Gynecology. 2017; 29(5): 316-321. 353 Petry AR. Mulheres transexuais e o processo transexualizador: experiências de sujeição, padecimento e prazer na adequação do corpo. Revista Gaúcha de Enfermagem. 2015 Junho; 36(2): 70-5. 354 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines
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295 a necessitar de menos dilatação do que na técnica de inversão peniana e pode haver produção suficiente de muco intestinal para produzir uma lubrificação interna, muito embora possa levar à queixa de odor fétido em 9% dos casos. Avaliações endoscópicas podem ser úteis para incrementar a investigação de lesões e corrimentos que, além das causas descritas anteriormente, também podem significar pólipos intestinais ou colite inflamatória. • Vaginoplastia com enxerto de pele, de mucosa oral ou com peritônio são técnicas pouco utilizadas. O enxerto de pele pode ser utilizado isoladamente, ao mesmo tempo que a inversão peniana ou em reabordagem cirúrgica com o objetivo de aumentar a largura e a profundidade da vagina. A mucosa oral e o peritônio dissecado de bexiga ou reto são utilizados principalmente para reabordagem cirúrgica e geram umidade natural no canal vaginal.355 , 356
• Ooforectomia: associada ou não à histerectomia e salpingectomia, é desejada por algumas pessoas transmasculinas com o objetivo de cessar a produção de hormônios ovarianos e utilizar menores doses de testosterona. Após gonadectomia, o uso de um hormônio esteroide é importante para manutenção da massa óssea. • Histerectomia: os cuidados pós-cirúrgicos para homens trans e pessoas transmasculinas que escolheram retirar o útero por quaisquer motivos (por exemplo: cessação definitiva de menstruação) não são diferentes dos empregados habitualmente em mulheres cis que realizaram histerectomia por indicação clínica. • Metoidioplastia: são utilizados somente os tecidos subjacentes para recobrir o clitóris (frequentemente já hipertrofiado por estímulo hormonal), que tem seus ligamentos dissecados durante o procedimento para se projetar e formar um neopênis. A técnica completa inclui também alongar a uretra com enxerto (de mucosa vaginal ou oral, por exemplo) até a extremidade do neofalo, vaginectomia e/ou escrotoplastia com prótese testicular. A sensibilidade tátil e erógena é mantida no neofalo e, em quase sempre, seu tamanho é insuficiente para a prática sexual de penetração insertiva. O uso de pump é prática bastante difundida, mas que não apresenta dados científicos que comprovem sua eficácia. As complicações mais comuns são problemas uretrais, como estenose e fístula, além de dificuldade urinária devido ao cateter ou stent uretral mantidos temporariamente após a cirurgia. Gotejamento e jato urinário em spray tendem a resolver espontaneamente após reabsorção das suturas internas. É comum a presença
355 Oelschlager AAM, Kirby A, Breech L. Evaluation and management of vaginoplasty complications. Current Opinion in Obstetrics and Gynecology. 2017; 29(5): 316-321. 356 Petry AR. Mulheres transexuais e o processo transexualizador: experiências de sujeição, padecimento e prazer na adequação do corpo. Revista Gaúcha de Enfermagem. 2015 Junho; 36(2): 70-5
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296 de leucócitos e hemácias em exames laboratoriais urinários mesmo muitos meses após a reconstrução uretral, portanto a avaliação de infecção urinária por disúria deve ser realizada com urocultura. O acompanhamento pós-cirúrgico deve ser realizado pela equipe cirúrgica. • Faloplastia: retalho de pele e subcutâneo, mais frequentemente coletado do antebraço, é utilizado para construção de neopênis com maior comprimento e largura, quando essa técnica é comparada com os resultados da metoidioplastia. O tecido clitoriano é mantido na base do neofalo e a rigidez do neofalo será obtida após a colocação de prótese peniana. Costumam ser necessárias diversas abordagens cirúrgicas e possui mais riscos de complicações que a metoidioplastia. Devem-se observar secreções em drenos, hematomas, infecções, necrose de tecidos, fístulas, tecidos de granulação, deslocamento ou infecção de prótese testicular, achatamento da coroa da glande, cicatrizes hipertróficas e queloides. O acompanhamento pós-cirúrgico é realizado pelo mesmo hospital que realizou a intervenção.357,358,359,360 Ressalta-se que esse tipo de cirurgia é considerado experimental e, portanto, é realizada obrigatoriamente sob protocolo de pesquisa.361 • Mamoplastia masculinizadora: é realizada plástica das mamas com retirada da maioria ou da totalidade do tecido glandular mamário através de abordagem periareolar ou inframamária e, se necessário, é retirada também a pele em excesso com reposicionamento ou enxerto dos mamilos. Podem ser mantidos drenos após a alta hospitalar e, além dos cuidados para que a cicatriz tenha boa aparência, é recomendada a limitação da movimentação dos membros superiores e não tracionar a pele local até a cicatrização.362
357 Stroumsa S, Wu JP. Welcoming transgender and nonbinary patients: expanding the language of “women ́s health”. American Journal of Obstetrics & Gynecology. 2018 December: 585-588. 358 Madruga DP, Silva LFG. Cirurgias usadas no processo de reafirmação de gênero FTM (feminino para masculino): faloplastia total e metoidioplastia - Processo-consulta CFM no 6/2019 – Parecer CFM no 25/2019. Conselho Federal de Medicina. 2019. 359 Djordjevic ML, Stojanovic B, Bizic M. Metoidioplasty: techniques and outcomes. Transl Androl Urol. 2019; 8(3): 248-253. 360 Bizic MR, Stojanovic B, Joksic I, Djordjevic ML. Metoidioplasty. Urologic Clinics of North America. 2019; 46: 555-566. 361 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 1652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM no 1.482/97. [Internet]. 2002; 2010. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm 362 Medalie DA. Invited Discussion on: Masculinizing Chest Reconstruction in Transgender and Nonbinary Individuals: An Analysis of Epidemiology, Surgical Technique and Postoperative Outcomes. Aesth Plast Surg. 2019; 43: 1586–1587.
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Fluxo de encaminhamento para cirurgias A pessoa que refere desejo de realizar as cirurgias oferecidas pelo SUS no município de São Paulo, deve ser acompanhada pela Rede SAMPA Trans. A equipe de saúde responsável pelo seu atendimento deve preencher a Ficha de Admissão do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (ASITT/CRT/SES) – situado na Rua Santa Cruz, 81. Em São Paulo, esse serviço regula a fila de espera para as cirurgias realizadas em hospitais parceiros, localizados na Grande São Paulo. A Ficha de Admissão do ASITT pode ser obtida através do e-mail: asitt@crt.saude.sp.gov.br. Ao receber a ficha, o serviço de saúde deve preenchê-la junto à pessoa, com seus dados, e enviá-la de volta para esse endereço de e-mail. Esse fluxo implica que a unidade de referência para o acompanhamento da pessoa realize o envio da ficha, portanto a pessoa não deve ser responsabilizada pela busca individual de seu cadastro no ASITT. Para saber quais procedimentos cirúrgicos estão disponíveis e quais os hospitais os realizam, deve-se consultar o ASITT. Informamos que, no momento da publicação deste protocolo, os procedimentos cirúrgicos disponibilizados pelos hospitais parceiros para o encaminhamento através do ASITT são: • para mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas: cirurgia de redesignação genital; • para homens trans e pessoas transmasculinas: mamoplastia masculinizadora e histerectomia. • Cirurgias de faloplastia são consideradas experimentais no Brasil363 e, por esse motivo, apenas hospitais universitários que realizam pesquisa oferecem o procedimento. Desde 2019, homens trans e pessoas transmasculinas interessadas em faloplastia que não foram absorvidas em protocolos de pesquisa podem iniciar processo judicial para solicitarem ser incluídas nas filas de espera dos serviços responsáveis.364 O acompanhamento prévio às cirurgias deve ser ofertado pela Rede SAMPA Trans e envolve um acompanhamento por um tempo total de, no mínimo, dois anos, de acordo com
363 . Conselho Federal de Medicina. Resolução no 1652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM no 1.482/97. [Internet]. 2002; 2010. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm 364 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 1.370, de 21 de junho de 2019. Inclui procedimento na tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS [Internet]. 2019. Disponível em: https://brasilsus.com.br/wpcontent/uploads/2019/06/portaria1370.pdf
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298 a portaria do “Processo Transexualizador no SUS”,365 embora os serviços privados possam seguir recomendações do Conselho Federal de Medicina tenha emitido a resolução CFM no 2.265/2019 que reconhece a possibilidade desse acompanhamento durar somente um ano.366 Os serviços que realizam cirurgia necessitarão de um relatório dos serviços ou das equipes que realizaram esse acompanhamento, o qual deve conter informações mínimas (ver quadro) e, preferencialmente, ser construído junto à pessoa atendida. (ver Consulta médica) Os serviços que oferecem cirurgia aceitarão relatórios emitidos até o prazo de 6 meses anterior à consulta de admissão no processo cirúrgico. A UBS, como coordenadora do cuidado, deverá continuar a oferecer acesso aos seus serviços e realizar acompanhamento longitudinal da pessoa atendida após o encaminhamento para realização de cirurgia. A equipe de Atenção Básica deve reconhecer queixas e outras necessidades em saúde, oferecendo também ações de prevenção a doenças e promoção à saúde, garantindo acesso, longitudinalidade, integralidade no cuidado e atenção à saúde orientada pela realidade individual e comunitária da pessoa atendida, com competência cultural. A UBS também é responsável por realizar coordenação do cuidado pela equipe da APS, identificando e coordenando os acompanhamentos realizados em outros serviços. As unidades que integram a rede SAMPA Trans também devem, como forma de coordenação de cuidado, reunir relatórios emitidos por profissionais de outros serviços, assim como realizar as avaliações necessárias, emitir relatório e encaminhar ao setor responsável pela regulação das cirurgias (no momento da publicação deste protocolo, o ASITT/CRT/SES). Serviços de especialidade e ambulatórios específicos de atendimento a pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero que realizam acompanhamento das especificidades de cuidados em saúde relacionados à transgeneridade / transexualidade / travestilidade (serviços que realizam hormonização) também podem coordenar o cuidado desta pessoa reunir relatórios prévios e emitir relatório para encaminhamento ao setor responsável pela regulação das cirurgias (no momento da publicação deste protocolo, o ASITT/CRT/SES).
365 Ministério da Saúde (BR). Portaria no 2.803, de 19 de novembro de 2013. Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Gabinete do Ministro; 2013. 366 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.265, de 20 de setembro de 2019. Cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Brasília: Diário Oficial da União; 2020 Janeiro(9): 1(6).
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299 Quadro 26 – Informações mínimas a serem descritas nos relatórios para encaminhamento aos serviços de cirurgia
Informações relevantes nos relatórios a serem emitidos para encaminhamento aos serviços de cirurgia
• Informações sobre consentimento para emissão do relatório e sua finalidade (Sugestão: “declaro, sob solicitação da pessoa atendida e para finalidade de realização de cirurgia de...”) • Caso a pessoa possua nome social, ele deve ser usado em substituição ao nome de registro (que não é necessário) em respeito à identidade autorreferida. • Informações de interesse administrativo: data de nascimento, número do prontuário da pessoa (na unidade de saúde que emite o relatório), número do CNS, CPF (que possibilita identificação independente ao nome de registro, com proteção de direitos), contato da pessoa atendida (telefone), etc. • Características gerais de identificação da pessoa usuária do serviço (gênero identitário, naturalidade, habitação, religião, escolaridade, ocupação etc). • Qual a cirurgia desejada e se houve manutenção ou oscilação do desejo pela cirurgia, durante o acompanhamento. • Informações da avaliação psicossocial da pessoa, incluindo diagnósticos de problemas de saúde mental, caso existam, e o seu planejamento terapêutico. • Tempo de acompanhamento pelo serviço e/ou pela(s) profissional(is) que redige(m) o relatório, assim como abordagens e/ou reavaliações realizadas. Informações sobre acompanhamentos prévios (avaliações realizadas e tempo de acompanhamento prévio, com relatórios emitidos anteriormente em anexo). • Descrição de doenças diagnosticadas, assim como seu tratamento e quadro clínico atual. • Medicamentos e hormônios utilizados, assim como suas doses atuais e tempo de uso. • Antecedentes pessoais, antecedentes familiares significativos e demais fatores de risco para adoecimento já identificados. • Exames já realizados. • Para cirurgias de redesignação genital para pessoas transfemininas: rastreamento realizado para disfuncionalidade de assoalho pélvico e informações sobre a disponibilidade de fisioterapia específica no período pós-operatório, informação sobre realização de epilação, ciência de que o resultado pode ser impactado caso não seja realizada epilacão a laser da haste peniana e 1,5 cm no entorno da base da haste peniana, ciência da pessoa atendida de que não há garantia de preservação de prazer sexual e sensibilidade erógena na região. • Para cirurgias que afetarão a capacidade reprodutiva: ciência e assentimento da pessoa atendida sobre os impactos da cirurgia pretendida sobre a fertilidade. • Para cirurgias que envolvem gonadectomia: ciência e assentimento da pessoa atendida sobre expectativa de uso de hormônios continuamente, após a cirurgia. • Contato profissional e disponibilidade para discussão do caso. • Assinatura de pelo menos 2 profissionais de saúde em um único relatório, ou assinatura de 1 profissional com cópia anexa de relatórios individuais emitidos por pelo menos mais 1 profissional, para totalizar pelo menos 2 relatórios individuais. As 2 profissionais que assinam o relatório devem ser de categorias profissionais ou especialidades médicas diferentes, sendo pelo menos uma dessas profissionais da categoria médica. • Data da emissão (o relatório terá prazo de validade de 6 meses, entre sua emissão e a admissão no ambulatório cirúrgico). Fonte: consenso em reuniões de pactuação da SMS com as equipes que realizam cirurgias no município de São Paulo
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300 Orientações gerais e de acompanhamento, visando o encaminhamento para cirurgias
Antes de encaminhar para uma cirurgia, deve-se atentar para o acompanhamento da pessoa. A equipe deve atentar para qual é o objetivo do acompanhamento, seu planejamento e condutas. Na rede SUS do município de São Paulo, o encaminhamento para cirurgias pode ser realizado caso a pessoa preencha todos os seguintes critérios: ● Após, pelo menos, 2 anos de acompanhamento (com equipe multidisciplinar); ● A pessoa atendida deve ser maior de 21 anos; ● Desejo consistente da pessoa para indicação cirúrgica; ● Ausência de contraindicações biopsicossociais para a cirurgia; ● Tenham sido realizados cuidados pré-cirúrgicos; ● A pessoa tenha ciência dos riscos, complicações e cuidados; ● A pessoa tenha condições para cuidados pós-cirúrgicos.
Alguns fatores podem contraindicar a cirurgia em dado momento. São eles: ● Pessoas que não apresentam maturidade suficiente para compreender o processo; ● Pessoas que apresentam condições físicas e/ou mentais desfavoráveis para realização do procedimento;
● Pessoas que apresentam condições sociais desfavoráveis para cuidados pós- operatórios que podem comprometer a recuperação da cirurgia.
Durante o acompanhamento, é necessário que alguns aspectos tenham sido abordados com a pessoa atendida. São eles: ● Histórico pessoal e contexto de vida atual (físico, mental, afetivo, ocupacional, sexual, familiar e social) incluindo fatores de adoecimento/vulnerabilidades e de proteção; ● Relação da pessoa com seu corpo e gênero ao longo da vida; ● As condições de autonomia/autodeterminação da pessoa para chegar ao processo pretendido; ● Informações e expectativas sobre o acompanhamento (incluindo cirurgias); benefícios, riscos e complicações dos procedimentos pretendidos, assim como o impacto esperado em diversas áreas da vida/funcionamento; ● Informações sobre contraindicações para os procedimentos pretendidos; ● Informações sobre cuidados de pré e pós-operatório;
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● Necessidade de preenchimento de TCLE, antes da realização da cirurgia; ● Entre outros.
Portanto, o relatório não se deve ser visto apenas como um documento “pro forma” só porque foi completado o período de 2 anos de acompanhamento (tempo mínimo exigido pela Portaria 2.803/2013 para realização de cirurgias) mas, sim, o relatório deve ser compreendido como um registro conciso do que ocorreu durante o acompanhamento e, para o encaminhamento a determinada cirurgia, deve conter informações importantes e que sejam favoráveis à realização do procedimento.
Quadro 27 – Orientações gerais para a redação de relatórios por equipes multiprofissionais para encaminhamento a cirurgias Orientações gerais para a redação de relatórios por equipes multiprofissionais
para encaminhamento a cirurgias
• De acordo com a Portaria do MS 2.803/2013, o período mínimo de acompanhamento multidisciplinar para encaminhamento para cirurgias é de 2 anos e a pessoa atendida deve ser maior de 21 anos. Entretanto, não é especificado que a pessoa seja atendida por todas as áreas profissionais da equipe e nem do mesmo serviço, mas pelo conjunto multidisciplinar que a assistiu. Os relatórios emitidos por outros serviços ou profissionais referentes aos acompanhamentos prévios referentes à identidade de gênero da pessoa atendida, para totalizar o tempo mínimo de acompanhamento multiprofissional exigido pela Portaria MS 2.803/2013, devem ser anexados. • O relatório deve ser digitado, e todas as páginas do relatório devem ser numeradas (e constar o número total de páginas no número da página. Ex.: página 1/5, 2/5, e assim por diante). As pessoas profissionais devem rubricar todas as páginas, bem como assinar e carimbar a última. • Relatório é um documento formal, logo, é necessário revisar o texto (dados, linguagem, termos, ortografia, pontuação etc.). • O processo de relatoria das seções PROCEDIMENTO e ANÁLISE deve ser separado em dois itens: CLÍNICO e PSICOSSOCIAL. • É necessário imprimir 2 vias do relatório (uma que será entregue para a pessoa atendida e a outra para ser arquivada no prontuário). • A pessoa atendida deve ler o relatório e dar o aceite sobre seu conteúdo antes da entrega. • Relatório tem validade de 6 meses entre sua emissão e a admissão no ambulatório cirúrgico.
● De acordo com a Portaria do MS 2.803/2013, o período mínimo de acompanhamento multidisciplinar para encaminhamento para cirurgias é de 2 anos e a pessoa atendida deve ser maior de 21 anos. Entretanto, não é especificado que a pessoa seja atendida por todas as áreas profissionais da equipe e nem do mesmo serviço, mas pelo conjunto multidisciplinar que a assistiu. Os relatórios emitidos por outros serviços ou profissionais referentes aos acompanhamentos prévios referentes à identidade de gênero da pessoa
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302 atendida, para totalizar o tempo mínimo de acompanhamento multiprofissional exigido pela Portaria MS 2.803/2013, devem ser anexados. ● O relatório deve ser digitado, e todas as páginas do relatório devem ser numeradas (e constar o número total de páginas no número da página. Ex: página 1/5, 2/5, e assim por diante). As pessoas profissionais devem rubricar todas as páginas, bem como assinar e carimbar a última. ● Relatório é um documento formal, logo, é necessário revisar o texto (dados, linguagem, termos, ortografia, pontuação etc.). ● O processo de relatoria das seções PROCEDIMENTO e ANÁLISE deve ser separado em dois itens: CLÍNICO e PSICOSSOCIAL. ● É necessário imprimir 2 vias do relatório (uma que será entregue para a pessoa atendida e a outra para ser arquivada no prontuário). ● A pessoa atendida deve ler o relatório e dar o aceite sobre seu conteúdo antes da entrega. ● Relatório tem validade de 6 meses entre sua emissão e a admissão no ambulatório cirúrgico.
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Modelo de relatório multidisciplinar para encaminhamento a cirurgias Esse modelo de relatório foi baseado nas orientações do Conselho Federal de Psicologia, pois profissionais de psicologia devem redigir conforme as orientações do CFP.367 Entretanto, não é necessário que profissional de psicologia tenha feito parte do processo de acompanhamento ou tenha que assinar o documento (como pode ser observado no item Local, data e assinaturas). Outras categorias profissionais devem verificar as orientações dos respectivos Conselhos de classe. No entanto, este modelo pode servir como referência para as demais categorias profissionais. Quadro 28 – Estrutura sugerida de relatório para encaminhamento a cirurgias de afirmação de gênero
Estrutura sugerida para o relatório de encaminhamento a cirurgias 1. SERVIÇO (colocar logo ou imprimir em papel timbrado, quando houver) 2. AUTORIA DO RELATÓRIO 3. IDENTIFICAÇÃO DA PESSOA ATENDIDA 4. FINALIDADE 5. DESCRIÇÃO DA DEMANDA 6. PROCEDIMENTO (histórico do acompanhamento) (a relatoria deve ser separada em 2 itens: clínico e psicossocial) 7. ANÁLISE (evolução) (a relatoria deve ser separada em 2 itens: clínico e psicossocial) 8. CONCLUSÃO 9. LOCAL, DATA E ASSINATURAS 10. REFERÊNCIAS 11. ANEXOS (Quando houver: Relatórios de outros serviços e/ou profissionais) Fonte: Conselho Federal de Psicologia A seguir, são apresentados os detalhamentos de cada item da estrutura sugerida para o relatório.
367 Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- content/uploads/2019/09/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n-06-2019-comentada.pdf
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1. Serviço Nesta seção do relatório, deverá ser identificado o serviço responsável pelo acompanhamento da pessoa atendida e no qual a equipe que emite o relatório está vinculada, e uma forma de contato ativo (e-mail, telefone etc.). Quando houver, colocar logotipo do serviço ou imprimir o relatório em papel timbrado. • Nome do serviço/unidade: • Contato: 2. Autoria do relatório Esta seção é reservada para a identificação das(os) profissionais autoras(es) do relatório e precisa conter: nome completo (civil ou social), indicação de categoria profissional e o respectivo registro em órgão de classe. • Nome das(os) autoras(res): • Área(s) Profissional(is): • Registro(s) de classe: • Contato(s):
3. Identificação da pessoa atendida Esta seção é reservada para a identificação da pessoa a qual o relatório faz menção (a pessoa atendida pelo serviço) e deverá ser preenchida com as informações solicitadas. ATENÇÃO: para o campo nome, utilizar o nome social ou civil (em acordo com a preferência da pessoa usuária). De modo semelhante, para o campo gênero, indicar a identidade de gênero com a qual a pessoa se identifica (e não o gênero atribuído ao nascer).
• Nome (social ou civil): • Gênero: • Pronome (ela/ele/elu): • CPF: • Cartão SUS/CNS: • Número do prontuário no serviço: • Data de nascimento: • Idade: • Naturalidade: • Cidade do endereço atual: • Escolaridade: • Profissão/ocupação: • Religião: • Telefone: • E-mail: 4. Finalidade
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305 Esta seção indica a finalidade do documento, como demonstrado no texto modelo. A pessoa profissional deverá inserir o nome da pessoa atendida e o termo técnico do procedimento para o qual ela está sendo encaminhada. Os termos abaixo foram elencados a partir das reuniões com as equipes cirúrgicas que realizam os procedimentos que estão disponíveis na rede pública em São Paulo no momento.
• Genitoplastia - Neovulvovaginoplastia – Transgenitalização • Mamoplastia masculinizadora • Histerectomia (especificar se com ou sem gonadectomia) Sugestão de texto: “Sob solicitação de [nome da pessoa atendida] e conforme as Diretrizes de Atenção Especializada previstas na Portaria MS 2.803/2013, este documento foi elaborado como parte do acompanhamento relacionado à vivência de variabilidade de gênero e com a finalidade de atender as exigências técnicas do encaminhamento para o procedimento cirúrgico de [nome técnico do procedimento].” Fenômenos situados no campo das identidades de gênero, abrangem populações marcadas pelo preconceito, discriminação e pela dificuldade de acesso aos direitos. Segundo a Cartilha de Orientação para o Atendimento – LGBT, elaborada pelo Centro de Atendimento Multidisciplinar da Defensoria Pública do Estado de São Paulo:
As identidades ou expressões de gênero são as diferentes maneiras de sentir e se apresentar para si e para os outros, em termos de feminilidades e masculinidades. Porém, apesar de nossa cultura privilegiar a diferença sexual “ter pênis ou vagina” como sendo a base da identidade de gênero, o nosso sexo biológico não determina nossa identidade de gênero. Essas categorias – sexo biológico, identidades de gênero e orientação sexual - compõem um universo extremamente amplo e de infinitas possibilidades, que denominamos diversidade sexual, ou seja, as várias formas de expressão que a sexualidade humana pode assumir. E não podemos nos esquecer de que, certamente, nenhuma dessas definições, sozinha, dá conta de explicar essa tamanha diversidade. (DPESP, 2013).
5. Descrição da demanda Esta seção do relatório é reservada para breve apresentação sobre a pessoa atendida e exposição concisa, mas assertiva, das razões que motivaram a busca pelo acompanhamento realizado pelo serviço e o procedimento cirúrgico pretendido.
6. Procedimento (histórico do acompanhamento)
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306 Esta seção deverá conter uma descrição objetiva, concisa e tecnicamente orientada acerca dos procedimentos realizados ao longo do acompanhamento da pessoa atendida (separado em dois tópicos: 1. acompanhamentos/procedimentos clínicos e 2. psicossociais), com identificação das categorias profissionais que prestaram os atendimentos. Aspectos de relevância para o preenchimento e que devem constar: ● Descrição dos acompanhamentos no serviço, incluindo data de início e tempo de acompanhamento no serviço e/ou profissional(is) que redige(m) o relatório, assim como abordagens e/ou (re)avaliações realizadas. ● Antecedentes pessoais (e familiares significativos), bem como demais fatores de risco para adoecimento (físico e mental), incluindo uso de tabaco, álcool e outras substâncias, ideação e tentativas de suicídio. ● Descrição de doenças diagnosticadas de relevância para o encaminhamento, assim como seu tratamento e quadro clínico atual. ● Informações da avaliação psicossocial da pessoa, incluindo diagnósticos de saúde mental; caso existam e sejam significativos, o seu planejamento terapêutico e quadro atual. ● Medicamentos e hormônios utilizados, assim como suas doses atuais e tempo de uso (incluir peso, altura, índice de massa corporal (IMC), pressão arterial (PA). Esses dados devem ser datados da última consulta antes da elaboração do relatório. ● Exames já realizados e últimos resultados (quando relevantes).
7. Análise Este item do relatório é reservado para as considerações técnico-científicas da equipe profissional que assina o documento a respeito da evolução do acompanhamento (separado em dois tópicos: 1. Acompanhamentos / procedimentos clínicos e 2. psicossociais). Aspectos de relevância para o preenchimento da seção de ANÁLISE e que devem constar: ● Considerações sobre a evolução do acompanhamento, incluindo se houve manutenção ou oscilação do desejo (da pessoa atendida) pela cirurgia durante o acompanhamento. ● Informações sobre as condições biopsicossociais atuais (saúde física; mental/emocional; e aspectos sociais como habitação/moradia, rede de apoio, recursos e condições para cuidados pré e pós-operatórios) ● Ciência da pessoa atendida sobre os riscos e benefícios do procedimento pretendido, cuidados pré e pós-cirúrgicos, incluindo retornos com a equipe cirúrgica e de acompanhamento no serviço após a cirurgia por, em média, 1 ano.
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307 ● Para cirurgias que afetarão a capacidade reprodutiva: ciência e assentimento da pessoa atendida sobre os impactos da cirurgia pretendida sobre a fertilidade. ● Para cirurgias que envolvem gonadectomia: ciência e assentimento da pessoa atendida sobre a necessidade de uso contínuo e permanente de hormônios, após a cirurgia.
Além dos itens anteriores, para as cirurgias de neovaginoplastia, é necessário informar: ● Informação sobre realização de epilação, ciência de que o resultado pode ser impactado caso não seja realizada epilacão a laser da haste peniana e 1,5 cm no entorno da base da haste peniana. A epilação a laser não funciona em pelos brancos, portanto, é importante orientar as pessoas atendidas para realizar a epilação a laser antes do aparecimento de pelos brancos ou, caso eles existam, utilizar métodos de epilação definitiva alternativo (como eletrólise). ● Ciência de que será realizado rastreamento para disfuncionalidade de assoalho
pélvico e informações sobre a disponibilidade de fisioterapia específica no período pós- operatório.
● Ciência de que não há garantia sobre a preservação do prazer sexual ou sensibilidade erógena na região após o procedimento cirúrgico. ● Ciência da pessoa atendida sobre os cuidados pós-cirúrgicos, incluindo a dilatação com molde da neovagina no pós-operatório, que deve ser realizada 3 vezes ao dia.
8. Conclusão Nesta seção, as pessoas profissionais devem ponderar os aspectos principais discutidos ao longo do documento, considerando-os à luz da finalidade do documento e do encaminhamento que está sendo realizado. (Na conclusão pode constar encaminhamento, orientação e sugestão de continuidade do atendimento ou acolhimento - CFP). ● Conclusões a partir do relatado na ANÁLISE, explicitando possíveis benefícios do procedimento pretendido, ausência de contraindicações para encaminhamento para
a cirurgia, incluindo aspectos de condições emocionais e cognitivas (condições pré- existentes de saúde física e mental, não necessariamente inviabilizam o
encaminhamento, mas devem estar estabilizadas), informações sobre manutenção do desejo da pessoa atendida para o procedimento, discernimento e exercício da autonomia da pessoa, ciência e condições de cuidados pré e pós-operatórios. ● Nota de que o relatório não poderá́ ser utilizado para fins diferentes do apontado no item FINALIDADE, que possui caráter sigiloso, que se trata de documento extrajudicial
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308 e que quem redige o relatório não se responsabiliza pelo uso dado ao relatório (multi)profissional por parte da pessoa, grupo ou instituição, após a sua entrega em entrevista devolutiva. ● Nota de que o relatório será válido pelo prazo de 6 meses, entre sua emissão e a admissão no ambulatório cirúrgico.
Ressalta-se ainda que, de acordo com a Nota Técnica do Conselho Federal de Psicologia, para o “Processo Transexualizador no SUS” e demais formas de assistência às pessoas trans, a transgeneridade, a transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica. 9. Local, data e assinaturas O documento deve ser encerrado com indicação do local, data de emissão, carimbo, em que conste nome completo ou nome social completo das pessoas profissionais, os números de inscrição na sua categoria profissional, com todas as páginas numeradas (e constar o número total de páginas no número da página. Ex: página 1/5, 2/5, e assim por diante), rubricadas da primeira até a penúltima página, e a(s) assinatura(s) (com carimbo) na última. ● Local e data da emissão. ● Assinatura e carimbo de, pelo menos, 2 profissionais em um único relatório (multiprofissional), ou assinatura de 1 profissional, com cópia anexa de relatório(s) individual(is) emitido(s) por, pelo menos, mais 1 profissional para totalizar, pelo menos, 2 relatórios individuais. ● As pessoas (2, no mínimo) que assinam o relatório de equipe multiprofissional (relatórios individuais seguem a mesma lógica) devem ser de categorias profissionais ou especialidades médicas diferentes; sendo, pelo menos, 1 profissional da área médica.
10. Referências do relatório • DPESP. Cartilha de Orientação para o Atendimento – LGBT. 2013 [Acesso em: 08 Dez 2017]. Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/0/documentos/cam/LGBT.pdf • Gabinete do Ministro, Ministério da Saúde (Brasil). Portaria No2.803, de 19 de novembro de 2013: Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS) [Acesso em: 08 Dez 2017]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html • Conselho Federal de Psicologia. Nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de
assistência às pessoas trans. 2013. [Acesso em: 08 Dez 2017]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp- content/uploads/2013/09/Nota-técnica-processo-Trans.pdf
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309 • Conselho Federal de Psicologia. Resolução No 1, de 29 de janeiro de 2018: Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis Acesso em: 13 Ago 2022]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolução-CFP-01-2018.pdf • Conselho Federal de Psicologia. Resolução No 6, de 29 de março de 2019. Institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional e revoga a Resolução CFP no 15/1996, a Resolução CFP no 07/2003 e a Resolução CFP no 04/2019 [Acesso em: 13 Ago 2022]. Disponível em: https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-6-2019-
i%20nstitui-regras-para-a-elaboracao-de-documentos-escritos-produzidos-pela-o-psicologa-o-no- exercicio-profissional-e-revoga-a-resolucao-cfp-no-15-1996-a-resolucao-cfp-no-07-2003-e-a-resolucao- cfp-no-04-2019?q=006/2019
• Conselho Federal de Psicologia. Resolução CFP 06/2019 comentada: orientações sobre elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional [Acesso em 10 Out 2022]. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n-06- 2019-comentada.pdf • Conselho Regional de Psicologia. Documento de Orientação CRP 06 No 002/2019. A atuação profissional de psicólogas/os no processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans [Acesso em: 13 Ago2022]. Disponível em: https://www.crpsp.org/uploads/impresso/3818/KYIBSjaq2HVprbiLqtCWnQWVFvrre2-q.pdf 11. Anexos (quando houver) Os relatórios emitidos por outros serviços ou profissionais referentes a acompanhamentos prévios da pessoa atendida referentes à identidade de gênero, para totalizar o tempo mínimo de acompanhamento multiprofissional exigido pela Portaria MS 2.803/2013, devem ser anexados.
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Silicone líquido industrial
Esse material de constituição diversa, que traz em sua composição polímeros químicos e óleos, é produzido para lubrificação, limpeza ou vedação de máquinas, carros e peças de avião e na construção civil para impermeabilização de azulejos, vedação de vidros, entre outras utilidades. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o silicone industrial nunca deve ser utilizado no corpo humano e “a sua aplicação como material para cirurgia plástica e outros procedimentos estéticos é considerada crime contra a saúde pública previsto no Código Penal – exercício ilegal da medicina, curandeirismo e lesão corporal”.368 Entretanto, a aplicação clandestina e insalubre dessa substância, realizada através de injeções nas regiões do corpo a serem transformadas, é uma prática comum entre mulheres trans e travestis e costuma ser feita por pessoas chamadas de “bombadeiras”, que muitas vezes são travestis experientes. Além da dor decorrente do procedimento e do evidente risco de infecção, a injeção pode atingir regiões não desejadas, causando trombose, tromboembolismo pulmonar, embolia pulmonar, linfedema, necrose de tecidos e outros problemas em longo prazo. Por não se tratar de uma prótese com cápsula, ao longo do tempo a substância pode migrar entre os tecidos e aderir-se a eles, o que torna bastante complexas as cirurgias para remoção nos procedimentos de redução de danos. Muitas vezes as cirurgias envolvem a remoção de grandes partes de tecidos, como músculos, gordura e até pele, com a geração de uma ferida crônica que envolve cuidados para a cicatrização por segunda intenção. Cabe às profissionais de saúde informar sobre os riscos associados ao seu uso e acompanhar a localização e distribuição do silicone já injetado, com registro e desenhos em prontuário, além de avaliação periódica da necessidade de intervenção. As regiões com silicone nunca devem ser perfuradas, portanto não devem ser injetadas medicações em glúteo caso a pessoa tenha preenchido a região com silicone. (ver Administração de medicação intramuscular) O acompanhamento de pessoas com silicone industrial injetado deve ser realizado na UBS de referência da pessoa atendida, com registro em prontuário da região com silicone (inclusive com desenhos, se necessário) para observação de sua migração e de sinais de alerta. Caso considere-se necessária a remoção dos tecidos impregnados com silicone, a
368 Anvisa. Risco à saúde: silicone industrial para uso estético. Brasília: Portal Anvisa: Ascom. 2018; Julho (27). Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/noticias/-
/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/risco-a-saude-silicone-industrial-para- usoestetico/219201/pop_up
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311 pessoa deve ser encaminhada para a rede de referência específica, que poderá ser consultada junto à Interlocutora de Saúde LGBTIA+ da Coordenadoria de Saúde regional. No momento da publicação deste protocolo, a avaliação da necessidade de intervenção cirúrgica pode ser realizada pelo CR POP TT.
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Transformações corporais por meio de hormonização
Como a atual resolução CFM no 2.265/2019, reconhece benefícios e possibilidade do início de hormonização cruzada aos 16 anos de idade, a hormonização cruzada será oferecida pela Rede SAMPA Trans a partir dos 16 anos de idade.369 Muitas pessoas já se apresentam ao serviço de saúde usando hormônios, frequentemente inapropriados em relação à sua condição de saúde ou administrados de maneira potencialmente danosa à sua integridade física. Nesses casos, não se deve julgar e sim registrar o tipo de hormônio, buscar compreender a crença da pessoa na forma como usa o hormônio, realizar análise clínica e laboratorial cuidadosa para investigar possíveis danos, alertando sobre os potenciais riscos à saúde quanto ao tipo hormonal, superdosagem empregada e/ou modo incorreto de uso e via de administração. Quando a pessoa que busca atendimento tem idade inferior à regulamentada para hormonização (16 anos, de acordo com a Resolução CFM 2.265/2019), deve-se considerar encaminhamento para serviço específico de atendimento a crianças e adolescentes. Na ausência deste serviço, a unidade de saúde deve oferecer acolhimento da pessoa e familiares, orientação, apoio e seguimento até o momento oportuno para a hormonização. Em casos específicos, recomenda-se estabelecer cuidados para Redução de Danos, indicando hormônios mais adequados e sob supervisão clínica-multiprofissional, pois é sabido que o uso indiscriminado de hormônios e sem orientação adequada pode ocasionar graves problemas de saúde. Além disso, o acompanhamento por profissionais de saúde nessas situações é importante para qualificar a avaliação clínica integrada e pode ser entendido como uma medida preventiva contra potenciais agravos, como os de interação medicamentosa e desfechos pós-cirúrgicos.370
“Há reconhecida relação entre o uso de hormônios (usados por pessoas transfemininas) e a ocorrência de acidente vascular cerebral, flebites, infarto do miocárdio entre outros agravos, resultando em mortes e
sequelas importantes. (...)
A automedicação normalmente realizada com doses elevadas de hormônios masculinizantes é também um agravante no quadro de saúde dessas pessoas”. (Ministério da Saúde – Brasil, 2010)
369 Conselho Federal de Medicina. Resolução no 2.265, de 20 de setembro de 2019. Cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero. Brasília: Diário Oficial da União; 2020 Jan 9: 1(6). 370 . Ministério da saude (BR). Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transsexuais. Brasília: Secr Gestão Estratégica e Particip Dep Apoio à Gestão Particip; 2012: 34. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_lesbicas_gays_bissexuais_travestis.pdf
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313 Pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero que desejam transformações corporais através de hormonização e que não apresentem contraindicações clínicas para tanto, poderão ser acompanhadas na própria UBS caso ela faça parte da Rede SAMPA Trans ou, alternativamente, quando disponível ou quando a equipe de saúde compreenda ser necessário (como, por exemplo, em situações de complexidade clínica), por serviço de especialidade focal que faça parte da Rede SAMPA Trans. Caso opte-se por
atendimento em serviço de especialidade, após a avaliação dos exames iniciais gerais deve- se encaminhar a pessoa para a hormonização através de guia, a ser entregue no setor de
regulação da UBS. O encaminhamento deve ser realizado para a especialidade de Endocrinologia com o código F64.0 da CID-10 (“transtornos da identidade sexual”) – esse código CID é provisório até a aplicação da CID-11 no Brasil, quando passará a ser representado por “Incongruência de Gênero” (ver Saúde mental). A pessoa atendida deverá levar todos os resultados de exames já realizados e avaliados pela UBS, o encaminhamento impresso de referência/contrarreferência e avaliações realizadas no serviço. Ao encaminhar para um serviço de especialidade, é importante oferecer todas as informações relevantes sobre o acompanhamento, realizado na UBS, à profissional especialista que atenderá a pessoa. Recomenda-se que as informações descritas no Quadro 5 sejam relatadas na ficha de referência e contrarreferência:
Quadro 29 – Recomendação de informações a serem descritas na ficha de referência e contrarreferência, utilizada para qualquer tipo de encaminhamento
Informações relevantes ao encaminhar para serviço de especialidade • Características gerais de identificação da pessoa usuária do serviço; • Informações da avaliação psicossocial da pessoa, incluindo diagnósticos de problemas de saúde mental, caso existam, e o planejamento terapêutico; • Tempo de acompanhamento pelo serviço e/ou pela(s) profissional(is) que redige(m) a carta, com informações sobre as abordagens e/ou reavaliações realizadas; • Descrição de doenças diagnosticadas, assim como seu tratamento e quadro clínico atual; • Antecedentes pessoais, antecedentes familiares significativos e demais fatores de risco para adoecimento já identificados; • Exames já realizados; • Tempo de hormonização, caso seja realizada • Para cirurgias de redesignação genital: ver relatório para cirurgias • Coordenação do cuidado pela equipe da APS, que identifica e reúne relatórios de profissionais de outros serviços. • Contato profissional e disponibilidade para discussão do caso. Fonte: Pactuação com serviços da Rede SAMPA Trans
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314 Neste documento são apresentadas as estratégias de hormonização que são seguras para serem utilizadas com finalidade de transformações corporais em pessoas que não apresentem contraindicações. Como algumas transformações corporais são irreversíveis, a pessoa deve ser esclarecida sobre todos os efeitos da hormonização e seu consentimento deve ser especificamente registrado em prontuário ou, preferencialmente, deve ser oferecido Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) a ser discutido e assinado em duas vias - uma a ser anexada ao prontuário e outra entregue à pessoa (ver ‘Anexo 2. TCLE para uso de testosterona’ e ‘Anexo 3. TCLE para uso de estrógeno e antiandrógeno’). O TCLE pode ser entregue à pessoa antes da consulta em que se pretende assiná-lo para iniciar a hormonização, a fim de que ela disponha de tempo para realizar a leitura com tranquilidade e refletir sobre as dúvidas que deseja dialogar com profissionais de saúde. As medidas de exame físico das transformações corporais esperadas, como a escala de estágios de Tanner, demais descrições de forma e tamanho de estruturas, diâmetro de porções do corpo, distribuição de pelos e gordura corporal devem ser oferecidas antes do início da hormonização e periodicamente em consulta, a fim de assegurar acompanhamento clínico objetivo e com atenção da profissional para as expectativas da pessoa, especialmente se houver expectativas não dimensionadas ou inatingíveis. Recomenda-se muito diálogo sobre as crenças sobre os efeitos esperados dos hormônios e sobre a compreensão do seu mecanismo de ação, pois frequentemente pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero utilizam doses elevadas, com aumento de risco de distúrbios cardiovasculares ou hepáticos, porém sem benefícios diretos para o que se deseja. Idealmente, a hormonização é iniciada com doses baixas que são gradualmente aumentadas, embora seja comum ser iniciada com doses médias. A adequação das doses utilizadas pode ser considerada a partir das transformações corporais identificadas ou não identificadas, levando-se em conta o tempo esperado para a ocorrência de cada uma delas (ver ‘Quadro Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos e antiandrógenos’ e ‘Quadro Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos’). O objetivo final é alcançar as transformações corporais desejadas em até 5 anos371 e, depois dessa fase de indução, clinicamente recomenda-se a menor dose possível de hormônios para manter as transformações obtidas.
371 Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf
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315
Travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas
Estrógenos Efeitos esperados: Desenvolvimento das glândulas mamárias e redistribuição de gordura corporal. Em doses elevadas os estrógenos também apresentam efeitos antiandrogênicos. (ver Antiandrógenos e ‘Quadro 7 – Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos e antiandrógenos’) Riscos: tromboembolismo - principalmente associado aos estrógenos sintéticos contidos em pílulas anticoncepcionais de uso oral, como o etinilestradiol – que não deve ser recomendado, e mais acentuadamente quando associado a progestágenos sintéticos – como o acetato de ciproterona, acetato de medroxiprogesterona e noretisterona. Elevação de prolactina, que é dose-dependente. O uso prolongado em altas doses está associado a casos de prolactinoma.372 Contraindicações absolutas: Doença cardiovascular isquêmica instável, câncer estrógeno-dependente, condições psiquiátricas que limitem a habilidade em oferecer consentimento informado e hipersensibilidade aos componentes da formulação. Contraindicações relativas (a serem avaliadas e cuidadas individualmente): Doença cardiovascular isquêmica estável, doença cerebrovascular, antecedente pessoal de TVP ou coagulopatia, hipertrigliceridemia, HAS descompensada, DM descompensada, tabagismo, história de distúrbios de coagulação, síndrome metabólica, migrânea grave, refratária ou focal, distúrbio convulsivo, doenças cardíacas, hiperprolactinemia, história de
372 Hamidi O, Davidge-Pitts CJ. Transfeminine Hormone Therapy. Endocrinol Metab Clin N Am, 2019; 341-355.
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316 hipertensão intracraniana, disfunção hepática, antecedente familiar de câncer de mama, antecedente pessoal ou familiar de porfiria.373 , 374 , 375 , 376 , 377 , 378
Quadro 30 – Estrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas Estrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
17ß Estradiol (ou Estradiol - bioidêntico )
1 a 6 mg ao dia, via oral
4 mg (quando não associado com antiandrógeno) 2 – 4 mg (com uso de antiandrógeno)
Não disponível no SUS
Apesar de documentos de farmacovigilância descreverem dose máxima de 10mg/dia, os efeitos
adversos são dose- dependentes e, até o
momento, não há relatos da necessidade de prescrição acima de 6 mg/dia pelos ambulatórios já existentes no município de São Paulo. Nome comercial: Natifa®, Primogyna®, Cicloprimogyna® (metade da cartela) entre outros.
Valerato de estradiol
1 a 6 mg ao dia, via oral
4 mg (quando não associado com antiandrógeno) 2 – 4 mg (com uso de antiandrógeno)
Disponível em farmácias públicas municipais de referência, definidas pelos territórios,somente para prescritoras previamente autorizadas da rede pública municipal
373 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 374 Care PH. Guidelines and Protocols for Comprehensive Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Heal Ontario [Internet]; 2009: 67. Disponível em: http://sherbourne.on.ca/lgbthealth/guidelines-protocols-for-trans-care/ 375 Bourns A. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients. Raimbow Health Ontario, Sherbourne Health; 2020: 133. 376 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 377 4. Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf 378 Vinogradova Y, et al. Use of hormone replacement therapy and risk of venous thromboembolism: nested case-control studies using the QResearch and CPRD databases. BMJ. 2019; 364: k4810.
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Estrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
Estradiol
hemi- hidratado
em gel (0,6 mg/g) 1 a 2 doses (régua) de 1,5 mg ao dia, uso tópico 2 a 4 doses (pumps) de 0,75 mg ao dia, uso tópico 3 a 6 doses (bomba dosadora) de 0,5mg ao dia, uso tópico
2 doses (régua) 4 doses (pumps)
Não disponível no SUS
Aplicada em coxa, abdome ou região lombar sobre a pele limpa e seca. Aguarda-se secar antes do contato de tecidos ou outros materiais com a pele. O gel é apresentado em tubo de alumínio com uma régua ou uma válvula que libera doses por pressão (pumps). Cada medida da régua do Oestrogel® libera 2,5 g do gel, contendo 1,5 mg de estradiol. A válvula dosadora por pressão libera 1,25 g do gel, o que equivale a 0,75 mg de estradiol hemi-hidratado. Uma medida da régua dosadora equivale a duas pressões (pumps) do tubo com válvula dosadora. Nome comercial: Oestrogel®, Estreva®, Estrell Gel®
17ß- estradiol
em gel (0,5 ou 1 mg/sachê)
0,5 mg a 2 mg ao dia, uso tópico
1 mg Não disponível no
SUS
Aplicada em coxa, abdome ou região lombar sobre a pele limpa e seca. Aguarda-se secar antes do contato de tecidos ou outros materiais com a pele. Nome comercial: Sandrena®
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318
Estrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
Valerato de estradiol injetável (10mg/mL) 10 mg a cada 4, 2 ou 1 semanas, via intramuscu lar
20 mg a cada 4 semanas (quando não associado com antiandrógeno)
Não disponível no SUS
Dificilmente disponível comercialmente de forma isolada, porém é possível obter por manipulação farmacêutica. Era comercializado nos EUA e Europa. Está disponível em associação com enantato de noretisterona (Mesigyna®), porém não é habitualmente recomendado pelo risco cardiovascular do progestágeno sintético em associação com o estrógeno nessa formulação Nome comercial: Indisponível
Enantato de estradiol injetável (10 mg/mL)
10 mg a cada 4 ou 2 semanas, via intramuscu lar
10 mg a cada 2 semanas
Não disponível no SUS
Dificilmente disponível comercialmente de forma isolada, porém é possível obter por manipulação farmacêutica. Disponível e muito comercializado no Brasil e América Latina em associação com progestágeno (acetato de dihidrogesterona ou algestona acetofenida 150 mg)1 Nome comercial: Perlutan®, Pregnolan®, Preg-Less®, Uno-Ciclo® e Dáiva®
Adesivo de estradiol
hemi- hidratado
25, 50 ou 100 mcg duas vezes por semana
50 mcg duas vezes por semana
Não disponível no SUS
Nome comercial: Estradot®
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319
1 A hormonização cruzada com Enantato de estradiol 10 mg + algestona acetonida 150 mg intramuscular parece muito segura e efetiva para feminização e antiandrogenização de mulheres transexuais e travestis. 379 , 380 De acordo com um estudo brasileiro,
82,6% da população das mulheres trans usam a associação de estrógeno com progestágeno. 381 Essa associação de hormônios foi muito usada como anticoncepcional injetável na Europa, entre a década de 70 e anos 2010, mas foi descontinuado por falha contraceptiva em mulheres cisgênero, ainda que fosse clinicamente segura.382
Antiandrógenos Também são conhecidos como “bloqueadores de testosterona”. Efeitos esperados: Diminuição de pilificação e oleosidade da pele, redução de musculatura e força, redução do tamanho dos testículos, diminuição de libido, diminuição de ereções (voluntárias e involuntárias) e diminuição na quantidade e qualidade de espermatozoides produzidos, assim como diminuição do volume ejaculado e dos orgasmos. (ver ‘Quadro Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos e antiandrógenos’) Riscos: Alterações de humor ou depressão, mais frequentemente resultante de uma sensação de diminuição da energia causada pela diminuição de testosterona; tromboembolismo, principalmente quando associado a estrógenos sintéticos contidos em pílulas anticoncepcionais de uso oral (como o etinilestradiol que, como reiterado, não deve ser recomendado) – antiandrógenos de maior risco são: acetato de ciproterona, acetato de medroxiprogesterona e noretisterona;383 prejuízos à massa óssea devido à supressão da
379 Taciana Feibelmann T, Magnus R. Dias da Silva (coordenadores). Informações obtidas de estudo colaborativo em andamento sobre “uso prévio e atual de hormônios por mulheres transexuais e travestis”. Ambulatório do Núcleo TransUnifesp (Universidade Federal de São Paulo) e ambulatório CRAIST (Centro de Referência e Atenção Integrada à Saúde Transespecífica da Universidade Federal de Uberlândia). Publicação ainda não disponível. 2020. 380 Gusmão-Silva JV, Lichtenecker DCK, Ferreira LGA, Gois I, Argeri R, Gomes GN, Dias-da-Silva MR. Body, metabolic and renal changes following cross-sex estrogen/progestogen therapy in a rodent model simolating its use by transwomen. Journal of Endocrinological Investigation. Published online: 11 june 2022. 381 Krüger A, et al. Characteristics of hormone use by travestis and transgender women of the Brazilian Federal District. Revista Brasileira de Epidemiologia, 2019. 382 Coutinho EM, Spinola P, Athayde C, Fernandes Noronha C, Roberto De Melo N, Aparecida Z, et al. Comparison of two regimens of a monthly injectable contraceptive containing dihydroxyprogesterone acetophenide and estradiol enanthate. 2006. 383 Vinogradova Y, et al. Use of hormone replacement therapy and risk of venous thromboembolism: nested case-control studies using the QResearch and CPRD databases. BMJ. 2019; 364: k4810.
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320 biossíntese de andrógeno testicular em longo prazo, assim como a gonadectomia, quando não está associada à reposição com estrógenos.384,385,386,387 Acetato de ciproterona pode gerar hepatotoxicidade se usada em altas doses (acima de 150 mg/dia) ou junto a outras substâncias hepatotóxicas (medicações, abuso de álcool, etc.), embora não haja relatos de casos graves com o uso por pessoas transfemininas saudáveis. Alterações de enzimas hepáticas podem acontecer em cerca de 15% das usuárias que usam doses habituais, que ocorrem entre 3 e 6 meses do início do uso e pode ser transitória. Usada em altas doses e por longos períodos de tempo, a ciproterona é associada com casos de prolactinoma, meningiomas multifocais e câncer hepático.388 Doses baixas (10mg/dia e 25mg/dia) parecem ser igualmente eficazes para reduzir a concentração de testosterona do que doses médias e altas (50mg/dia e 100mg/dia), oferecendo menos efeitos colaterais.389 Espironolactona pode gerar hipercalemia e hipotensão, e seu uso indica monitoramento constante de potássio sérico e sinais de hipotensão.
Observações sobre manejo de antiandrógenos: • Podem ser utilizados ou não junto a um estrógeno, a depender do efeito esperado pela pessoa, porém considerando-se o risco de prejuízo à massa óssea quando administrado isoladamente. • Quando associado a um estrógeno, possibilita atingir os efeitos esperados com a menor dose possível de estrógeno.
384 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 385 Care PH. Guidelines and Protocols for Comprehensive Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Heal Ontario [Internet]; 2009: 67. Disponível em: http://sherbourne.on.ca/lgbthealth/guidelines-protocols-for-trans-care/ 386 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 387 Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf 388 Hamidi O, Davidge-Pitts CJ. Transfeminine Hormone Therapy. Endocrinol Metab Clin N Am, 2019; 341-355 389 Kuijpers SME, Wiepjes CM, Conemans EB, Fisher AD, T’Sjoen G, Heijer M. Toward a Lowest Effective Dose of Cyproterone Acetate in Trans Women: Results From the ENIGI Study. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 2021; 106(10):e3936-e3945. Disponível em: https://academic.oup.com/jcem/article/106/10/e3936/6298578
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321 • O diurético espironolactona tem efeitos antiandrogênicos e também causa ginecomastia, podendo ser utilizado como monoterapia ou associado ao estrógeno. • Após gonadectomia, os antiandrógenos não são mais necessários. • A perda de libido e de função erétil pode ser desejada pela pessoa mas, nos casos em que ela gera desconforto e piora da qualidade de vida, pode-se considerar, a depender dos objetivos individuais: utilizar sildenafila ou tadalafila, dosar os níveis de testosterona para considerar intervenções ou mesmo reduzir a dose de antiandrógenos.390 Quadro 31 – Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos e antiandrógenos
Efeito Início esperado1 Máximo efeito esperado1 Redistribuição da gordura corporal 3 – 6 meses 2 – 5 anos Diminuição da massa muscular/força 3 – 6 meses 1 – 2 anos2 Suavização da pele/diminuição da oleosidade
3 – 6 meses desconhecido Diminuição da libido 1 – 3 meses 1 – 2 anos Diminuição de ereções espontâneas 1 – 3 meses 3 – 6 meses Crescimento mamário (definitivo) 3 – 6 meses 2 – 3 anos Diminuição do volume testicular 3 – 6 meses 2 – 3 anos Diminuição da produção de esperma/fertilidade (pode ser definitivo)
variável variável
Perda e crescimento desacelerado de pelos corporais e faciais
6 – 12 meses > 3 anos3
Diminuição da calvície androgênica Sem rebote, perda se detém em 1 a 3 meses
1 – 2 anos
Fonte: Adaptado de World Professional Association for Transgender Health. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7a versão. 1 As estimativas representam observações clínicas publicadas e não publicadas. 2 Dependem significativamente da quantidade de exercício. 3 Altamente dependente da idade e hereditariedade; pode ser mínimo.
390 . Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines
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322 Figura 12 – Transformações corporais resultantes do uso de estrógeno e anti-andrógeno por pessoas transfemininas
Fonte: Bourns A. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients - A quick reference guide for primary care providers (PCPs). Rainbow Health Ontario Quadro 32 – Antiandrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas Antiandrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
Espironolactona (comprimido de 25 ou 100 mg)
50 a 200 mg ao dia, via oral
100 mg ao dia Disponível em farmácias públicas municipais da rede básica e de especialidades
Necessário acompanhar a calemia e tolerância à hipotensão Pela possibilidade de ginecomastia como efeito colateral, pode ser considerado como monoterapia inicial (sem associação com estrógeno).
Acetato de Ciproterona (comprimido de 50 mg)
10 a 100 mg ao dia, via oral
25 mg ao dia Disponível em farmácias públicas municipais de referência, definidas pelos territórios, somente para prescritoras previamente autorizadas da rede pública municipal
Não recomendado para tabagistas ou com antecedente de tromboembolismo.
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Antiandrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
Acetato de Medroxiprogestero na (comprimido de 10 mg)
2,5 a 10 mg ao dia, via oral
10 mg ao dia Disponível em farmácias públicas municipais da rede básica e de especialidades
É um progestágeno com mecanismo de ação central (hipotálamo-hipofisária), suprime o LH com diminuição da produção de testosterona. No entanto, pode gerar efeitos androgênicos periféricos indesejáveis (aumento de pelos) em algumas mulheres trans, travestis e pessoas transfemininas. Mulheres trans relatam melhora do volume mamário ao uso. O uso isolado de progestágeno ainda é controverso. O risco (teórico) de câncer mamário não foi comprovado em pesquisas.
Dihidrogesterona 10 mg ao dia, via oral
10 mg ao dia Não disponível no SUS
É um progestágeno com mecanismo de ação central (hipotálamo-hipofisária), que suprime o LH com diminuição da produção de testosterona. Não tem ação androgênica periférica como o acetato de ciproterona. É uma alternativa de progestina oral com menor risco de trombogenicidade. Não tem indicação para mulheres transque foram gonadectomizadas. Disponível comercialmente como Duphaston®
Dienogeste 2 mg ao dia, via oral 2 mg ao dia Não disponível no SUS
É um progestágeno com mecanismo de ação dupla: central e periférica. Como é um progestágeno, atua suprimindo o LH e consequentemente diminuição da produção de testosterona. Perifericamente, bloqueia o receptor do andrógeno, porém menos potente que o progestógeno ciproterona. Mais seguro que os demais progestágenos em relação ao risco de tromboembolismo. Disponível comercialmente como Allurene®
Dienogeste associado a Valerato de Estradiol (cartela com 28 comprimidos)
2 mg (5 dias) e 3 mg (17 dias) ao dia, via oral
2 ou 3 mg ao dia (associa ção com Valerato de Estradiol 3/2/1 mg) Não disponível no SUS
Progestágeno associado ao estrógeno, em doses escalonadas ao longo dos 28 dias de uso de cada cartela. Tem os mesmos benefícios do Dienogeste (descritos acima) porém durante 6 dias (de cada 28 pílulas ativas) não é administrado o antiandrógeno. Tem menor efeito antiandrogênico que a ciproterona. Disponível comercialmente como Qlaira®
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Antiandrógeno Posologia Dose habitual Disponibilidade no SUS
Observações
Acetato de dihidrogesterona ou Algestona acetofenida (150mg/mL)
150 mg (1 ampola com 1mL) a cada 30 ou 15 dias. via intramuscul ar
150 mg a cada 30 dias Não disponível no SUS
Somente comercializada em associação com enantato de estradiol, facilmente acessível. (ver ‘Quadro 6 – Estrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas’) Como é uma progestina, atua suprimindo o LH e consequentemente diminuição da produção endógena de testosterona. Contraindicada nas mulheres trans que foram gonadectomizadas por ocasião da cirurgia de redesignação genital feminina.
Finasterida 5 mg ao dia, via oral 5 mg ao dia Não disponível no SUS
Inibidor da 5a-redutase, enzima que converte testosterona no mais potente andrógeno endógeno, dihidrotestosterona (DHT). Não recomendada atualmente devido aos efeitos colaterais em longo prazo, mas seu uso pode ser considerado em casos especiais, quando há contraindicação de progestágenos ou no caso em que não haja acesso à depilação definitiva (por oferecer bons resultados na diminuição da pilificação).
Agonistas GnRH Leuprorrelin a 3,75 a 7,5mg a cada 30 dias, via intramuscul ar ou subcutânea Histerelina: implante de 50 mg anualmente Varia (mensal ou anual) Não disponível para Atenção Básica.
Tem ação central (hipotálamo-hipofisária) suprimindo o FSH e LH com diminuição da produção de testosterona. Para uso contínuo em pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero adultas, recomenda-se sempre o uso com estrógenos para proteção óssea. Para uso temporário em adolescentes trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero quando entram em puberdade (a partir do estágio de Tanner 2). Podem ser utilizados de forma isolada durante 2 a 4 anos. (ver hormonização de crianças e adolescentes) Histerelina não está disponível no Brasil.
Acompanhamento de hormonização com estrógenos e antiandrógenos Abordagem integral: oferecer espaço para que a pessoa compartilhe suas percepções em relação ao corpo, suas crenças quanto ao uso dos hormônios, sua vivência na comunidade e seus sentimentos.
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325 Investigações: alterações de humor podem ocorrer também por causa da alteração dos níveis de testosterona/estradiol. Algumas informações oferecidas pela pessoa também contribuem para a compreensão dos efeitos dos hormônios, como presença de ereções voluntárias e involuntárias, mudanças na libido, mudanças no orgasmo e/ou na ejaculação e desconfortos genitais. Exame físico: Recomenda-se oferecer a cada consulta: aferição de peso, investigação de áreas com presença de acne ou xerose (ressecamento da pele ou membranas mucosas), distribuição e espessura de pilificação, presença de alopecia e área acometida, musculatura visível e distribuição de gordura corporal, circunferência de tórax/abdome/quadril/coxa, descarga mamária, tamanho de glândulas mamárias e estágio puberal (Tanner), volume/tamanho testicular. Em caso de aplicação prévia de silicone industrial, observar e registrar localização, presença de lesões ou edema. Exames laboratoriais: Habitualmente realiza-se uma medida basal antes do início da hormonização e, então, periodicamente (‘Quadro Exames complementares para travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas em hormonização’). Cabe lembrar que os níveis hormonais não devem servir como únicos parâmetros para aumento de doses administradas (ver ‘Quadro Efeitos e tempo esperado das transformações corporais ao uso de estrógenos e antiandrógenos’) e seus valores devem ser flexibilizados levando-se em conta o tempo de hormonização, se está sendo realizada reposição hormonal após gonadectomia e a idade da pessoa.391 Considerações sobre exames hormonais como parâmetro para a hormonização: Neste documento, utilizamos como uma das referências as recomendações veiculadas pelo Guideline da Endocrine Society, que tem como princípio a reposição hormonal, largamente adotada para pessoas com hipogonadismo, ou seja, para aquelas que sofrem de insuficiência de produção de hormônios sexuais (estrógenos e andrógenos). Essas recomendações não se vinculam da mesma forma ao cuidado das pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero, uma vez que não se trata de insuficiência hormonal e, sim, de hormonização cruzada: portanto adota-se estratégia de suplementação hormonal. Nessa situação, a hormonização deve levar em consideração se houve ou não gonadectomia: após esse procedimento deve-se seguir o Guideline como alvo terapêutico e, caso contrário, a dose mais efetiva de hormônios para transformação corporal deve ser otimizada a cada caso, considerando-se a dose de início e de manutenção.392 391 . Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 392 Silva MRD. Foundations in Hormonal Treatment. In Global Education Initiative (GEI). Palestra no 25th WPATH Symposium. Buenos Aires. Novembro 2018
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326 Quadro 33 – Exames complementares para travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas em hormonização Exame Antes do início 1o mês (considerar)
3o mês (considerar)
6o mês Anualmente Rastreamentos ofertados
Hemograma (considerar)
X X X X
Glicemia (considerar)
X X
Colesterol total e frações (considerar)
X X
Potássio (K+ ) 1 (considerar)
X X X X X TGO / TGP X X X Testosterona total2 X X (considerar) X (considerar) X (considerar)
Estradiol3 X X (considerar) X (considerar) X (considerar)
Prolactina4 X X (considerar) X (considerar)
Hormônio luteinizante (LH) 5 (considerar)
X X
Hepatites A, B e C X
HIV e Sífilis X Mamografia X
1 Potássio: dosar rotineiramente se estiver em uso de espironolactona como antiandrógeno. 2 Alvo de testosterona total: inferior a 50 ng/dL. 3 Alvo de estradiol: não deve exceder o pico fisiológico (200 pg/mL). 4 Justifica-se por um baixo risco de prolactinoma ao uso de estrógenos, considerando que seus sintomas se confundem aos efeitos esperados da hormonização (hipogonadismo, ginecomastia, alteração da pilificação etc.). Recomenda-se dosar prolactina antes de iniciar a hormonização, após estabilização da dose e se houver sintomas (galactorréia, turgecência mamária dolorosa etc). 5 Serve como marcador de níveis adequados de hormônios esteróides para a manutenção da densidade óssea em caso de realização prévia de gonadectomia e, potencialmente, em casos de hipogonadismo por uso de antiandrógeno com baixa dose de estradiol utilizada.
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327
Homens trans e pessoas transmasculinas
Testosterona Todos os andrógenos utilizados são formulações de testosterona. Efeitos esperados: Crescimento de pelo facial e corporal, crescimento de cartilagem tireoide, voz mais grave, aumento da força e da massa muscular, redistribuição de gordura corporal, cessação da menstruação, diminuição da fertilidade por anovulação (embora seja comum manter ovulações), alteração da libido (aumenta, na maioria dos casos), hipertrofia do clitóris, atrofia vaginal, alopecia androgênica, aumento da oleosidade da pele, acne, aumento da sensação de energia. (ver ‘Quadro 10 – Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos’) Observações sobre efeitos da testosterona nas questões ginecológicas:
• Dores pélvicas não podem ser negligenciadas e devem ser avaliadas considerando- se diagnósticos diferenciais (como dismenorreia, endometriose, adenomiose, doença
inflamatória pélvica, massas anexiais, aderências pós-cirúrgicas e gestação ectópica, além de problemas musculares, urológicos e gastrointestinais), mesmo que cerca de 70% de pessoas transmasculinas em hormonização relatem dor pélvica;393 • Sangramentos uterinos após os 6 primeiros meses de uso de testosterona devem ser
investigados como anormais (utilizando-se, por exemplo, a classificação FIGO PALM- COEIN);
• Doses de testosterona suprafisiológicas convertem-se em estrógeno através da aromatase, podendo gerar sinais estrogênicos como: proliferação do endométrio com ou sem sangramentos uterinos, aumento da secreção vaginal fisiológica e ingurgitamento das glândulas mamárias. Os níveis fisiológicos de testosterona devem ser observados individualmente, pois a aromatização acontece mesmo quando as aferições séricas se encontram dentro dos parâmetros laboratoriais considerados comuns para homens cisgênero. • Vaginite atrófica por privação estrogênica pode gerar desconfortos como os
observados na menopausa (por exemplo, dispareunia e sangramento pós- penetração) e pode ser cuidada com lubrificação ou estrógenos vaginais (com baixa
absorção sistêmica);394
393 Sav Zwickl et al. Pelvic Pain in Transgender People Using Testosterone Therapy. 2023 394 Dendrinos ML, Budrys NM, Sangha R. Addressing the Needs of Transgender Patients: How Gynecologists Can Partner in Their Care. Obstetrical and Gynecological Survey. 2019; 74(1): 33-39.
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328 • Corrimento por vaginite inflamatória descamativa foi descrito com boa resposta ao manejo habitual, porém corrimentos não fisiológicos devem ser investigados considerando-se inclusive IST;395 • Hipersensibilidade e desconforto aos estímulos clitorianos, até então habituais, podem ser devidos ao aumento da glande do clitóris;396 • Cuidados específicos no exame ginecológico, assim como preparo do serviço para que homens trans e pessoas transmasculinas não sejam inseridos em ambientes e fluxos direcionados somente a mulheres, podem trazer conforto, aumentar a confiança no serviço e fortalecer o vínculo da profissional com a pessoa atendida.397 (ver Considerações sobre o exame ginecológico) Riscos: Alterações emocionais e no comportamento social podem ocorrer e ser diferente para cada pessoa, não devendo ser estigmatizadas – podem representar um aspecto positivo (com sensação de ganho de energia) ou negativo (com sintomas de irritabilidade e ansiedade, por exemplo). Apesar de poder alterar o perfil lipídico, com aumento de LDL e diminuição de HDL, o uso de testosterona não demonstrou aumento na incidência de eventos cardiovasculares. A hepatotoxicidade de formulações sintéticas de testosterona por via oral não se reproduz nas formulações bioidênticas recomendadas no ‘Quadro Andrógenos utilizados na hormonização para homens trans e pessoas transmasculinas’. 398,399 Contraindicações absolutas: Hipersensibilidade aos componentes da formulação, gravidez ou amamentação (pelo risco de androgenização fetal, experimentado em cobaias animais), doença cardiovascular isquêmica instável, câncer sensível à testosterona conhecido em atividade, câncer de endométrio conhecido em atividade, psicose mal controlada, irritabilidade extrema com ideação homicida, condições psiquiátricas não estabilizadas e que limitem a habilidade em oferecer consentimento informado. Contraindicações relativas (a serem avaliadas e cuidadas individualmente): Doença cardiovascular isquêmica estável, HAS descompensada, DM descompensada, 395 Nambiar K, Williams D, Woodroffe T, Parnell A, Richardson D. Case series: Managing desquamative inflammatory vaginitis in trans-men. Sexually Transmitted Infections. 2015; 91(1): 12. 396 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 397 Stroumsa S, Wu JP. Welcoming transgender and nonbinary patients: expanding the language of “women ́s health”. American Journal of Obstetrics & Gynecology. 2018 December: 585-588. 398 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 399 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines
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329 dislipidemia descompensada, disfunção hepática, policitemia, histórico de TVP ou coagulopatia, doença respiratória crônica que pode ser agravada por eritrocitose ou policitemia, apneia do sono severa/descompensada, epilepsia sensível a andrógenos, tabagismo, migrânea, sangramento intermenstrual, oligomenorreia ou amenorreia.400,401,402,403
Quadro 34 – Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos Efeito Início esperado1
Máximo efeito esperado1 Oleosidade da pele/acne 1 – 6 meses 1 – 2 anos Aumento de pelos faciais e corporais (pode ser definitivo)
3 – 6 meses 3 – 5 anos Alopecia androgênica (definitiva) > 12 meses 2 variável Aumento da massa muscular/força 6 – 12 meses
2 – 5 anos 3 Redistribuição da gordura corporal 3 – 6 meses 2 – 5 anos Cessação da menstruação e diminuição da fertilidade 2 – 6 meses n/a Aumento do clitóris (definitivo) 3 – 6 meses 1 – 2 anos Atrofia vaginal 3 – 6 meses 1 – 2 anos Engrossamento da voz e crescimento da cartilagem tireoide (definitivo)
3 – 12 meses
1 – 2 anos
Fonte: Adaptado de World Professional Association for Transgender Health. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7a versão. 1 As estimativas representam observações clínicas publicadas e não publicadas. 2 Altamente dependente da idade e hereditariedade; pode ser mínimo. 3 Dependem significativamente da quantidade de exercício.
400 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 401 Care PH. Guidelines and Protocols for Comprehensive Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Heal Ontario [Internet]; 2009: 67. Disponível em: http://sherbourne.on.ca/lgbthealth/guidelines-protocols-for-trans-care/ 402 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 403 Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf
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330 Figura 13 – Transformações corporais resultantes do uso de testosterona por pessoas transmasculinas
Fonte: Bourns A. Guidelines for gender-affirming primary care with trans and non-binary patients - A quick reference guide for primary care providers (PCPs). Rainbow Health Ontario Introdução de andrógenos: Construção de plano compartilhado sobre dose e
formulação mais adequadas para a necessidade percebida pela pessoa. Idealmente busca- se utilizar doses mínimas e aumentar se necessário (caso não se atinjam efeitos esperados).
O planejamento quanto ao tipo de hormônio utilizado e sua dose deve ser realizado junto à pessoa. Pessoas que possuem insegurança quanto aos efeitos emocionais da hormonização
podem ser beneficiadas de doses baixas ou de substâncias que possuam tempo de meia- vida mais curto (por exemplo: cipionato de testosterona injetável ou gel de testosterona tópico,
ao invés de undecilato de testosterona, ou estradiol oral ao invés de injetável).
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331 Quadro 35 – Andrógenos utilizados na hormonização para homens trans e pessoas transmasculinas Formulação de TestosteronaA
Posologia Dose habitual
Disponibilida de no SUS
Observações
Undecanoato / Undecilato de Testosterona (250 mg/mL)
500mg a 1000 mg (meia ampola ou uma ampola de 4 mL) a cada 120 a 90 dias, via intramuscul ar
1000 mg (1 ampola) a cada 90 diasB
Disponível em farmácias públicas municipais de referência, definidas pelos territórios, somente para prescritoras previamente autorizadas da rede pública municipal
É hormônio de depósito quando aplicado adequadamente e, por manter nível sérico relativamente estável, gera poucas oscilações de humor. Pode não ser boa estratégia inicial para pessoas que temam ou não possam ter efeitos duradouros da testosterona, pois uma aplicação dura pelo menos 3 meses Excipiente oleoso: óleo de rícino Disponível comercialmente como Nebido® e Hormus®.
Cipionato de testosterona (100 mg/mL)
200 mg (1 ampola de 2 mL) a cada 28 a 14 dias, via intramuscul ar
200 mg (1 ampola) a cada 14 ou 21 diasC Não disponível no SUS
A aplicação garante pouco depósito e tende a oferecer picos séricos, os quais têm queda rápida. Portanto, pode gerar rápidas alterações de humor e de efeitos corporais, embora possa ser mais adequado para pessoas que queiram uma aplicação de curta duração. Excipiente oleoso: óleo de amendoim Disponível comercialmente como Deposteron®
Decanoato + Fempropionato + Propionato + Isocaproato de testosterona (250 mg/mL)
250 mg (1 ampola de 1 mL) a cada 28 a 14 dias, via intramuscul ar
250 mg (1 ampola) a cada 21 diasC
Não disponível no SUS
Excipiente oleoso: óleo de amendoim Tende a gerar pico hormonal, assim como o cipionato de testosterona. Não há estudos de qualidade sobre a segurança de seu uso, por isso é menos recomendada embora seja amplamente utilizada com obtenção de transformações corporais semelhante ao cipionato de testosterona. Disponível comercialmente como Durateston®
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332
Formulação de TestosteronaA
Posologia Dose habitual
Disponibilida de no SUS
Observações
Testosterona em gel (a 1% ou 5%)
25 a 100 mg (2,5 g a 10 g = metade a dois sachês de 5g da formulação a 1%) ao dia, via tópica
50 mg (1 sachê de 5 g da formulação a 1%) ao dia
Não disponível no SUS
Aplicação em abdome ou braços sobre a pele limpa e seca. Aguarda-se secar antes da pele ter contato com pessoas, tecidos ou outros materiais. Gera níveis séricos mais estáveis quando a aplicação é regular.
A Formulações orais não são recomendadas devido à sua maior metabolização hepática. B Pode ser realizada “dose de ataque” inicial, encurtando o primeiro intervalo entre as doses (45 dias) e depois estabelecendo o intervalo de 90 dias, com a intenção de que o pico do nível sérico seja atingido mais precocemente e de que assim os efeitos esperados ocorram mais rapidamente no início da hormonização, dado que o aumento de nível sérico pode ser cumulativo nas primeiras dosagens. Nessas situações, deve-se considerar os riscos junto à pessoa atendida, além de atentar para transformações corporais e de estado de humor ainda mais rápidas e intensas do que as obtidas com a dosagem habitual e que podem ser indesejadas. É importante considerar que os efeitos não são obtidos somente com o nível sérico máximo de testosterona, portanto doses de ataque podem resultar em efeitos colaterais sem, no entanto, oferecer ganhos reais. O aumento da periodicidade de aplicação de testosterona intramuscular não oferece aumento da velocidade das transformações corporais após os primeiros 6 meses de uso da testosterona.404 C Pessoas que demonstram sinais de aromatização (conversão de testosterona em estradiol) podem receber metade da dose com o dobro da frequência habituais, em esquema de fracionamento de sua dose, com a intenção de gerar níveis séricos mais baixos porém mais estáveis, evitando-se assim ultrapassar o pico fisiológico individual. Por ex.: meia ampola de cipionato de testosterona IM a cada 7 dias (para uma pessoa que usa uma ampola a cada 14 dias), ou 250mg (1ml) de undecilato de testosterona IM a cada 45 dias (para uma pessoa que usa 500mg, ou 2ml, a cada 90 dias). Receita A testosterona é considerada uma substância anabolizante pela Resolução RDC no 98/2000 e, por esse motivo, de acordo com a Lei no 9.965/2000 e a Portaria MS no 344/1998, deve ser adquirida sob controle e sua prescrição está sujeita a normas especiais. (ver Dispensação de andrógeno) Portanto é necessário que a receita de testosterona (ver dispensação de medicamentos: testosterona): • seja formulada em duas vias, • contenha endereço da pessoa usuária, • descreva o código CID (pela CID-10: F 64.0; a partir da utilização da CID-11: capítulo 17, o código será HA60), • contenha o CPF da médica prescritora,
404 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5182227/
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333 • não exceda a quantidade de cinco (05) ampolas, ou a equivalente a 60 dias de hormonização. A impossibilidade de comprar legalmente testosterona sem uma receita médica faz com que muitas pessoas transmasculinas que realizam automedicação adquiram produtos de qualidade não garantida ou anabolizantes de uso veterinário, aplicados sem técnicas seguras e muitas vezes em posologia inadequada.
Aplicação A testosterona injetável deve ser aplicada via intramuscular. As formulações utilizadas para depósito intramuscular de liberação lenta (undecilato e undecanoato de testosterona) não mantém nível sérico estável caso a aplicação seja inadequada, pois sem o depósito intramuscular ocorre pico sérico breve (com probabilidade de aromatização) seguido de longo período de baixo nível sérico, o que gera muitos efeitos indesejados obtendo-se pouco das transformações corporais esperadas. Frequentemente observam-se essas situações quando a técnica de aplicação é inadequada (por exemplo, ao injetar sobre uma prega de pele e gordura pinçadas) ou quando são utilizadas agulhas de comprimento insuficiente para alcançar o tecido muscular durante a aplicação (por exemplo, em pessoas obesas ou com tecido subcutâneo local espesso). Nesses casos, recomenda-se atentar para a técnica de aplicação, utilizar agulha mais comprida ou mudar a localização da aplicação intramuscular (ver técnica de enfermagem)
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334 Exames laboratoriais: Habitualmente realiza-se uma medida basal antes do início da hormonização e, então, periodicamente (‘Quadro Exames complementares para travestis, mulheres trans e pessoas transfemininas em hormonização’). Cabe lembrar que os níveis hormonais não devem servir como únicos parâmetros para aumento de doses administradas (ver Quadro Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos) e seus valores devem ser flexibilizados levando-se em conta o tempo de hormonização, se está sendo realizada reposição hormonal após gonadectomia e a idade da pessoa.405 Exames complementares Exames laboratoriais para seguimento de hormonização: Habitualmente, realiza-se uma medida basal antes do início da hormonização e, então, periodicamente (‘Quadro Exames complementares para homens trans e pessoas transmasculinas em hormonização’). Cabe lembrar que os níveis séricos de testosterona não devem servir como únicos parâmetros para aumento de doses administradas e podem nem ser utilizados (ver 'Quadro Efeitos e tempo esperado dos efeitos ao uso de andrógenos’). Os valores de testosterona devem ser flexibilizados levando-se em conta: o tempo de hormonização, se foi realizada gonadectomia e a idade da pessoa.
Doses suprafisiológicas de testosterona são aromatizadas pelos tecidos e convertem- se em estrógenos, gerando características corporais indesejadas (ginecomastia, acne,
edema etc.). Pessoas obesas e que consomem grandes quantidades de álcool são mais propensas a aromatizações. Embora inibidores da aromatase pareçam uma possibilidade lógica, eles não precisam ser utilizados nesses casos, pois o equilíbrio é buscado simplesmente na adequação da posologia de testosterona (com diminuição da dose e da periodicidade). Níveis suprafisiológicos não são benéficos para o desenvolvimento de características corporais e aumentam o risco cardiovascular. A testosterona pode gerar um incremento de 7 a 10% no hematócrito406 e causar policitemia (também chamada de eritrocitose), que se caracteriza por hematócrito superior a 50% (em pessoas com baixos níveis de testosterona) ou 54% (em pessoas sob efeito de testosterona). É observada em 11% de homens trans em hormonização e é mais frequentemente observada ao uso de fórmulas de longa duração (como undecanoato/undecilato intramuscular) e no primeiro ano de uso da testosterona, embora o 405 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 406 Bachman E et. al. Testosterone induces erythrocytosis via increased erytthropoietin and supressed hepcidin: evidence for a new erythropoietin/hemoglobin set point. J Gerontol A Biol Sci Med Sci 2014 June;69(6):725-735
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335 consumo de tabaco, o IMC aumentado e as condições pulmonares relacionadas a eritrocitose ou a policitemia vera também sejam fatores associados ao aumento da sua frequência.407 Ao identificar-se hematócrito acima de 50%, deve-se considerar reduzir a dose de testosterona aplicada/utilizada, aumentar o intervalo entre as doses ou suspender a testosterona temporariamente.408 , 409 , 410 , 411 A realização de flebotomia terapêutica (também chamada de sangria) deve ser considerada somente em casos de insucesso de redução de hematócrito acima de 54% com as estratégias conservadoras, principalmente se a pessoa tiver risco aumentado de trombose (hipertensão, diabetes, eventos cardiovasculares prévios, etc).412 Não há boas evidências científicas sobre a realização de flebotomia para homens trans sob uso de testosterona, mas protocolos de manejo de policitemia recomendam flebotomia para pessoas com hipóxia por doença pulmonar que tenham hematócrito acima de 56% ou 58%, com objetivo de reduzir o hematócrito para 50% ou 52% (Grau de recomendação B, nível de evidência III).413 No Brasil, pessoas que usam testosterona não podem doar sangue,414 motivo pelo qual o sangue retirado de pessoas em uso de testosterona no processo de sangria é necessariamente descartado. No município de São Paulo, o encaminhamento para a realização de sangria em transmasculinas que estejam em uso de testosterona é realizado pelas unidades da Rede SAMPA Trans. Caso a pessoa apresente aumento de hematócrito ou sinais de estrogenismo (menstruação, turgecência mamária, etc.) deve-se dosar nível sérico de testosterona e de
407 Madsen MC et. a. Erythrocytosis in a large cohort of trans men using testosterone: a long-term follow-up stydy on prevalence, determinants, and exposure years. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 2021, Vol. 106, no 6, 1710-1717 408 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 409 Care PH. Guidelines and Protocols for Comprehensive Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Heal Ontario [Internet]; 2009: 67. Disponível em: http://sherbourne.on.ca/lgbthealth/guidelines-protocols-for-trans-care/ 410 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 411 Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf
412 Buren NLV, Hove AJ, French TA, Gorlin JB. Therapeutic phlebotomy for testosterone- induced polycythemia - a blood center’s perspective. Am J. Clin Pathol 2020; 154:33-37
413 McMullin MF et. al. Guidelines for the diagnosis, investigation and management of polycythaemia/erythrocytosis. British Journal of Haematology. 2005. 130, 174-195 414 Brasil, Ministério da Saúde. Portaria de consolidação no 5. Diário Oficial da União, 03/10/17, no190 - seção 1, suplemento - p.320. Disponível em: http://www.prosangue.sp.gov.br/uploads/arquivos/Portaria%20de%20Consolidacao%20n5%20de%20 03_10_2017.pdf
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336 estradiol, para verificar se a testosterona se encontra em níveis suprafisiológicos (acima dos níveis esperados, se comparados aos valores de referência laboratoriais e/ou aos valores individuais dosados antes e durante a hormonização) e que a quantidade excedente de testosterona esteja sendo aromatizada em estradiol. Essas dosagens séricas devem ser comparadas com dosagens anteriores à hormonização realizada na pessoa, para se concluir sobre a ocorrência ou não de níveis suprafisiológicos ou aromatização da testosterona. Demais exames complementares não devem ser realizados como rastreamento ou rotina de avaliação, portanto só devem ser solicitados como parte de investigação clínica e a partir de hipóteses diagnósticas, como as exemplificadas:415 , 416 , 417 , 418
• Ultrassonografia mamária (suspeita de neoplasia ou de ruptura de implante mamário); • Ultrassonografia pélvica (suspeita de alteração anatômica, miomatose, síndrome do ovário policístico, neoplasia endometrial ou ovariana); • Ultrassonografia de abdome superior (suspeita de lesão hepática ou litíase biliar); • Ultrassonografia de próstata (hiperplasia prostática, sintomas de prostatismo); • PSA ou toque prostático – retal ou através de (neo)vagina (sintomas de prostatismo); • Coagulograma, Proteína C ativada e Proteína S (suspeita de trombofilia, antecedentes pessoais ou familiares de tromboses atípicas); • Densitometria óssea (suspeita de alterações patológicas da densidade mineral óssea, fratura por fragilidade, uso de glicocorticoide, hipogonadismo sem reposição hormonal por longo período); • Ressonância magnética de implantes mamários (suspeita de ruptura de implante mamário à ultrassonografia deve ser encaminhada ao serviço de referência).
415 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903. 416 Care PH. Guidelines and Protocols for Comprehensive Primary Health Care for Trans Clients. Rainbow Heal Ontario [Internet]; 2009: 67. Disponível em: http://sherbourne.on.ca/lgbthealth/guidelines-protocols-for-trans-care/ 417 Deutsch MB, editor. Guidelines for the Primary and Gender-Affirming Care of Transgender and Gender Nonbinary People. 2a ed. San Francisco: Center of Excellence for Transgender Health - Department of Family & Community Medicine University of California; 2016. Disponível em: https://transcare.ucsf.edu/guidelines 418 Coleman E, et al. Normas de atenção. à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. [Internet]. World Professional Association for Transgender Health – WPATH. 2012: 125. Disponível em: https://www.wpath.org/media/cms/Documents/SOC%20v7/SOC%20V7_Portuguese.pdf
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337 Quadro 36 – Exames complementares para homens trans e pessoas transmasculinas em hormonização Exame Antes do início
1o mês (considerar) 3o mês (considerar) 6o mês Anualmente Rastreamentos ofertados
Hemograma1 X X X Glicemia / HbA1C (considerar) X X Colesterol total e frações (considerar) X X TGO / TGP X X X X Testosterona total2 (considerar) X X X X Estradiol (considerar) X X Hepatites B e C X HIV e Sífilis X Papanicolau3 X Mamografia4 X Beta-HCG (considerar)5 X X Hormônio luteinizante (LH) (caso tenha sido realizada gonadectomia)
X X
1 O valor de referência é o mesmo que o esperado para homens cisgênero, se a pessoa estiver em amenorreia, ou o mesmo esperado para mulheres cisgênero, se houver menstruações regulares. O hematócrito não deve ser maior que 50%. 2 A período da coleta de testosterona deve ser observado, como descrito no Quadro 13. 3 O rastreamento de câncer de colo uterino é indicado a pessoas com colo uterino, com mais de 25 anos de idade e se tiver vivenciado qualquer tipo de penetração vaginal na vida. (ver Rastreamentos) 4 Considerar mamografia se a pessoa não tiver tecido glandular mamário desenvolvido e se não tiver realizado mamoplastia com mastectomia total bilateral. 5 Considerar realizar Beta-HCG, de acordo com práticas sexuais. O objetivo da hormonização é obter e manter de transformações corporais específicas e que possam ser alcançadas com o hormônio ou bloqueio hormonal em uso. Pessoas transmasculinas em uso de testosterona obtém transformações corporais e efeitos na sensação de energia sem que a dose plena seja utilizada, portanto profissionais de saúde devem se comunicar com pessoas usuárias de saúde para que tomem decisões conscientes e agir em função de utilizar a menor dose de hormônio ou de antiandrogênico possível para que a pessoa desenvolva as características almejadas. Portanto, a meta final da hormonização não pode ser atingir um determinado nível sérico de hormônios, embora a
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338 dosagem do nível sérico hormonal possa ser um instrumento para avaliar situações que gerem dúvidas, como: ausência de transformações corporais ou regressão de características corporais já adquiridas (que podem ser devido a rápida metabolização, má aplicação ou baixa dosagem para a pessoa), aumento de hematócrito (que pode ser consequência de nível sérico de testosterona elevado com consequente aromatização e aumento de estradiol), sinais de estrogenismo (que podem ocorrrer por estímulo ovariano ou por aromatização da testosterona) etc. Como já mencionado, não é necessário aferir os níveis de testosterona e estradiol periodiamente em pessoas transmasculinas que estejam obtendo transformações corporais conforme esperado (ver tabela de transformações corporais e tempos) e que não apresentem sinais que gerem alerta em profissionais de saúde.419 Mas, caso decida-se monitorar o nível sérico de testosterona almejando-se atingir dose máxima por qualquer motivo, a dosagem é recomendada nos momentos descritos a seguir:
Quadro 37 – Acompanhamento laboratorial de testosterona em homens trans e pessoas transmasculinas em hormonização, se o nível sérico máximo for desejado Testosterona utilizada Quando dosar
Valor esperado de testosterona total ao uso de doses plenas*
Undecanoato de testosterona (e formulações que estabilizam nível sérico)
Imediatamente antes da próxima dose, ou na metade do tempo entre duas doses
> 400 ng/dL
Cipionato de testosterona (e formulações que geram picos séricos)
Na metade do tempo entre duas doses
400 – 700 ng/dL
Testosterona transdérmica Após pelo menos uma semana de uso e 2 horas após a aplicação diária
400 – 700 ng/dL
Fonte: Adaptado de Hembree WC et. al. Endocrine Treatment of Gender-Dysphoric/ Gender-Incongruent Persons: An Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab, November 2017, 102(11):1–35.420 *Os valores séricos esperados devem ser individualizados de acordo com nível basal individual (aferido antes do início da hormonização) e considerando que aromatizações podem ocorrer mesmo com valores inferiores a 400ng/dL de testosterona total.
419 Sherboure, Toronto. 420 Hembree WC, Cohen-Kettenis PT, Gooren L, Hannema SE, Meyer WJ, Murad MH, et al. Endocrine treatment of gender-dysphoric/ gender-incongruent persons: An endocrine society clinical practice guideline. J Clin Endocrinol Metab. 2017; 102(11): 3869–903
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Acompanhamento das transformações corporais
Em cada consulta, deve-se oferecer realizar medidas corporais das partes do corpo que podem mudar com o uso da hormonização, principalmente na consulta anterior ao início do seu uso para que as mudanças nas estruturas possam ser comparadas com dados prévios à hormonização. Aferições sistemáticas e realizadas com as mesmas técnicas são úteis para gerar dados objetivos dos efeitos obtidos com a hormonização e, assim, considerar aumento gradual da dose caso não sejam obtidas as transformações corporais esperadas em um determinado tempo de uso de doses baixas. O acompanhamento dessas medidas pode ser útil para lidar com ansiedades relacionadas à obtenção das transformações corporais, mas também pode ser responsável em gerar ansiedade e sofrimento disfórico caso não aponte os efeitos esperados, portanto, as medidas não devem ser impostas e deve-se dialogar com a pessoa atendida sobre seu projeto de averiguação das transformações obtidas. Pessoas que tenham interesse podem ser estimuladas a se fotografarem em condições sempre semelhantes. Sugestões de medidas corporais e de técnicas para aferição, que podem ser registradas em planilha para acompanhamento (ver anexo 6): ● peso: sem sapatos, sem casacos, sem conteúdo no bolso e, preferencialmente, usar sempre a mesma balança;
Figura 14 – Aferição de peso e altura (ilustração: Amorim PEA)
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340 ● investigação de áreas com presença de acne: desenho em prontuário ou descrição quanto à distribuição, além de classificação e/ou caracterização de lesões (comedões abertos, comedões fechados, pápulas, nódulos, abscessos, cicatrizes com ou sem retração). ● distribuição e espessura de pilificação: desenho ou descrição quanto à distribuição em prontuário, além de caracterização dos fios (espessos, finos, compridos, curtos, esparsos, etc).
Figura 15 – Registro de pilificação com desenho (ilustração: Amorim PEA)
● presença de alopecia e área acometida: descrição ou desenho em prontuário; ● silhueta, musculatura hipertrofiada e distribuição de gordura: descrição subjetiva em prontuário, mas pode ser utilizado adipômetro. ● circunferências de pescoço (maior diâmetro), cintura escapular (altura de músculo deltóides), busto (altura dos mamilos), cintura torácica (sob as mamas), cintura abdominal (altura da cicatriz umbilical), quadril (altura dos trocanteres), coxa direita ou esquerda (maior diâmetro), braço direito ou esquerdo (maior diâmetro na região do músculo bíceps), antebraço direito ou esquerdo (maior diâmetro), perna direita ou esquerda (maior diâmetro): aferição com fita métrica flexível e registro em prontuário.
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341 Figura 16 – Aferição de medidas corporais circunferenciais (Ilustração: Amorim PEA)
● hipertrofia da glande do clitóris: após retrair o prepúcio, aferi-la em comprimento e largura (medidas longitudinal e transversal) com régua rígida e registro em prontuário. O relato da pessoa atendida pode indicar alteração da sensibilidade do clitóris.
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Figura 17 – Aferição de medidas de clitóris (ilustração: Amorim PEA)
● tamanho das glândulas mamárias: com a pessoa em ortostase ou decúbito dorsal, aferir os maiores comprimentos horizontal e vertical das glândulas mamárias direita e esquerda, desconsiderando pele e tecido subcutâneo, com régua rígida e registro em prontuário. A classificação na escala de Tanner pode complementar essa informação, principalmente em pessoas adolescentes.
Figura 18 – Aferição de medidas de glândulas mamárias (ilustração: Amorim PEA) ● tamanho dos testículos: com a pessoa em ortostase ou decúbito dorsal, aferir os maiores comprimentos horizontal e vertical de ambos os testículos, desconsiderando a pele,
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343 com régua rígida e registro em prontuário. Orquidômetro pode ser utilizado em substituição a essa técnica, caso esteja disponível.
Figura 19 – Aferição de medidas de testículos (ilustração: Amorim PEA) ● atrofia de mucosa vaginal/vulvar: presença de lesões, observação da coloração, da epitelização e da lubrificação da mucosa (deve-se considerar prioritariamente o relato da pessoa atendida em relação à lubrificação e desconfortos). ● cartilagem tireoide (“pomo de adão” / ”gogó”): descrição e/ou aferição com régua rígida de seu relevo. ● mudanças na voz: gravações em que a pessoa fala a mesma frase (pode ser realizada com recursos próprios). Exames físicos específicos somente precisam ser realizados caso haja indicação de rastreamento ou de investigação clínica: • Aferição de PA: recomenda-se realizar como rastreamento para Hipertensão Arterial Sistêmica de acordo com recomendações do Ministério da Saúde para a população em geral (a cada 2 anos para pessoas com mais de 18 anos). • Descarga mamária: necessária somente se houver queixa ou sinais de hiperprolactinemia. • Exame ginecológico especular ou toque vaginal: somente se houver queixa (como menstruação persistente, dor e sangramentos genitais). (ver exame ginecológico)
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Sugestão de organização das consultas
O roteiro a seguir é uma sugestão para que profissionais possam se aproximar da realidade e da perspectiva de cada pessoa que busca atendimento relacionado à hormonização. Pode ser utilizado à solicitação de hormonização ou em outra situação. 1a CONSULTA Identificação: abordar dados identitários (nome, gênero, pronomes utilizados, idade, naturalidade, residência, escolaridade, ocupação, religião, rede social, coabitação, etc.). Trajetória de vida: oferecer espaço para que a pessoa se apresente e conte sobre fatos importantes de sua vida. Uma abordagem possível é traçar uma linha em um papel que represente em seu início o nascimento da pessoa e em seu final o momento atual de vida dela e, caso a pessoa aceite, pedir que ela aponte os fatos marcantes de sua vida (relacionados ou não com a transgeneridade/travestilidade). (ver abordagem individual) Antecedentes pessoais e familiares: investigar patologias existentes e prévias, uso de medicações atual e prévio, tratamentos realizados, internações, cirurgias, alergias, ISTs, paridade, pessoas da família consanguínea vivas/falecidas e suas doenças conhecidas. Abordagem de desejo de transformações corporais: oferecer espaço para que a pessoa compartilhe suas percepções em relação ao corpo, suas expectativas e desejos, suas crenças quanto ao uso dos hormônios e/ou outros procedimentos de transformações corporais, sua vivência na comunidade e seus sentimentos. Identificação de demanda: Apresentar as estratégias disponíveis para modificação corporal (dependentes ou não de serviços de saúde) e, caso a pessoa opte pela hormonização, entregar termo de consentimento para ser lido no intervalo entre as consultas. Solicitar exames: Caso a pessoa opte pela hormonização, oferecer e solicitar exames séricos. Plano de cuidado: estabelecer um plano compartilhado com a pessoa atendida, considerando as transformações corporais e questões de saúde abordadas e avaliadas.
2a CONSULTA Escuta: espaço de reflexão sobre transformações corporais, relacionadas ou não com informações disponíveis no termo de consentimento. Consentimento: registrado através de termo de consentimento assinado ou através de registro em prontuário. Resultado de exames: verificar fatores de risco e contraindicações para o uso de hormônios.
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345 Medidas corporais: oferecer e registrar em prontuário, caso sejam necessárias comparações futuras. Prescrição: a hormonização pode ser iniciada, caso não haja incerteza ou contraindicações clínicas. CONSULTAS ADICIONAIS PRÉ-HORMONIZAÇÃO Caso a pessoa demonstre insegurança quanto às transformações corporais ou não tenha sido possível excluir contraindicações para o início da hormonização, poderão ser realizadas consultas adicionais. Mais de uma categoria profissional pode ser engajada nos espaços de acolhimento de necessidades e avaliação de contra-indicações. 1a CONSULTA APÓS INÍCIO DA HORMONIZAÇÃO Um mês após início da hormonização Atentar para alterações de humor, agravamento de quadros de saúde mental e ansiedade com transformações corporais. Oferecer abordagens e acompanhamento de situações específicas. Agendar retornos breves caso haja necessidade de abordar ou investigar questões clínicas ou de saúde mental.
CONSULTAS DE ACOMPANHAMENTO Após 3, 6 e 12 meses após o início da hormononição. Após esse período, anualmente se houver estabilização da dose e das transformações corporais, além de não haver necessidades específicas. A cada consulta: Investigar transformações corporais notadas pela pessoa. Investigar alterações emocionais notadas pela pessoa, devido a fatos vividos, a adoecimentos emocionais ou devido à hormonização. Em pessoas transmasculinas, o aumento da sensação de energia corporal e emocional gerada pela testosterona pode ser interpretada como positiva ou negativa (como ansiedade, irritabilidade, agressividade, aumento do ânimo, disposição para exercício etc.).421 Alterações ou oscilações dos níveis séricos de testosterona (devido descontinuidade, uso irregular ou uso de hormônios que não mantém nível sérico estável, como cipionato de testosterona IM) podem gerar também oscilações de humor. Pessoas transfemininas que experienciam efeitos da redução da testosterona podem relatar fadiga, redução da sensação de energia corporal e também
421 Psico / Preciado. TestoJunkie
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346 emocional. Algumas informações são úteis na compreensão de efeitos não esperados com o uso do hormônio, como mudanças na libido e no orgasmo. Oferecer medidas corporais e, caso a pessoa aceite, realizá-las. Abordar, reconhecer e acolher, caso exista ansiedade por transformações corporais rápidas. Reavaliar contraindicações.
As avaliações emocionais, corporais e laboratoriais realizadas a cada consulta podem ser concentradas em uma planilha, com o objetivo de facilitar o registro e o acesso a essas informações. (Ver anexo 6)
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347 Bloqueio puberal em crianças e adolescentes a partir do estágio Tanner II e hormonização de adolescentes a partir de 16 anos A assistência a crianças e adolescentes com variabilidade de gênero deve ocorrer o mais precocemente possível, e é extremamente recomendável a supressão da puberdade antes do desenvolvimento irreversível das características sexuais secundárias. (ver Crianças e adolescentes) Recentemente, através da Resolução 2.265/2019, o Conselho Federal de Medicina autorizou o início da hormonização cruzada em adolescentes entre 16-18 anos, sob anuência de responsáveis legais e independe da realização prévia de bloqueio puberal. Em pessoas transmasculinas, os protocolos de hormonização se baseiam nas condutas indicadas para indivíduos nascidos com características corporais tipicamente masculinas que se deparam com hipogonadismo, implicado em puberdade tardia (caracterizada por ausência de aumento do volume testicular entre 13-14 anos) ou atraso constitucional do desenvolvimento puberal. A puberdade tardia também pode ser definida clinicamente pela ausência ou desenvolvimento incompleto de características sexuais secundárias em uma idade de 2 a 3 desvios padrão acima da idade média de acordo com gônadas, cromossomos X/Y e etnia. Entretanto, pode-se estar inferindo condutas para cenários fisiológicos muito distintos. O objetivo do uso de baixas doses de testosterona (50-100mg/mês) nos casos de pessoas nascidas com testículo é a ativação ou estimulação do eixo hipotálamo-hipófise-testicular pelo aumento da frequência dos pulsos de GnRH, constatado através do aumento das gonadotrofinas após início do tratamento. Para indivíduos que realizaram o bloqueio puberal e com isso apresentam estatura frequentemente abaixo da esperada para a idade, assim como para indivíduos com atraso constitucional do desenvolvimento, a introdução lenta de andrógenos simularia um episódio de estirão puberal. O volume testicular médio aumenta de 5,9 para 11,3 mL durante a terapia de indução (progressão de Tanner 2 para 3) e é sucedido pela secreção endógena de GnRH com ocorrência de puberdade espontânea. Em contraste, outras formas de hipogonadismo hipogonadotrófico demonstram pouco ou nenhum desenvolvimento puberal com baixas doses de testosterona e o progresso puberal geralmente para com a interrupção da terapia. Ainda assim, essa prática atual de terapia hormonal para induzir a puberdade em adolescentes cisgênero carece de diretrizes baseadas em evidências sobre o momento ideal e o regime hormonal, baseando-se em consensos e opiniões de especialista. Quando não foi realizado bloqueio puberal, pessoas que nasceram com ovário aos 14 anos têm o mesmo desenvolvimento ósseo daquelas que nasceram com testículo aos 16 anos. A taxa de acúmulo mineral ósseo atinge o pico na menarca, que ocorre
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348 aproximadamente 9 a 12 meses após o pico de velocidade de crescimento e a maturidade óssea final é atingida ao redor de 16 anos. Nesse cenário, o uso de doses baixas de testosteronas em pessoas transmasculinas para hormonização cruzada a partir de 16 anos não parece ter significado fisiológico ou implicação clínica significativa. Uma das justificativas para indução da puberdade em adolescentes com atraso do desenvolvimento é justamente a lentidão na progressão de características corporais relacionadas a sexo/gênero em uma fase de maiores interações sociais e do ponto de vista afetivo-sexual, gerando angústia ou sentimentos de disforia com relação a percepção corporal. O uso de testosterona em formas farmacêuticas com o éster undecilato ou undecanoato não tem aprovação para uso em menores de 18 anos porque esse grupo populacional não foi incluído nos estudos clínicos que viabilizaram a aprovação por agências reguladoras. Isso ocorreu em um contexto de negligência da compreensão clínica de sua aplicabilidade, pois a hormonização cruzada não era autorizada para essa idade e nos cenários de indução puberal com pequenas doses, a testosterona de depósito não seria aplicável. Entretanto, vale destacar que a ANVISA e o FDA autorizaram o uso de Undecilato/Undecanoato de Testosterona apenas para hipogonadismo testicular e a aplicabilidade para hormonização de pessoas trans é off-label pelos resultados a longo prazo em diversos países. As agências também autorizam o uso de Cipionato de Testosterona apenas para adultos acima de 18 anos com hipogonadismo testicular. No caso da hormonização cruzada em adultos, diversos estudos a longo prazo já mostram a segurança, os benefícios e efeitos colaterais do uso de ésteres de depósito, inclusive em menores de 18 anos. Os resultados mostram aumento significativo da massa magra em comparação com os valores basais, enquanto não foi observada alteração no IMC e densidade mineral óssea. Há declínio significativo nas gonadotrofinas, estradiol, SDHEA, SHBG e HDL, enquanto os níveis de triglicerídeos aumentam significativamente após 12 e 24 meses. Os ovários permaneceram inalterados e nenhuma patologia endometrial perceptível foi observada. Há também aumento significativo da hemoglobina, hematócrito e da transaminase glutâmico-pirúvica. Os efeitos colaterais relatados são menores devido ao nível sérico menos instável, como observado nos picos suprafisiológicos e quedas abruptas do cipionato. Além disso, os riscos de reativação ovariana por atraso nas aplicações são muito menores, devido a meia vida prolongada da substância. As práticas e os paradigmas dos atendimentos de pessoas trans devem ser revisitados em um contexto em que a perspectiva diagnóstica é substituída pela do cuidado. A interação entre as áreas do conhecimento ajudará a desenvolver melhores estratégias para intervenções antes estabelecidas, baseadas principalmente nas demandas de pessoas usuárias, uma vez que a identidade de gênero e a expressão de gênero não deve seguir a
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349 lógica da verticalidade antes concebida na categorização e determinação de ofertas de cuidados.422
Idealmente, o início da intervenção hormonal com agonista LHRH/GnRH (que promovem bloqueio do eixo hormonal hipotálamo/hipófise/gônada) deve acontecer logo aos primeiros sinais puberais (estágio 2 de Tanner) ou o mais precocemente possível após esse momento, com confirmação pelas concentrações hormonais de estradiol (em pessoas designadas ao nascimento como meninas) e de testosterona (em pessoas designadas ao nascimento como meninos). Essa terapia visa promover o bloqueio da puberdade gerada pela gônada e que implicaria no desenvolvimento de características corporais marcadoras do gênero designado ao nascimento, ao mesmo tempo em que oferece tempo de reflexão para a pessoa adolescente amadurecer sua decisão e tornar-se apta a decidir sobre seu futuro. Os agonistas GnRH são descritos na tabela de antiandrógenos. (ver ‘Quadro 8 – Antiandrógenos utilizados para hormonização de travestis, mulheres transe pessoas transfemininas’) Durante o uso dos chamados “bloqueadores hormonais”, a pessoa adolescente deve ser estritamente monitorada para os efeitos adversos do retardo da puberdade (como parada do crescimento e da maturação óssea): • A cada 3 meses, afere-se peso, altura, altura sentada e estadiamento de Tanner; • A cada 3 meses, colhe-se exames laboratoriais (FSH, LH, estradiol em adolescentes transmasculinos e testosterona em adolescentes transfemininas); • Anualmente, realiza-se densitometria óssea e idade óssea através de RX da mão esquerda, além de exames laboratoriais (como função hepática, função renal, lipídios, glicemia, insulina e Hb glicosilada).423 Aos 16 anos, se persistir a identidade de gênero incongruente com o gênero designado ao nascimento e se a pessoa estiver apta a decidir, deve ser induzida a puberdade com características corporais desejadas. Cabe ao serviço de saúde e à equipe multiprofissional: 1. Acolher a família, inclusive as que tem dificuldade em aceitar a vivência da criança/adolescente relacionada à vivência de variabilidade gênero, ofertando material de informação, momentos de conversa, indicando grupos de suporte a familiares e demais espaços de troca de experiências.
422 423 Silva LFG. Parecer CFM no 8/13 – Processo-consulta CFM n o 32/12. Terapia hormonal para adolescentes travestis e transexuais [Internet]. Conselho Federal de Medicina. 2013.
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350 2. Para adolescentes acima de 16 anos, encaminhar para unidades da Rede SAMPA Trans, que dará oferecerá acompanhamento específico às transformações corporais para a pessoa adolescente e sua família. 3. Escutar a história relacionada à vivência de variabilidade de gênero, entender se a pessoa considera realizar transição social de gênero e em que momento da transição a pessoa está, informar sobre as possibilidades de processos da transição desde sociais até psicológicos, além de hormonais. Acompanhar a vivência de gênero da pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero para avaliar se há ou não uma disforia de gênero, os impactos ou imediatismos que ela causa. 4.Informar e orientar a pessoa adolescente previamente sobre todos os procedimentos e intervenções às quais será submetida. 5. O termo de consentimento livre e esclarecido deve ser preenchido e assinado, preferencialmente junto à pessoa com mais de 18 anos que seja por ela responsável legal. (ver anexo) 6. A equipe deverá elaborar Projeto Terapêutico Singular (PTS) 7. Disponibilizar o acesso a outras profissionais da área da saúde, de acordo com o PTS, que a unidade não possua. 8. Ofertar a familiares ou responsáveis grupos de apoio e/ou psicoterapia quando a equipe julgar necessário. Para pessoas transfemininas, utiliza-se 17 β estradiol oral (início em 05 micrograma/kg ao dia, com aumento da dose a cada seis meses: 10, 15, 20 microgramas/kg ao dia e então dose plena para adultos = 2mg ao dia). Para pessoas transmasculinas, administra-se cipionato de testosterona intramuscular (início em 25 mg/m2 a cada 2 semanas, com aumento da dose a cada seis meses: 50, 75 e 100 mg/m2 a cada 2 semanas e, a partir dos 18 anos = 250mg a cada 3 a 4 semanas em dose plena para adultos).29 Crianças e adolescentes que tenham possível indicação de bloqueio puberal e de hormonização cruzada devem ser encaminhadas para uma unidade de referência da Rede SAMPA Trans, além de serem acompanhadas pela sua UBS de referência. As unidades da Rede SAMPA Trans poderão realizar encaminhamento para ambulatório regulamentado e que realiza atendimentos sob protocolo de pesquisa. Em São Paulo, o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, IPq-HC/FMUSP) é um dos serviços que realiza atendimento a crianças e adolescentes trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero, e possui equipe transdisciplinar é formada por psiquiatras, psicólogas, fonoaudiólogas, pediatras, hebiatras e assistentes sociais em parceria com o Instituto da Criança com os atendimentos de endocrinopediatria. Suas atuações são focadas na assistência de pessoas trans, de familiares, e ações intersetoriais
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351 através de matriciamento de equipes multiprofissionais com discussão de casos específicos e intervenções psicoeducacionais com escolas. A idade atual de admissão nesse ambulatório é de no máximo 12 anos e 11 meses. O contato com esse ambulatório pode ser feito por meio de correio eletrônico (amtigos.ipq@hc.fm.usp.br). Acima desta faixa etária, a usuária pode procurar o atendimento da UBS que atende a sua residência, a qual poderá encaminhar a pessoa para uma unidade de referência da Rede SAMPA Trans. Quando maior de 16 anos, informar e orientar a pessoa adolescente previamente sobre todos os procedimentos e intervenções às quais será submetida. É importante avaliar se há consenso na família. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) (anexos 2 e 3) deve ser lido em conjunto com a família ou representante legal, os termos técnicos devem ser explicados usando uma linguagem mais simples. Após terem sido elucidadas todas as dúvidas e com a anuência da pessoa adolescente, o TCLE deve ser preenchido e assinado conforme indicado no termo em 2 vias - uma fica no prontuário e a outra é da pessoa adolescente.
Saúde Reprodutiva em adolescentes trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero Nas últimas décadas, o distanciamento passivo de algumas especialidades médicas no acolhimento e atendimento de pessoas trans, travestis ou com vivência de variabilidade de gênero, gerou um hiato relacionado às soluções para demandas de saúde. Além disso, diálogos multidisciplinares devem evitar rupturas nas intersecções dos conhecimentos específicos necessários ao melhor cuidado que pode ser oferecido. A despatologização das identidades trans, travestis e de vivências de variabilidade de gênero é sucedida por melhora na qualidade de vida das pessoas, pela redução das violências nas instituições de saúde e por avanços no reconhecimento dos direitos civis. Nesse contexto, a Organização Mundial de Saúde anunciou a retirada da transexualidade da lista de transtornos mentais na CID-11 em 2018, que passou a ter vigência em vários países em janeiro de 2022 (a CID-11 ainda não entrou em vigor no Brasil). Ainda em 2021, seguindo os efeitos dessa transição, a população trans, travesti e com vivência de variabilidade de gênero foi expressamente contemplada na Resolução 2.294/21 do Conselho Federal de Medicina, garantindo o acesso às tecnologias reprodutivas. Em hospitais universitários e sob protocolos de pesquisa, pode ser realizado o bloqueio hipofisário de adolescentes a partir do estágio puberal de Tanner 2, quando apresentam uma vivência ou identidade de gênero diferente do gênero que foi designado ao nascimento. Essa abordagem minimiza o sofrimento psíquico que é decorrente das repercussões interpessoais do desenvolvimento de caracteres sexuais secundários
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352 indesejados, lidos socialmente como incompatíveis com a identidade de gênero vivenciada. Além disso, previne intervenções corporais não medicadas como uso de binder e até morbidades cirúrgicas advindas da necessidade de mamoplastia ou tireoplastia. As recomendações atuais da World Professional Association for Transgender Health, da Endocrine Society e da American Society for Reproductive Medicine sugerem aconselhamento reprodutivo antes do início do bloqueio hipofisário, fundamentalmente pela escassez de dados seguros sobre a reversibilidade dos seus efeitos gonadais e a possibilidade de obter gametas viáveis no futuro. O aconselhamento nesse sentido se torna um terreno árido, pela falta de dados concretos que justifiquem adiar o bloqueio, além do nível de elaboração do desejo reprodutivo no início da adolescência. Um estudo com 156 adolescentes trans mostrou que 70,5% estavam interessados em adoção, enquanto apenas 35,9% em parentalidade biológica. 20,5% discutiram o planejamento reprodutivo com um profissional de saúde e somente 13,5% foram informados sobre os efeitos da hormonização na fertilidade. Em outro levantamento, 90% das pessoas trans não consideravam o projeto de parentalidade motivo suficiente para adiar as intervenções hormonais. Quando não houve preservação da fertilidade antes do início da hormonização, a reativação da função testicular diante de um desejo reprodutivo pode se dar através do uso de gonadotrofinas. O uso off-label de moduladores dos receptores de estrogênio e de inibidores da aromatase pode ser inadequado tendo em vista seus efeitos antiestrogênicos em um cenário de hormonização feminina e aumento da testosterona. Para restaurar o funcionamento gonadal, o estímulo com gonadotrofinas deve ser feito com hCG subcutânea na dose inicial de 2.000U três vezes por semana e aumentada em 3 meses para 5.000 e até 10.000 após repetição do intervalo, se a concentração sérica de testosterona total não estiver entre 400-800ng/dL. Após atingir esse valor, a produção de espermatozóides pode ser detectada no ejaculado em 6-10 meses. Quando a ejaculação tem componente disfórico, os espermatozóides podem ser obtidos por punção de epidídimo ou dissecção testicular. Entretanto, pode não ser confortável a elevação da testosterona e seus efeitos por todo esse período de interrupção da hormonização cruzada. O efeito da testosterona na fertilidade de pessoas transmasculinas parece não ser significativo: não altera o número e a distribuição de folículos ovarianos, não afeta a capacidade de desenvolvimento dos folículos no xenotransplante ou o potencial de maturação in vitro de oócitos provenientes do tecido criopreservado. Cinetócoros alinhados ao longo da placa metafásica por microtúbulos do fuso foram igualmente detectados antes e após a vitrificação de oócitos na metáfase II após tratamento com testosterona. Os resultados de estímulo ovariano para criopreservação de óvulos ou procedimentos de fertilização in vitro após pausa nos androgênios, mostrou que a as taxas de oócitos maduros na aspiração
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353 folicular, blastulação e embriões euplóides foi igual ao de mulheres cisgênero de mesma idade.
Bloqueio Puberal O bloqueio hipofisário é uma intervenção já estabelecida para os casos de puberdade precoce, sendo transitório e reversível. Seu objetivo – no caso de pessoas trans – é dar tempo ao desenvolvimento de autonomia para decidir sobre mudanças corporais definitivas em consonância ao gênero autodeclarado. Cabe aos responsáveis legais decidir sobre expectativas reprodutivas, enfrentando o iminente desenvolvimento de características físicas que podem gerar desconforto psicossocial. A puberdade faz o corpo trans emergir socialmente e expõe o adolescente à transfobia manifesta em bullying, isolamento social e violência física; internamente, reflete-se em culpabilização do corpo pela exclusão. Adolescentes trans em acompanhamento médico para bloqueio puberal ou hormonização tem 60% menos chances de depressão moderada a grave e 73% menos risco de violência autoprovocada. Do lado do planejamento reprodutivo, a construção da parentalidade passa por múltiplas determinações, dentre as quais a genética pode não ser essencial e indispensável. A evolução das tecnologias reprodutivas e os avanços nos direitos de família, permitem reduzir a responsabilidade da preservação da gametas como condição para realização de um projeto parental. O bloqueio do eixo hipófise-gonadal tem repercussões diferentes para ovários e testículos, uma vez que pode ser iniciado em estágio puberal no qual ainda não se completou a maturação das células germinativas testiculares e a mudança no padrão pulsátil do GnRH pode interromper a secreção hipofisária de gonadotrofinas e a espermatogênese consequente. Enquanto a ovogênese se inicia ainda na vida intrauterina e a meiose é interrompida na prófase da primeira divisão após formar os oócitos primários, as espermatogônias só iniciam a meiose após o estágio puberal de Tanner 3. O congelamento de tecido gonadal seria a única técnica disponível em pessoas pré-puberes, mas ainda é considerada experimental, uma vez que não há experiências bem-sucedidas e clinicamente reprodutíveis de ativação das divisões meióticas em tecidos humanos in vitro ou por xenotransplante, após criopreservação. Um estudo avaliando a histologia de testículos provenientes da orquiectomia de 240 pessoas transfemininas adultas demonstrou a preservação das espermatogônias em 100% daquelas que realizaram o bloqueio puberal em qualquer estágio de Tanner entre 2 e 5. Em 10% das que iniciaram o bloqueio nos estágios 4 e 5 havia ainda espermatozoides maduros. Quando o bloqueio não foi realizado e a hormonização cruzada iniciada já na fase adulta, em 11% dos casos não havia nenhuma célula germinativa viável e espermatozoides maduros
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354 estavam em apenas 4%. O tempo de uso de estradiol não interferiu nos resultados, conforme já era descrito por estudos anteriores. Em tecido testicular imaturo preservado através de vitrificação, as espermatogônias foram capazes de sobreviver e proliferar, mas apenas uma diferenciação parcial foi obtida. Por sua vez, o tecido ovariano obtido por biópsia ou ooforectomia pode ser descongelado e autotransplantado em uma janela peritoneal e, quando folículos primordiais estão presentes, a atividade ovariana é restaurada em todos os casos, até mesmo após criopreservação de tecido obtido antes da menarca. No entanto, para pessoas transmasculinas, a restauração da função ovariana pode ser indesejável, devido aos efeitos da produção de estradiol.
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Hormonização em pessoas idosas
Reconhece-se o papel da hormonização cruzada para garantir as transformações corporais em pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero. No entanto, a literatura científica é escassa em relação a segurança da hormonização cruzada em pessoas idosas, dificultando o estabelecimento de orientações para esse grupo populacional. Nesse sentido, parte do que é sugerido para pessoas idosas transgênero segue uma extrapolação de pessoas cisgênero em hormonioterapia para a condição de hipogonadismo, ou seja, carente de evidências mais específicas e passível de críticas, sendo necessárias revisões constantes.424 Em homens cisgênero (cis) diagnosticados com hipogonadismo e tratados com testosterona, a dose de testosterona costuma ser reduzida com a idade, pois sabe-se que os níveis de testosterona caem com a idade, cerca de 0,4% ao ano, dos 40 aos 79 anos, segundo dados do European Male Aging Study (EMAS). Ainda, há controvérsia com relação ao risco de eventos cardiovasculares em homens cis idosos tratados com testosterona.425 Como nos homens cis, a hormonização de homens trans e pessoas transmasculinas se baseia no uso de ésteres de testosterona aplicados por via intramuscular ou, ainda, de géis de testosterona aplicados por via transdérmica.426 A testosterona administrada em pessoas transmasculinas acarreta aumento discreto da pressão arterial sistólica, de 2 a 7 mmHg,427 e esse incremento pode ser maior em pessoas acima dos 60 anos de idade, que já experimentam aumento da pressão arterial sistólica relacionado à idade. O uso de testosterona por homens trans e pessoas transmasculinas pode alterar o perfil lipídico, geralmente com aumento do colesterol LDL, redução de HDL e aumento dos triglicerídeos.428 Outra alteração merece atenção - aumento do hematócrito, podendo surgir em pessoas idosas. Felizmente, eventos tromboembólicos é um evento raro nesses casos. Em geral, recomenda-se priorizar a hidratação, cessação do tabagismo quando presente e mudança do estilo de vida (dieta e atividade física).
424 Gooren LJ, T’Sjoen G. Endocrine treatment of aging transgender people. Reviews in Endocrine and Metabolic Disorders. 2018; 19: 253-262 425 Bhasin S. Testosterone replacement in aging men: an evidence-based patient-centric perspective. J Clin Invest. 2021; 131(4): e146607 426 Coleman E et al. Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People, Version 8. Int J Transgend Health. 2022; 23(Suppl 1): S1-S259. Published 2022 Sep 6. doi:10.1080/26895269.2022.2100644 427 Irwig MS. Cardiovascular health in transgender people. Rev. Endocr. Metab. Disord. 2018; 19(3): 243-251. doi:10.1007/s11154-018-9454-3 428 Elamin MB et al. Effect of sex steroid use on cardiovascular risk in transsexual individuals: a systematic review and meta-analyses. Clinical Endocrinology. 2010; 72(1): 1-10.
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356 A hormonização em pessoas transmasculinas idosas deve ser sempre individualizada, pois já apresenta uma combinação de alterações potencialmente desfavoráveis, aumentando o risco de eventos trombóticos, como infarto do miocárdio, acidente vascular encefálico e tromboembolismo venoso. Ainda não dispomos de estudos de coorte em homens trans idosos com tempo suficientemente longo para determinar os benefícios e malefícios da hormonização nessa fase da vida. Nesse sentido, tem-se sugerido uma redução gradual da dose de testosterona com aumento da idade para níveis de testosterona plasmáticas mais próximos do limite inferior da faixa de normalidade definida para homens cis. A presença de eritrocitose (hematócrito > 50%) e histórico de insuficiência cardíaca são fatores que devem recomendar a redução de dose de testosterona em homens trans idosos. Tem sido consenso que no caso de pessoa trans com antecedentes prévios de infarto do miocárdio ou acidente vascular encefálico o cuidado com a testosterona deve ser ampliado, mesmo que não essas situações não se constituam em contraindicações absolutas. No caso de ocorrer infarto do miocárdio durante a hormonização, a suspensão da testosterona deve ser considerada pelo período mínimo de seis meses, assim como reforçar as medidas preventivas de controle da doença cardiovascular, tabagismo, hipertensão arterial e dislipidemia - assim como essas medidas são reforçadas para pessoas cis. Nas situações de redução da dose de testosterona, o cipionato de testosterona intramuscular pode ser reduzido pela metade, enquanto o undecilato de testosterona intramuscular pode também ter a dose diminuída ou ter o intervalo entre doses ampliado para 14-18 semanas. Testosterona em gel pode ser uma opção nos casos com eritrocitose persistente nessa idade, afastando-se outros fatores agravantes como tabagismo, apneia do sono e pneumopatias crônicas. Segundo as recomendações para mulheres cis, como preconizado pela North American Menopausal Society (NAMS), a terapia de reposição hormonal na pós-menopausa está indicada na presença de sintomas vasomotores e gênito-urinários, assim como para a proteção óssea. Nessa população cisgênero, o uso de estrógenos só é indicado para menores de 60 anos. O desafio em mulheres trans, travestis e demais pessoas transfemininas é muito maior, pois comumente usam estrógenos e antiandrógenos para as suas transformações corporais.429 A prescrição de estrógenos, particularmente administrados por via oral, aumenta o risco trombogênico. Esse risco é ainda maior em pessoas transfemininas idosas, especialmente quando apresentam histórico de trombose venosa anterior, trombofilia de
429 Fischer AD et al. SIGIS-SIAMS-SIE position statement of gender affirming hormonal treatment in transgender and non-binary people. Journal of Endocrinological Investigation. 2022; 45: 657-673
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357 causas genéticas, ou fatores concorrentes como obesidade, sedentarismo e tabagismo. O emprego de valerato de estradiol ou estradiol micronizado por via oral são boas opções, mas aqueles de uso transdérmicoque evitam a primeira passagem hepática não interferem em proteínas da coagulação e, assim, seriam a prescrição mais aconselhada para mulheres trans, travestis e demais pessoas transfemininas idosas.430 Portanto, uma vez que não há estudos prospectivos de longa duração, recomenda-se para pessoas transfemininas acima de 50 anos, particularmente para aquelas com risco cardiovascular e/ou tromboembólico elevado, o uso exclusivo de estradiol por via transdérmica em baixas doses, como por exemplo: 17β-estradiol 0,75 mg/dia (um pump/dia) ou 25 μg/dia (um adesivo 2 vezes por semana). Aquelas em uso de estrógeno em maior dose (4-6mg/dia) devem ser orientadas para realizar sua redução e, sempre que possível, mudar para uso transdérmico. As transformações corporais não-hormonais devem ser priorizadas em relação à hormonizaão, como a prótese de aumento mamário e a epilação. O emprego da ciproterona como antiandrógeno está contraindicada para pessoas trans idosas, tendo em vista que parece ser mais trombogênica nessa fase da vida e reduzir os níveis de HDL. Portanto, havendo necessidade de redução de sinais androgênicos, como pelos faciais e corporais, recomenda-se a utilização da espironolactona ou mesmo a epilação por laser. A suspensão da estrogenização deve ser considerada quando o risco for muito elevado, especialmente em idade superior a 60 anos ou na ocorrência de eventos cardiovasculares. A história familiar de câncer de mama deve desencorajar a manutenção da estrogenização acima dos 50 anos. Nas pessoas transfemininas idosas que realizaram orquiectomia no passado, a perda óssea (osteoporose) passa a ser um grande problema se houver a suspensão de estrógenos na velhice. Recomenda-se nesses casos o uso de estradiol transdérmico, somado ao emprego de antirreabsortivos ósseos, como os bisfosfonatos, caso haja sua indicação clínica para prevenção de fraturas. Reconhece-se o papel da hormonização cruzada para garantir as transformações corporais em pessoas trans, travestis e com vivência de variabilidade de gênero. No entanto, a literatura científica é escassa em relação à segurança da hormonização cruzada em indivíduos idosos, dificultando o estabelecimento de orientações para esse grupo populacional. Nesse sentido, parte do que é sugerido para essas pessoas idosas segue uma extrapolação de pessoas cisgênero em hormonioterapia para a condição de hipogonadismo,
430 Coleman E et al. Standards of Care for the Health of Transgender and Gender Diverse People, Version 8. Int J Transgend Health. 2022; 23(Suppl 1): S1-S259. Published 2022 Sep 6. doi:10.1080/26895269.2022.2100644
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358 ou seja, carente de evidências mais específicas e passível de críticas, sendo necessárias revisões constantes.431
431 Gooren LJ, T’Sjoen G. Endocrine treatment of aging transgender people. Reviews in Endocrine and Metabolic Disorders. 2018; 19: 253-262
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Hormonização em pessoas que vivem com HIV É importante que tanto a médica que administra a hormonização quanto aquela que administra a terapia antirretroviral estejam cientes de todos os medicamentos que a pessoa esteja utilizando. Sobre as possíveis interações entre hormonização e terapia antirretroviral disponível no Brasil, cabe a conduta de monitorar e ajustar a dose de testosterona ou estradiol nas seguintes situações:432 ● Os inibidores da protease potencializados com ritonavir (IP/r), como darunavir e atazanavir, podem aumentar as concentrações de testosterona e reduzir as de estradiol. ● Os inibidores da transcriptase reversa não-análogos (ITRNN), como efavirenz, nevirapina e etravirina, podem reduzir as concentrações de testosterona e de estradiol. O monitoramento habitual de enzimas hepáticas é suficiente para identificar problemas relacionados a possíveis sobrecargas hepáticas causadas por antirretrovirais e/ou hormonização cruzada - situação pouco frequente.
432 National Institutes of Health. [homepage na internet] Considerations for Antiretroviral Use in Special Patient Populations. In: Guidelines for the Use of Antiretroviral Agents in Adults and Adolescents Living with HIV. Updated 21 Set 2022. [acesso em 29 ago 2022] Disponível em:
https://clinicalinfo.hiv.gov/en/guidelines/hiv-clinical-guidelines-adult-and-adolescent-arv/transgender- people-hiv?view=full
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Microdosagens de hormonização
Quando uma pessoa trans, travesti ou com vivência de variabilidade de gênero demanda pequenas quantidades de hormônios para que ocorram pequenas ou lentas transformações corporais, em geral essa prescrição é chamada de “microdosagem”. Existem algumas razões pelas quais alguém pode querer menores doses de estradiol ou testosterona. Homens trans, pessoas não binárias e demais pessoas transmasculinas demandam mais comumente doses menores de testosterona, por já terem atingido as transformações corporais desejadas ou por terem experimentado questões psicossociais e sexuais com o uso da testosterona que foram percebidas como benéficas para a sua vivência. Pessoas transfemininas em uso de estradiol acompanhado por antiandrógenos podem demandar objetivos específicos de mudanças corporais, podendo ter a dose de estradiol reduzida. A prescrição de microdoses de hormonização pode ser uma maneira eficaz de obter transformações corporais mais sutis em pessoas transfemininas não binárias ou para qualquer pessoa trans que tenha objetivos semelhantes à terapia de reposição hormonal realizada em pessoas cis com ovários. Para algumas pessoas não binárias, o uso isolado de antiandrógeno pode atingir a quantidade adequada para feminização corporal desejada. Para outras pessoas, o uso de estrogênio junto com um bloqueador de testosterona em microdose é muito importante. Nesse sentido, é sempre preferível que as metas da hormonização sejam discutidas com a equipe de saúde para que a decisão sobre o melhor método para a realização da microdosagem seja compartilhada. Tomar baixas doses de hormônios também pode ser importante para muitos outros grupos de pessoas, pois é sempre uma boa prática escolher a dose de hormônio adequada para alcançar as metas de transformação corporal de forma individualizada. Portanto, desejos de microdosagens de hormonização devem ser acolhidos pela equipe de saúde responsável. Em geral, para a realização de microdosagens orienta-se a menor dosagem de hormonização ou mesmo doses mais baixas, conforme a demanda de cada pessoa. São doses consideradas baixas: ● Estradiol ou Valerato de Estradiol oral: pode-se passar de uma dose típica na faixa de 2 a 6 mg por dia para uma dose de 1 mg por dia ou menos, podendo ser usado na forma oral ou por via sublingual. ● Estradiol transdérmico: do uso típico de 100 a 400 μg / 2x semana, para cerca de 25- 50 μg. ● Estradiol em gel: da dose típica de 4-6 pumps/dia para a dose de 1 pump/dia.
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361 ● Espironolactona: ao invés da dose plena de 100 a 200 mg/dia, pode-se utilizar em torno de 25mg/dia ou menos. ● Acetato de ciproterona: ao invés de 50-100 mg/dia, pode-se utilizar em torno de 10mg/dia ou menos. ● Finasterida: enquanto a dose máxima típica é de 5 mg/dia, considera-se a dose baixa de cerca de 1 mg/dia. ● Undecilato de testosterona: a dose mínima de 500mg IM a cada 12 semanas pode ser reduzida para 250mg ou utilizada com diminuição de sua frequência (a cada 18 semanas). ● Cipionato de testosterona: a dose de 200mg IM a cada 2 semanas pode ser reduzida para 100mg ou utilizada com diminuição de sua frequência (a cada 3 ou 4 semanas), atentando-se para grandes oscilações de sintomas androgênicos.
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Anexo 1. Placa para divulgação de direito ao uso do nome social
Fonte: Adalberto Kiochi Aguemi Arte: Julia de Campos Cardoso Rocha
Também disponível on-line, na página da área técnica de Saúde Integral da População LGBTIA+.
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Anexo 2. TCLE para uso de testosterona
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO E DE CORRESPONSABILIDADE PELO USO DE TESTOSTERONA
Eu, ________________________________________________ [nome do usuário], declaro ter procurado espontaneamente a UBS / Ambulatório _________________________ [nome do serviço de saúde] e tive a oportunidade de ser atendido pela equipe multiprofissional que conversou comigo sobre a minha decisão de modificar meu corpo com auxílio de hormônio, com objetivo de adquirir características físicas do gênero com o qual me identifico. Fui informado pela equipe e/ou profissional de saúde sobre os riscos associados ao uso de testosterona e que seu uso pode trazer mudanças permanentes, mas também mudanças reversíveis, e que poderá me ajudar a adequar minha forma física masculina. A equipe me informou que as principais modificações corporais, benefícios e efeitos adversos relacionados com o uso de testosterona estão descritos abaixo: diminuição temporária ou permanente da fertilidade; aumento da oleosidade da pele; aparecimento de acne; crescimento de pelos corporais e faciais; aumento de massa muscular; redistribuição de gordura; interrupção da menstruação; aumento do clitóris; atrofia vaginal; mudança da voz (mais grave). Entendo que as mudanças irreversíveis causadas pelo uso de testosterona será a voz mais grossa, aumento do clitóris, a possibilidade de ficar calvo, aparecimento de “pomo de adão”. Entendo também que o uso de hormônio não impedirá a transmissão de nenhuma infecção sexualmente transmissível e que, para isso, é crucial o uso de preservativos ou da PrEP (Profilaxia Pré Exposição ao HIV). Entendo que apesar de minha fertilidade tornar-se diminuída, não estou isento da possibilidade de uma gravidez caso mantenha relações sexuais com pessoas com pênis sem uso de métodos anticoncepcionais. Entendo que posso ter maiores efeitos colaterais com o uso de testosterona caso eu tenha mais de 40 anos, seja fumante ou esteja acima do peso ideal. Fui informado que o uso de testosterona pode aumentar meu risco de desenvolver certos tipos de doenças ginecológicas, assim como poderá haver aumento da minha pressão arterial e do número de glóbulos vermelhos (policitemia). Sei também que poderá haver alterações de humor com o uso de hormônios e comunicarei a equipe caso esteja insatisfeito ou incomodado com isso. Entendo também que poderei ter alterações na minha libido. Eu concordo em comunicar para a equipe profissional sobre qualquer outro tratamento hormonal, assim como dieta suplementar, ervas medicinais, drogas ou medicações que por ventura venha a utilizar. Eu entendo também a necessidade de ser transparente na tomada de decisões em conjunto com a equipe multiprofissional. Comprometo-me a compartilhar informações sobre mim para ajudar a prevenir possíveis interações maléficas à minha saúde e fui informado que a equipe continuará a me dar atendimento independente de qualquer informação que eu vier a declarar, relativa aos procedimentos acima descritos. Eu entendo que os corpos das pessoas são diferentes e que não há como prever como será a resposta individual e, por isso, entendo que a dosagem hormonal e o acompanhamento oferecido a mim podem não ser exatamente os mesmos do que aqueles adotados pela equipe para outros homens trans e pessoas transmasculinas, ou daqueles que li, inclusive na internet ou redes sociais on-line, e entendo também que podem demorar até 5 (cinco) anos para que as alterações sejam percebidas no meu corpo. Entendo que caso eu não queira as alterações hormonais, mas sim alterações pontuais como musculatura, voz e/ou aumento dos pelos corporais ou faciais, existem outros métodos que não o hormonal. Eu concordo em tomar a testosterona como prescrita e informar à equipe sobre quaisquer problemas, insatisfações ou alterações que eu possa ter com o uso da testosterona a curto, médio e longo prazo. Eu farei os exames físicos e laboratoriais periodicamente,
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364 quando indicados pela equipe, para ter melhor controle de que eu não estou tendo reações indesejáveis com o hormônio, e entendo que esses exames são importantes para continuar a hormonização. Eu entendo que existem condições médicas que podem fazer com que o uso de testosterona poderá causar efeitos adversos importantes que comprometam gravemente a minha saúde, portanto, eu concordo que se a equipe considerar que eu tenha ou venha a apresentar esses efeitos, eu serei avaliado antes da decisão de iniciar ou continuar a hormonização. As seguintes reações adversas, possivelmente relacionadas com testosterona, foram observadas em estudos clínicos prévios, e estas podem orientar para os riscos e contraindicações de uso: acne; aumento do suor e alteração do seu odor; dor nas pernas e articulações; cefaleia; dor nas mamas; vermelhidão na pele; dor no clitóris; dor e hematoma subcutâneo no local da injeção; coceira; diarreia; tontura. Eu entendo que eu posso escolher interromper o uso da testosterona em qualquer momento que desejar. Eu também entendo que a equipe pode indicar a interrupção do mesmo por razões clínicas que comprometam minha saúde.
São Paulo, _____ de _______________ de 20 ____.
________________________________ ________________________________ Assinatura da usuária Assinatura/carimbo da(o) médica(o) Nome da usuária: Nome da médica(o): RG: Número da inscrição no CRM: CPF: Cartão Nacional de Saúde:
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Anexo 3. TCLE para uso de estrógeno e antiandrógeno
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO E DE
CORRESPONSABILIDADE PELO USO DE ESTRÓGENO E/OU ANTIANDRÓGENO Eu,__________________________________________________ [nome da usuária], declaro ter procurado espontaneamente a UBS / Ambulatório _________________________ [nome do serviço de saúde] e tive a oportunidade de ser atendida pela equipe multiprofissional que conversou comigo sobre a minha decisão de modificar meu corpo com auxílio de hormônio, com objetivo de adquirir características físicas do gênero com o qual me identifico. Declaro também que fui orientada sobre os diferentes procedimentos que podem ajudar na modificação corporal e as minhas dúvidas foram esclarecidas. Sei que o uso regular de estrógeno e/ou antiandrógeno podem causar modificações permanentes e outras reversíveis, e que a minha identidade de gênero não será garantida unicamente pelo uso desses hormônios. Estou ciente de que a terapia com estrógeno, alternativamente associada com antiandrógeno hormonal ou não hormonal (bloqueadores de testosterona), ajudará a adequar minha forma física feminina. As informações que eu recebi da equipe sobre os benefícios, riscos, contraindicações e principais efeitos adversos relacionados ao uso de estrógeno e antiandrógeno estão descritos a seguir: Mudanças permanentes (a resposta varia muito de pessoa para pessoa e as regiões aumentadas podem reduzir parcialmente quando parar de tomar estrógeno): desenvolvimento das mamas; e depósito de gordura nas coxas, quadris, mamas e em outras regiões (possivelmente barriga, face etc.). Mudanças reversíveis (acontecem somente enquanto estiver usando estrógeno, mas desaparecem quando eu parar de tomar):; aparecimento de celulite; ligeira redução dos pelos (podem ficar mais finos e demorarem mais para crescer); diminuição da oleosidade e sensação de afinamento da pele; diminuição da acne (espinhas); diminuição da queda de cabelo em locais específicos (“entradas” e “topo da cabeça”); diminuição do suor e mudança no cheiro do corpo; alteração da gordura no abdome; diminuição dos testículos em aproximadamente 40% do tamanho; diminuição da produção de testosterona (hormônio) pelo testículo; diminuição do volume do esperma ou mesmo ausência de volume ejaculatório; diminuição da fertilidade (que tende a voltar ao normal após interrupção), no entanto, se mantiver relações sexuais com alguém que possa engravidar, pode haver fecundação (gravidez) se não for utilizado método anticoncepcional; dificuldade de ereção para penetração; diminuição do desejo sexual; orgasmos menos intensos; sensação de diminuição de energia; surgimento ou agravamento de depressão; agravamento de enxaquecas; aparecimento de náuseas e vômitos; alterações ; diminuição da próstata; aumento da pressão arterial; alteração na função do fígado; aparecimento de coágulos nos vasos que poderão levar a: trombose venosa profunda, embolia pulmonar, danos cerebrais permanentes, que podem impedir de encaminhar ou falar, ou eventualmente risco de morte. Modificações que não ocorrerão, nem mesmo com a retirada dos testículos: desaparecimento dos pelos; afinamento da voz e diminuição do pomo de Adão. Eu entendo que o uso de hormônios não impedirá a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, sendo importante a utilização de métodos preventivos para evitá-las como, por exemplo, o uso de preservativo ou da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV). Entendo também que apesar da minha fertilidade estar diminuída, ainda assim posso engravidar uma pessoa que tenha vagina e útero, se mantiver relações sexuais sem uso de método contraceptivo. Fui informada de que o risco de aparecimento de trombose aumenta muito se eu fumar. Eu entendo que o risco é tão alto que eu fui aconselhada a parar de fumar completamente. Com o uso de estrógenos e/ou antiandrógenos (especialmente do tipo Acetato de Ciproterona) orais esse risco aumenta. Eu entendo que estarei mais predisposta a efeitos colaterais se eu fumar, estiver acima do peso ideal, se tiver mais que 40 anos, se
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tiver histórico de trombose venosa (meu ou entre familiares), pressão alta e câncer estrógeno- dependente ou progestágeno-dependente, anterior e/ou na família (mama e útero).
Eu concordo em contar para a equipe do serviço de saúde sobre qualquer outro tratamento hormonal a que eu for submetida, assim como dieta suplementar, ervas medicinais, uso de substâncias, álcool, ou medicações que porventura eu venha a utilizar. Eu entendo que ser honesta com a equipe é crucial para o desenvolvimento de uma relação de confiança e que compartilhar informações sobre mim ajudará a prevenir possíveis interações maléficas à minha saúde. Eu fui informada de que a equipe continuará a me dar atendimento independente de qualquer informação que eu fornecer, relativa aos procedimentos acima descritos. Eu entendo que os corpos das pessoas são diferentes e que não há como prever como será a minha resposta individual frente ao uso de estrógeno e/ou antiandrógeno. Eu entendo que a dosagem ideal para mim pode não ser a mesma do que a usada por outras mulheres trans, travestis, ou pessoas transfemininas, portanto, eu concordo em tomar os hormônios como prescritos e informar à equipe sobre quaisquer problemas eventuais, assim como insatisfações ou alterações que eu possa vir a desenvolver com o acompanhamento proposto. Eu farei exames físicos e laboratoriais periodicamente quando indicados pela equipe para ter maior segurança de que eu não estou tendo reações indesejáveis com o(s) hormônio(s) e entendo que esses exames são importantes para continuar a usar o(s) hormônio(s) ou para mudar o esquema ou a dose utilizada, e me comprometo a não fazer mudanças nesse esquema sem o conhecimento da equipe profissional que me acompanha. Eu entendo que existem condições médicas que podem fazer com que os estrógenos sejam perigosos. Concordo que se a equipe suspeitar que eu tenha uma dessas condições eu serei avaliada antes da decisão de iniciar, interromper ou continuar com o acompanhamento hormonal com estrógenos. Entendo que eu posso escolher interromper o uso de estrógenos e/ou antiandrógenos em qualquer momento que desejar. Eu também entendo que a equipe pode indicar a interrupção da hormonização por razões clínicas. O meu esquema de hormonização constará, inicialmente, do(s) seguinte(s) medicamento(s): ................................................................................................................................................, no entanto, esse esquema poderá variar durante o seguimento.
São Paulo, _____ de _______________ de 20 ____.
________________________________ ________________________________ Assinatura da usuária Assinatura/carimbo da(o) médica(o) Nome da usuária: Nome da médica(o): RG: Número da inscrição no CRM: CPF: Cartão Nacional de Saúde:
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Anexo 4. Termo de assentimento para uso de testosterona por adolescente TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO E DE CORRESPONSABILIDADE
PELO USO DE TESTOSTERONA
POR ADOLESCENTE ENTRE 16 E 18 ANOS DE IDADE
Eu, ________________________________________________ [nome do usuário], declaro ter procurado espontaneamente a UBS / Ambulatório _________________________ [nome do serviço de saúde] e tive a oportunidade de ser atendido pela equipe multiprofissional que conversou comigo sobre a minha decisão de modificar meu corpo com auxílio de hormônio, com objetivo de adquirir características físicas do gênero com o qual me identifico. Fui informado pela equipe e/ou profissional de saúde sobre os riscos associados ao uso de testosterona e que seu uso pode trazer mudanças permanentes, mas também mudanças reversíveis, e que poderá me ajudar a adequar minha forma física masculina. A equipe me informou que as principais modificações corporais, benefícios e efeitos adversos relacionados com o uso de testosterona estão descritos abaixo: diminuição temporária ou permanente da fertilidade; aumento da oleosidade da pele; aparecimento de acne; crescimento de pelos corporais e faciais; aumento de massa muscular; redistribuição de gordura; interrupção da menstruação; aumento do clitóris; atrofia vaginal; mudança da voz (mais grave). Entendo que as mudanças irreversíveis causadas pelo uso de testosterona será a voz mais grossa, aumento do clitóris, a possibilidade de ficar calvo, aparecimento de “pomo de adão”. Entendo também que o uso de hormônio não impedirá a transmissão de nenhuma infecção sexualmente transmissível e que, para isso, é crucial o uso de preservativos ou da PrEP (Profilaxia Pré Exposição ao HIV). Entendo que apesar de minha fertilidade tornar-se diminuída, não estou isento da possibilidade de uma gravidez caso mantenha relações sexuais com pessoas com pênis sem uso de métodos anticoncepcionais. Entendo que posso ter maiores efeitos colaterais com o uso de testosterona caso eu tenha mais de 40 anos, seja fumante ou esteja acima do peso ideal. Fui informado que o uso de testosterona pode aumentar meu risco de desenvolver certos tipos de doenças ginecológicas, assim como poderá haver aumento da minha pressão arterial e do número de glóbulos vermelhos (policitemia). Sei também que poderá haver alterações de humor com o uso de hormônios e comunicarei a equipe caso esteja insatisfeito ou incomodado com isso. Entendo também que poderei ter alterações na minha libido. Eu concordo em comunicar para a equipe profissional sobre qualquer outro tratamento hormonal, assim como dieta suplementar, ervas medicinais, drogas ou medicações que por ventura venha a utilizar. Eu entendo também a necessidade de ser transparente na tomada de decisões em conjunto com a equipe multiprofissional. Comprometo-me a compartilhar informações sobre mim para ajudar a prevenir possíveis interações maléficas à minha saúde e fui informado que a equipe continuará a me dar atendimento independente de qualquer informação que eu vier a declarar, relativa aos procedimentos acima descritos. Eu entendo que os corpos das pessoas são diferentes e que não há como prever como será a resposta individual e, por isso, entendo que a dosagem hormonal e o acompanhamento oferecido a mim podem não ser exatamente os mesmos do que aqueles adotados pela equipe para outros homens trans e pessoas transmasculinas, ou daqueles que li, inclusive na internet ou redes sociais on-line, e entendo também que podem demorar até 5 (cinco) anos para que as alterações sejam percebidas no meu corpo. Entendo que caso eu não queira as alterações hormonais, mas sim alterações pontuais como musculatura, voz e/ou aumento dos pelos corporais ou faciais, existem outros métodos que não o hormonal. Eu concordo em tomar a testosterona como prescrita e informar à equipe sobre quaisquer problemas, insatisfações ou alterações que eu possa ter com o uso da testosterona
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368 a curto, médio e longo prazo. Eu farei os exames físicos e laboratoriais periodicamente, quando indicados pela equipe, para ter melhor controle de que eu não estou tendo reações indesejáveis com o hormônio, e entendo que esses exames são importantes para continuar a hormonização. Eu entendo que existem condições médicas que podem fazer com que o uso de testosterona poderá causar efeitos adversos importantes que comprometam gravemente a minha saúde, portanto, eu concordo que se a equipe considerar que eu tenha ou venha a apresentar esses efeitos, eu serei avaliado antes da decisão de iniciar ou continuar a hormonização. As seguintes reações adversas, possivelmente relacionadas com testosterona, foram observadas em estudos clínicos prévios, e estas podem orientar para os riscos e contraindicações de uso: acne; aumento do suor e alteração do seu odor; dor nas pernas e articulações; cefaleia; dor nas mamas; vermelhidão na pele; dor no clitóris; dor e hematoma subcutâneo no local da injeção; coceira; diarreia; tontura. Eu entendo que eu posso escolher interromper o uso da testosterona em qualquer momento que desejar. Eu também entendo que a equipe pode indicar a interrupção do mesmo por razões clínicas que comprometam minha saúde.
São Paulo, _____ de _______________ de 20 ____.
________________________________ ________________________________ Assinatura da usuária Assinatura/carimbo da(o) médica(o) Nome da usuária: Nome da médica(o): RG: Número da inscrição no CRM: CPF: Cartão Nacional de Saúde:
________________________________ Assinatura da(o) responsável legal Nome por extenso: CPF:
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369 Anexo 5. Termo de assentimento para uso de estrógeno e antiandrógeno por adolescente TERMO DE ASSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO E DE CORRESPONSABILIDADE
PELO USO DE ESTRÓGENO E/OU ANTIANDRÓGENO POR ADOLESCENTE ENTRE 16 E 18 ANOS DE IDADE Eu,__________________________________________________ [nome da usuária], declaro ter procurado espontaneamente a UBS / Ambulatório _________________________ [nome do serviço de saúde] e tive a oportunidade de ser atendida pela equipe multiprofissional que conversou comigo sobre a minha decisão de modificar meu corpo com auxílio de hormônio, com objetivo de adquirir características físicas do gênero com o qual me identifico. Declaro também que fui orientada sobre os diferentes procedimentos que podem ajudar na modificação corporal e as minhas dúvidas foram esclarecidas. Sei que o uso regular de estrógeno e/ou antiandrógeno podem causar modificações permanentes e outras reversíveis, e que a minha identidade de gênero não será garantida unicamente pelo uso desses hormônios. Estou ciente de que a terapia com estrógeno, alternativamente associada com antiandrógeno hormonal ou não hormonal (bloqueadores de testosterona), ajudará a adequar minha forma física feminina. As informações que eu recebi da equipe sobre os benefícios, riscos, contraindicações e principais efeitos adversos relacionados ao uso de estrógeno e antiandrógeno estão descritos a seguir: Mudanças permanentes (a resposta varia muito de pessoa para pessoa e as regiões aumentadas podem reduzir parcialmente quando parar de tomar estrógeno): desenvolvimento das mamas; e depósito de gordura nas coxas, quadris, mamas e em outras regiões (possivelmente barriga, face etc.). Mudanças reversíveis (acontecem somente enquanto estiver usando estrógeno, mas desaparecem quando eu parar de tomar):; aparecimento de celulite; ligeira redução dos pelos (podem ficar mais finos e demorarem mais para crescer); diminuição da oleosidade e sensação de afinamento da pele; diminuição da acne (espinhas); diminuição da queda de cabelo em locais específicos (“entradas” e “topo da cabeça”); diminuição do suor e mudança no cheiro do corpo; alteração da gordura no abdome; diminuição dos testículos em aproximadamente 40% do tamanho; diminuição da produção de testosterona (hormônio) pelo testículo; diminuição do volume do esperma ou mesmo ausência de volume ejaculatório; diminuição da fertilidade (que tende a voltar ao normal após interrupção), no entanto, se mantiver relações sexuais com alguém que possa engravidar, pode haver fecundação (gravidez) se não for utilizado método anticoncepcional; dificuldade de ereção para penetração; diminuição do desejo sexual; orgasmos menos intensos; sensação de diminuição de energia; surgimento ou agravamento de depressão; agravamento de enxaquecas; aparecimento de náuseas e vômitos; alterações ; diminuição da próstata; aumento da pressão arterial; alteração na função do fígado; aparecimento de coágulos nos vasos que poderão levar a: trombose venosa profunda, embolia pulmonar, danos cerebrais permanentes, que podem impedir de encaminhar ou falar, ou eventualmente risco de morte. Modificações que não ocorrerão, nem mesmo com a retirada dos testículos: desaparecimento dos pelos; afinamento da voz e diminuição do pomo de Adão. Eu entendo que o uso de hormônios não impedirá a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, sendo importante a utilização de métodos preventivos para evitá-las como, por exemplo, o uso de preservativo ou da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição ao HIV). Entendo também que apesar da minha fertilidade estar diminuída, ainda assim posso engravidar uma pessoa que tenha vagina e útero, se mantiver relações sexuais sem uso de método contraceptivo. Fui informada de que o risco de aparecimento de trombose aumenta muito se eu fumar. Eu entendo que o risco é tão alto que eu fui aconselhada a parar de fumar completamente. Com o uso de estrógenos e/ou antiandrógenos (especialmente do tipo Acetato de Ciproterona) orais esse risco aumenta. Eu entendo que estarei mais predisposta
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370 a efeitos colaterais se eu fumar, estiver acima do peso ideal, se tiver mais que 40 anos, se
tiver histórico de trombose venosa (meu ou entre familiares), pressão alta e câncer estrógeno- dependente ou progestágeno-dependente, anterior e/ou na família (mama e útero).
Eu concordo em contar para a equipe do serviço de saúde sobre qualquer outro tratamento hormonal a que eu for submetida, assim como dieta suplementar, ervas medicinais, uso de substâncias, álcool, ou medicações que porventura eu venha a utilizar. Eu entendo que ser honesta com a equipe é crucial para o desenvolvimento de uma relação de confiança e que compartilhar informações sobre mim ajudará a prevenir possíveis interações maléficas à minha saúde. Eu fui informada de que a equipe continuará a me dar atendimento independente de qualquer informação que eu fornecer, relativa aos procedimentos acima descritos. Eu entendo que os corpos das pessoas são diferentes e que não há como prever como será a minha resposta individual frente ao uso de estrógeno e/ou antiandrógeno. Eu entendo que a dosagem ideal para mim pode não ser a mesma do que a usada por outras mulheres trans, travestis, ou pessoas transfemininas, portanto, eu concordo em tomar os hormônios como prescritos e informar à equipe sobre quaisquer problemas eventuais, assim como insatisfações ou alterações que eu possa vir a desenvolver com o acompanhamento proposto. Eu farei exames físicos e laboratoriais periodicamente quando indicados pela equipe para ter maior segurança de que eu não estou tendo reações indesejáveis com o(s) hormônio(s) e entendo que esses exames são importantes para continuar a usar o(s) hormônio(s) ou para mudar o esquema ou a dose utilizada, e me comprometo a não fazer mudanças nesse esquema sem o conhecimento da equipe profissional que me acompanha. Eu entendo que existem condições médicas que podem fazer com que os estrógenos sejam perigosos. Concordo que se a equipe suspeitar que eu tenha uma dessas condições eu serei avaliada antes da decisão de iniciar, interromper ou continuar com o acompanhamento hormonal com estrógenos. Entendo que eu posso escolher interromper o uso de estrógenos e/ou antiandrógenos em qualquer momento que desejar. Eu também entendo que a equipe pode indicar a interrupção da hormonização por razões clínicas. O meu esquema de hormonização constará, inicialmente, do(s) seguinte(s) medicamento(s): .................................................................................................................................................., no entanto, esse esquema poderá variar durante o seguimento.
São Paulo, _____ de _______________ de 20 ____.
________________________________ ________________________________ Assinatura da usuária Assinatura/carimbo da(o) médica(o) Nome da usuária: Nome da médica(o): RG: Número da inscrição no CRM: CPF: Cartão Nacional de Saúde:
________________________________ Assinatura da(o) responsável legal Nome por extenso: CPF:
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Anexo 6. Planilha utilizável para acompanhamento de pessoas em hormonização PLANILHA PARA ACOMPANHAMENTO DE PESSOAS EM HORMONIZAÇÃO Nome: _______________________________________________________ Pronomes:____ Data de nascimento: ___/___/______ Prontuário: ________________________ Início da hormonização em:____/____/______ Altura: __________ Data da avaliação / / / / / / / / / / / / / / Hormonização em uso Dose Se injetável: Data da última aplicação Avaliação emocional Emoções Energia / disposição
Aferições corporais Deseja/Aceita? Antropometria Peso IMC Circunferências, em centímetros (usar fita métrica flexível) Pescoço (maior diâmetro) Cintura escapular (sobre músc. deltóides) Busto (sobre mamilos) Cintura torácica (abaixo de mamas) Cintura abdominal (sobre cicatriz umbilical) Cintura pélvica (sobre trocânteres maiores) Coxa D ou E (maior diâmetro) Braço – m. bíceps D ou E (maior diâmetro) Comprimento de estruturas, em centímetros (usar régua rígida) Glând. mamária D – horiz. (eixo horizontal) Glând. mamária D – vert. (eixo vertical) Glând. mamária E – horiz. (eixo horizontal) Glând. mamária E – vert. (eixo vertical)
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Glande do clitóris – horiz. (largura ou horizontal) Glande do clitóris – vert. (longitudinal ou vertical) Testículo Direito – maior (maior eixo) Testículo Direito – menor (menor eixo) Testículo Esq. – maior (maior eixo) Testículo Esq. – menor (menor eixo) Pilificação (descrição) Face Cabelo
Outras características corporais
Exames laboratoriais Data da coleta / / / / / / / / / / / / / / Se hormon. injetável: coleta quantos dias após aplicação?
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